A Mansão de Alamut Brasileira

Autor(a): Safe_Project


Volume 2 – Arco 4: Federação de Solum

Relatório 35: Missão

                                                                                                    

23 de Maio de 1998, 7:00 da manhã

                                                                                                    

Pessoas vem e vão, a vida pode facilmente ser resumida numa história qualquer, feita, em seu âmago, de um início e um fim. No entanto, havia momentos em que o tempo, talvez a própria vida, parecia estar completamente estagnada, exatamente como aquela última gota de suor que escorria pelo rosto pálido do rapaz.

— De-DeSgRaÇa… — tremulou Hector, cedendo à gravidade como um bom corpo morto.

Logo após seu capotamento, Victor surgiu em estado tão ruim quanto. A farda completamente encharcada e o olhar de peixe morto falavam sozinhos.

— Você que decidiu correr… Qual o motivo pra tudo isso? O cara só te chamou… de filho da mãe…! Nem foi um xingamento de verdade, é tipo ficar puto porque uma criança te chamou de "boboca"!

Sem ar. Pareciam estar no vácuo, alcançando um nível melhor de respiração ao surgir do avaliador que lhes acompanhava.

— Hector Wanderlust, 1° Lugar. Victor White, 2° Lugar. Podem descansar aqui enquanto os outros terminam a corrida.

Uma névoa era expelida do corpo de Hector (não dava para saber se era calor ou a alma), enquanto Victor socava a própria cabeça na tentativa de manter a consciência. A certeza de que não acordaria caso dormisse foi uma grande motivação.

Com a saída do avaliador, colocaram-se um ao lado do outro, apenas observando os vários outros alcançarem metade de todo o trajeto.

Victor fitou o cadáver do colega. — Impressionante eles deixarem você usar a cartola. Mas… você não acha pouco prático usar isso?

— I-Impres… sionante? — murmurou, girando o rosto sem tirá-lo do chão. — Uma cartola é fácil de se liberar, já ouvi coisa pior. Você sabia? Havia uma lei alguns séculos atrás que punia com a morte qualquer fazendeiro que deixasse as cabras muito afastadas umas das outras…!!

Bah Se arrependeu outra vez de iniciar um assunto. Qualquer coisa! Não importava o assunto, o cartola sempre encontraria uma oportunidade de demonstrar seu vasto conhecimento de Direito.

— Mas falando sério. Por que você é tão fissurado nessa cartola?

Ele escondeu o rosto novamente. Silêncio. Nem os gritos do avaliador ecoaram por alguns segundos, restando à Victor apenas um breve aguardar.

— Essa informação não é útil pra você. Esquece.

O cansaço era relativo!! Com esse pensamento, se levantou prontamente e, com a devida permissão, retirou-se do local.

Victor fez questão segui-lo, pelo menos nos dois primeiros passos. Câimbra!! As panturrilhas implodiram junto de todos os outros músculos utilizados na corrida. O olhar invejoso caiu sobre Hector, que logo desapareceu numa caminhada a passos largos.

— Como… Como ele consegue?

 

***

 

                                                                                                    

Refeitório, 10:00 da manhã

                                                                                                    

Após todo o treinamento matinal, era chegada a hora mais aguardada, a PRIMEIRA refeição do dia — pelo menos aquela que os guardas viam! Todos comiam como animais. Talheres? Elas até existiam, mas eram tão ignoradas quanto a gravidade fora da atmosfera.

Fazendo a já declarada dupla icônica Wanderlust e White, os colegas de quarto dividiam uma pequena mesa ao lado de uma das janelas do local. Através do vidro pouco empoeirado, o campo de marcha ultrapassava o horizonte.

Como de costume, Hector não tirava os olhos de cada coisinha que passava por ali. Desta vez, seu questionamento recaiu novamente sobre algo que não se lembrava de ouvir em outro lugar.

— Eu ainda não sei onde fica a área infantil.

— Óbvio que não, guri. A gente sequer tem permissão pra deixar a área da Fantoches.

Pelo grande campo gramado (mais vívido que qualquer pessoa por ali), um grupo de fardados andava, cada um de mãos dadas com uma criança sorridente. Estas não trajavam roupas militares, na verdade, eram as únicas de vestimenta casual em todo o ambiente.

A FESOL tinha este costume incomum de recolher órfãos de guerra que teriam morrido em condições normais, independente de qual Nação a criança fosse oriunda. E por que isso seria incomum? Apenas questão diplomática. Era raro a ocorrência de um país aderir uma prática tão abrangente, ainda mais um que adotava, ainda que pouco, práticas… conservadoras demais, por assim dizer.

