Volume 2 – Arco 4: Federação de Solum
Relatório 33: Nascimento de Entidade
Rodovia Federal - UT-136, Norte de Paradise…
De sentido Norte-Sul, a rodovia que se ligava diretamente à Romantusk dentro do território da cidade agora levava Hector diretamente ao seu destino.
Seguindo ao lado do litoral, levara quase três horas para chegar no Trono de Deus. Na primeira hora estava fora de vista, à segunda, a montanha surgia no horizonte, já na terceira tudo era tomado por sua grandeza. Três horas para chegar, e agora…
— Urgh… Acho que vai umas duas horas até chegar no topo.
Um obstáculo pequeno comparado ao que passou para chegar até ali. Com o pé no acelerador, só faltava o carro converter-se para um modelo automático de tanto tempo que já havia passado na quinta marcha.
Um trajeto repleto de curvas que beiravam precipícios e túneis cujo fim às vezes não parecia existir. Aquele tempo passou, silencioso, com apenas o detetive e a voz dentro de sua cabeça.
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O relógio batia 13:40 da tarde. Com o tanque de gasolina no limite, lá estava ele, sem saber como iria voltar para a civilização. Isso, no entanto, pouco importava agora.
Ao sair do último túnel e subir alguns metros a mais de asfalto, uma placa em forma de arco deu-lhe as boas-vindas. Transpassando-a, um estacionamento teve o prazer de ser ocupado por seu carro, este que, ao comparado com aquela visão, em nada se distinguia de uma gota d’água no oceano.
— O Trono de Deus… É realmente outra coisa visto de perto!
Uma superfície plana e de aparência laminada, quase espelhada. Metal ou rocha? Nem um especialista no assunto seria capaz de dizer apenas com o olhar. Hector viu-se refletir no chão, apenas uma mancha negra perdida naquele brilho sem fim, e que nada podia fazer além de fitar horizonte banhado pelo céu azul.
Nenhuma construção humana obstruía a paisagem, tornada eterna pelo tempo e aquele que a criou, este cujo nome era carregado por sua própria criação.
Estava lá! Em algum lugar deste imenso trono, a Encarnação da Morte poderia ser encontrada.
— Certo~! Acho que posso começar fazendo o mais óbvio.
Fez sua primeira caminhada no salão a céu aberto. Distanciando-se do estacionamento, olhou ao redor e não encontrou ninguém. Um curto alívio que lhe tirou um suspiro.
Enfim, deitou com a barriga contra o chão e, encostando o rosto contra a superfície curiosa, passou a procurar.
Girou, girou e girou ainda mais, parecia um pião. Porém, não importava quantas vezes fizesse o movimento em 360°, a ideia mais fácil se mostrou também a mais inútil.
“Nenhuma elevação visível. A superfície é completamente plana!” Encarou o chão logo abaixo e deu um rápido chute. “Dura, mais dura do que aço. Acho que nem maquinário pesado seria capaz de cavar isso.”
O número de coisas que poderia fazer caiu, mas a vontade de desistir… bem, na verdade ela aumentou.
Sua atenção rodou o ambiente. Vazio. Não estava tão diferente do habitual se parasse pra pensar, certo? Aqueles olhos esmeralda encontraram algo nostálgico; familiar. Não… Não! Não, não!!
A cabeça negou e as pernas puxaram o corpo junto. Não havia direção a ser tomada, muito menos um objetivo real aparente. Uma pessoa andando numa vastidão plana, isso era todo o observável naquela montanha.
Uma…
Duas…
Três…
Ao passar de quase quatro horas, o sol já ameaçava beijar o mar no horizonte. Hector, por sua vez, esforçava-se para não desmaiar a cada salto que o estômago dava. O órgão tentava fugir desesperadamente, visto a total falta de intenção do corpo em ingerir alguma coisa antes de encontrar o que queria.
— Por que é tudo… plano!?? — murmurou, caindo de joelhos.
Com tantas tentativas, talvez tivesse feito uma vistoria minuciosa em todo o perímetro da montanha, ou talvez nem metade dela. Agora, seu corpo pendia de um lado para o outro, localizado na beirada da montanha que se virava para o grande Mar de Botomêgamo.
Obrigado a se sentar, teve como única opção levar seu rosto franzido em direção ao nada. O punho cerrou e bateu fracamente contra o chão, força incapaz de matar sequer uma formiga.
Respirar de repente se tornou mais difícil, as narinas foram bloqueadas por algo puxado de volta numa forte fungada, engolido forçadamente e seguido de um ranger de dentes. Fechou os olhos com força, contorcendo o corpo de diversas maneiras em espasmos repentinos.
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAHH!!!
Cof! Coof!! Ao fim da tosse, sua visão distorcida caiu sobre o chão espelhado. Rapidamente desviou da imagem que viu, preferindo o vazio ao seu redor que a única companhia.