Ao completarem a maioridade, as crianças poderiam escolher entre ficar ou serem realocadas para um local de sua escolha — com os devidos recursos para sobreviverem inicialmente. Porém, a maioria acabava se apegando aos serviços da Federação, então o contingente do que chamavam de Exército Universal, aumentava ano após ano.

Apesar de não concordar muito, Hector nunca negaria que era uma estratégia inteligente. Se contorcia na cadeira de tanta curiosidade, e talvez tenha sido este tipo de atitude que atraiu a atenção mais indesejada neste raro momento de calmaria.

— E aí, Recruta Zero! — Um outro fardado, acompanhado de mais cinco, se aproximou da mesa, voltado para o lado que estava Victor. — Fiquei sabendo que cê foi o 2° colocado no teste de resistência, parece até que tá usando algum dopping, né?

O tom alto e nada discreto deixava a intenção óbvia. Sem demora, os olhares do refeitório caíram sobre a mesa da dupla.

— É apenas treino, Philip. Você sabe muito bem o que os recrutas da Fantoches tem que passar. Você também tem ótimos desempenhos por causa disso, não é?

Bateu contra a mesa, o PLAM atraindo quem ainda se forçava a ignorar.

— Isso não importa! É impossível um caipira que nem você ter um desempenho melhor que eu que sou um atleta profissional!!

Ahaha E-Então você realmente era atleta! E eu tinha só chutado isso enquanto via você treinar! Re-Realmente impressionante…

— Uma ova!! É bom você se colocar no seu lugar — um sorriso torto brotou — antes que seja expulso por “má conduta”.

Ei, vocês!!

Hum? O total de seis arruaceiros levaram a atenção para o outro que se sentava na mesa. Estava ali desde quando? Mesmo com a cartola chamativa, não havia maneira de notar sua presença, exceto quando chamado por ele.

— Vocês vão fazer alguma coisa ou vão ficar só nesse lenga lenga? Quer me foder me beija, porra!!

— Tá me tirando!? Tem ideia do quão fudido cê vai tá se encostar um dedo em mim??

WOAH!! Uma mão caiu sobre a gola de Philip. Ainda que fosse mais alto, era miseravelmente mais fraco que a figura que penetrava-lhe com os olhos.

Igualando as alturas, tudo que Hector fez no momento foi fitar intensamente o rosto do homem ousado. Victor observou o desenrolar da situação enquanto escondia o rosto dos outros olhos ao redor.

Philip tentou se soltar, repetindo seus últimos argumentos. No entanto, mesmo o curto e hesitante avançar de seus companheiros foi interrompido pelos olhos verdes arregalados que, em conjunto ao semblante retorcido, proclamou:

— Pessoas morrem todos os dias, mas para falar desse jeito você deve ser muito importante… — Puxou-o pela gola e aproximou seus rostos. — Talvez eu te mate para ver se sua presença realmente importa por aqui.

Ninguém ousou dar mais um passo, até mesmo os curiosos de plantão desviaram o olhar, alguns chegaram a sair do refeitório querendo evitar qualquer chance de serem envolvidos. Hector era mais baixo e mais fraco que seu oponente, mas a razão para ninguém querer se meter com ele era bem simples: o olhar psicótico pior que o de um assassino em série.

Philip não engoliu apenas seco, um deserto inteiro rasgou sua garganta enquanto o par de esmeraldas alcançava cada vez mais fundo em sua alma transparente.

Arrancando forças do fundo de seu ser, livrou-se das mãos do cartola. O contra-argumento chegou até sua garganta, mas os lábios recusaram-se a abrir.

— Boboca! — Deu as costas, chamando os outros cinco junto.

Victor, por sua vez, finalmente voltou a olhar naquela direção. Hector apenas se sentou novamente, como se tivesse se levantado apenas para pegar uma talher que havia caído.

— Va-Valeu! — Victor se encolheu na cadeira, respondido com abanar de mão.

De um instante para o outro, a raiva implantada no rosto do rapaz desapareceu. Apenas comia tranquilamente e encarava curioso o horizonte além da janela. E essa calmaria reconquistada, como sempre, foi uma felicidade apenas passageira.

BLAM!!! Invadindo o refeitório, o Líder das Forças Investigativas, Ferdinand ThunderGold anunciou:

— TESTE SURPRESA~! Todos os membros do Bloco D, compareçam na sala de provas N°52 imediatamente!! — Entre os resmungos, gritos e desmaios, seu olhar caiu sobre a figura chamativa de cartola. — HECTOR WANDERLUST! Você também está incluído nisso, venha agora!!

HÃÃÃ!? O chapéu alongado quase caiu de sua cabeça. Nem fazia parte do bloco chamado, muito menos queria abandonar o assento sendo que não havia passado nem cinco minutos de seu intervalo.

Ferdinand encarou-lhe intensamente (amor ou ódio?), uma aterradora atmosfera que ativou os instintos de sobrevivência do recruta.

— Si-Sim, Senhor!! — Bateu continência e partiu do local. — Victor, cuide da minha marmita!!

O citado não teve tempo de corresponder, condenado à observar em silêncio o colega desaparecer corredor adentro. Ferdinand foi o último a se retirar, exibindo exímio anseio em seu sorriso.

Victor não podia mais negar a si mesmo. Agora fora do olhar crítico e afiado de Hector, pensamentos fluíram por sua mente como um rio desaguando numa enorme cachoeira, pouco a pouco evaporando na mais fina névoa que, em conjunto ao cansaço, cegava a entrada para a realização concreta das ideias.

Foi a sua vez de encarar o que estava do lado de fora. A testa franziu e a mão apertou contra a talher de plástico. Chega!!

“Se for pra descobrir algo sobre aquele cara. A hora pra fazer isso é agora!!”

Levantou-se abruptamente. Pedindo a permissão, retirou-se do refeitório sobre o olhar rígido dos superiores.

A primeira investigação se faz concreta.

 

***

 

                                                                                                    

Quarto 6153, 10:00 da noite

                                                                                                    

Quanto tempo havia se passado? Não sabia dizer ao certo. Ao chegar em seu quarto, o cadáver de cartola foi capaz apenas de se arremessar sobre a cama dura, capaz de ouvir o crepitar de alguns ossos que já deviam estar quebrados. Questão de tempo até os fragmentos alcançarem o coração, isso se ainda houvesse algum pulso para propulsar o sangue pelo corpo.

— Que bosta cê tá fazendo? — perguntou ao nada.

— Você tá enxergando? Seus olhos estavam vazios, pensei que tinham arrancado sua alma de vez — disse Victor, na beliche de cima.

O homem de aparência incomparavelmente mais vívida batucava um lápis contra um pequeno caderno sobre seu colo. O som atraiu a curiosidade sem limites do morto-vivo debaixo de si, e agora que se tornou alvo de tal, não havia mais escapatória.

— Hector, sei que você tá bem cansado agora, mas preciso te fazer uma pergunta.

O cartola resmungou em tom de pergunta. E hesitante, Victor disse: — Me desculpa por ter feito isso, mas eu fiz uma pequena investigação sobre você.

Sem reação. Talvez pela exaustão ou simplesmente ter dormido (quem sabe falecido) ali mesmo. Independente disso, prosseguiu.

— Você… sabe qual é um dos requisitos mínimos pra se tornar um Fantoche Oficial, não é?

O som de roupas raspando contra o lençol demonstrou sinais de vida ainda existentes naquela casca mole. Numa hesitação demorada, a voz rouca do rapaz arrastou-se até os ouvidos do colega.

— É claro que eu sei — raivoso, estalou a língua. — Mas isso não é do seu interesse. Não se envolva em coisas que só vão te dar problemas, maluco.

Um suspiro veio por parte daquele ainda vivo. Um forte palpitar em seu peito fez o corpo emanar o cheiro da dúvida, cujo impregnou as narinas de seu parceiro e o fez afundar o rosto no travesseiro.

Vencendo — talvez ignorando — essa sensação, Victor deu um jeito de colocar as palavras para fora. Deixando o caderno de lado e consequentemente abandonando qualquer script montado, tudo que saiu por sua boca foi apenas o que a mente, com dificuldade, manipulava da melhor maneira antes que alcançasse as cordas vocais.

— Eu venho do Sul de Utopia, de uma cidade pacata, Monte Florido… — Não ouviu desinteresse nem interesse por parte de Hector, mas não desanimou. — Vivi com meus Tios por alguns anos, até que consegui morar sozinho. Eles sempre falavam, “não coloque a carroça na frente dos bois”. Comecei a morar sozinho. Como a fome faz a onça sair do mato, não demorou pra eu ficar louco naquele mundo maluco. Bah~! Vou te falar, acabei lambendo a bica por um bom tempo. Tive que atravessar o rio pela parte funda, se é que me entende. Muita gente me falava o que eu devia fazer, só conversa pra boi dormir. Guri! Nem te conto do que já me aconteceu naquele lugar, a maioria que chorava era lágrima de crocodilo, e eu incluo as crianças nisso, barbaridade. Você fez Direito, né? Tem algum interesse na área de Investigação? Você vive criando um bicho de sete cabeças pra tudo que é situação, o tipo de cão que ladra e morde até jacaré. Seria perfeito pro meu setor! Uma vez eu ouvi uma pessoa aqui dentro dizer que águas passadas não movem moinho, e só com isso eu descobri de que Nação ele veio, você também sabe de onde é esse jargão, né? Eu já te digo, quem ao longe não olha, perto se fere. Olha só pra gente e compara com os superiores, quem tem fama, deita na cama. Bah! Voltando ao assunto, cantei tanto que até a maritaca foi embora! A mente vazia é a oficina perfeita do Demônio, e não deu outra pra mim naquela época. Fiquei perdido em mata de onça faminta. Um boi que virou vaca em pasto desconhecido. Aquentei a água pro chimas de tanta gente que até perdi as contas. Chegou um momento que eu senti ter afundado de vez no rio congelado.

Finalmente, uma nova hesitação interrompeu toda a sua sequência. Não foi de dúvida desta vez, mas por razões que não podiam mais ser expressas apenas por seus murmúrios. Tendo o corpo controlado pela curiosidade infindável, o ouvido de Hector se direcionou ao alto da beliche.

— Mas isso mudou. Tudo mudou. Alguns coisas, Hector, podem ser sucedidas, mas não substituídas. Eu sei bem disso. Em casa vazia, o silêncio é um riso demoníaco.

Agachou-se no colchão e inclinou o corpo para fora, capaz de observar o colega deitado de bruços e capturar o olhar de canto direcionado até si numa pequena mas notável surpresa.

— Mas… um caçador desarmado na mata, é o mesmo que um porco em território de onça!

O olhar de Victor brilhava intensamente, em contraste com o atual vazio que era o par de esmeraldas de Hector.

O cartola enfim levantou, se sentando no colchão e preparando para falar. O colega se inclinou ainda mais, quase caindo da beliche. Os lábios secos do rapaz se moveram e…!!

TRIIM!! TRIIM!! Um aviso alto proveio do rádio que cada um carregava. Mais rápdioque seu colega, Victor ligou o aparelho e comunicou, antes de levá-lo na direção do cartola. O emissor usava a linha restrita, então o receptor da mensagem deveria ser apenas eles dois.

Victor White e Hector Wanderlust! O Líder das Forças Investigativas, Ferdinand ThunderGold, exige o comparecimento de ambos na Ala 14 na manhã de amanhã para a designação de uma missão especial! Não se atrasem de maneira alguma!!

Bip! A comunicação foi cortada sem um único “câmbio”! Seria uma grande falta de educação e até quebra de protocolo em alguns casos, mas isso estava longe de ser um dos pensamentos a passar pela cabeça da dupla neste instante.

— Missão…!! — Hector completou: — Especial?!

Não teve como, Victor caiu de vez da beliche. O blam do capotamento provavelmente acordou todos abaixo do andar. E ainda que talvez tivesse terminado de quebrar os ossos de seu corpo, ergueu-se ao se apoiar na cama e fitou o colega com imenso entusiasmo.

— He-Hector! É isso! A missão especial que estávamos esperando! É aquele teste secreto que ouvimos falar!!

— “Os cinco melhores colocados possuem a chance de ingressarem na Fantoches mais cedo que os outros”… Gege! Então não era apenas um boato besta!

Ambos se animaram, talvez mais do que deveriam. Hector começou a especular com murmúrios, enquanto Victor se contentava com um grande sorriso no rosto.

— Caramba, guri! Essa foi de caí butiá do bolso! Eu tava pensando que ia ter que deitar o cabelo depois daquilo com o Philip no refeitório, mas agora acho que vai ficar tudo…

VICTOR!! O chamado do cartola o fez travar as palavras. O-O quê!? Pensou que o outro havia infartado com a notícia, mas enganou-se profundamente.

Aquele olhar! O mesmo tipo de encarada que havia sido direcionada para Philip no refeitório caiu contra si.

— Por favor, maluco… — Respirou fundo, controlando a veia que saltava na testa. — FALA PORTUGUÊS, ALIENÍGENA!!

Hã…!?

Eu lá vou entender o que caralhos você quer dizer com esse tanto de gíria!! EU NÃO ENTENDI ABSOLUTAMENTE NADA DAQUELE DISCURSO IMENSO!! Não tem base um trem desse!! Se quiser me passar mensagem de moral, então fala di-rei-to!! ENTENDEU??

Ele se calou por alguns segundos. A língua se controlou, mas a força do resto corpo superou a outra.

— Direito.

— Entendi… — Seus olhos brilharam intensamente. — Então você escolheu a morte!!

— Qual é, era brincadeira! La-Larga essa faca! HECTOR!!

A noite seguiu como longa, barulhenta e incômoda, pelo menos para aqueles no mesmo prédio que a dupla.

 

 

 


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