“Porra…!!”, pensou ao torcer dos lábios. — Eu devo ser o único… nessa merda de situação.
Foi agraciado com uma resposta do vento. “Realmente!”, ele disse, num tom de mãe. Esta que, por sua vez, estendeu uma mão na direção do rapaz aflito.
Girando um pouco a cabeça, a chance diante dos olhos do detetive brilhou mais que o próprio sol. A figura feminina diante de seus olhos esbanjava um pequeno sorriso e face acolhedora. Os cabelos negros pendiam sobre os olhos esmeralda, mas ainda incapazes de ofuscar o brilho por eles emitido.
Hector encarou fixamente por um minuto inteiro, não desfazendo o contato por nada durante o curto período de tempo. Ao fim da contagem, desviou então o olhar para baixo e passou a manga do terno sobre o rosto.
— Filho da mãe.
Kaha! Valia a pena tentar!
O maquiavelismo puro tomou posse do rosto. O verde foi rapidamente trocado pelo dourado ganancioso, e o corpo feminino alterado para um homem trajado em preto. Yellow se colocou — ainda de pé — ao lado de Hector, mirando-o de cima.
Você chegou até aqui, meus parabéns. Olha só! Nem desmaiou como no hospital! Sério mesmo, tô te parabenizando do fundo do meu coração!
Hector puxou algo do fundo da garganta e cuspiu na direção do mar, o vento, no entanto, empurrou a bola de catarro de volta ao rosto do detetive.
— Qual foi a da voz? Não vá achando que vou falar com você só porque ela tá normal agora. — Limpou o ranho do rosto.
Eu não te daria tanto luxo, é só pra garantir que você não vai desmaiar enquanto eu falo. —
Yellow desviou o olhar para o Trono. Observou com calma, deixando um sorriso nostálgico brotar no rosto enegrecido.
Você já percebeu, eu sei que já, então serei direto ao ponto. — Outra vez, estendeu a mão. — Faça um pacto comigo. —
Nenhuma reação veio do cartola. O demônio continuou sua falácia. Era benéfico para ambos! Enquanto Hector precisava de ajuda para não ser mais uma formiga naquele ninho de vespas, Yellow necessitava de um motivo para realizar uma certa ação, e tal razão estava bem ali.
Vamos~! É só apertar minha mão! Nós dois vamos ser beneficiados, eu juro que nenhum de nós dois vai ser prejudicado. —
Era como uma criança prometendo algo para ganhar um doce. A incerteza de cumprimento era a única coisa que pairava no ar. Porém, Hector já não sentia cheiros.
O detetive se levantou. Os olhos avermelhados miraram furiosos o dourado da Entidade, que aproximou ainda mais sua mão do rapaz.
— O Victor — disse, assustando o contratante. — O que ele está fazendo agora?
Seu colega está avançando muito bem nessa investigaçãozinha. Nesse momento ele deve estar dirigindo para um certo lugar ao Sul. —
Hector sorriu. Tudo que precisava saber! E com isso dito, não havia mais qualquer motivo para hesitar em agarrar a única — e a pior — mão que lhe oferecia um caminho.
Eles enfim deram as mãos, um toque que atingiu fortemente cada célula do corpo do detetive, cujo de alguma forma arranjou forças para dizer: — Me torne alguém forte.
Com prazer…
Yellow desfez o aperto. — Você tem a chave do carro, certo? Me dê ela, você não vai precisar mais.
O cartola o fez. Apesar do carro nem ser mais seu, era difícil Lívia querê-lo de volta quando mais parecia uma lata amassada do que um veículo em si.
A ação, no entanto, não envolvia o carro diretamente. Yellow não deu um passo de onde estava.
Com a chave em mãos, tudo que fez foi se virar de costas para o mar, encarando brevemente a vastidão inóspita da montanha para, só então, arremessar o item à frente.
A mão direita então se ergueu à altura da cabeça. Snap! Um estalar de dedos fora sua única realização, mas de efeitos muito maiores do que um humano poderia adquirir.
— Que-Quem é esse!? — questionou o detetive, quase caindo do penhasco ao recuar.
Na velocidade de um piscar de olhos, as chaves desapareceram antes de tocarem o chão, substituídas por uma forma viva bastante distante.
Uma pessoa. Não era possível saber se homem ou mulher, pois se cobria com o que parecia mais um acumulado de trapos do que roupas. Até mesmo os olhos eram inacessíveis, escondidos por um óculos de neve com lentes escuras.
Ao se dar conta de onde estava e aqueles que lhe faziam companhia, o único que ganhou sua atenção fora ninguém senão Yellow.
— Há quanto tempo… Demoniozinho!
— Realmente! É um grande desprazer te ver, ainda mais quando nem seu nome você tem coragem de usar — disse, brincalhão, respondido com um hesitar da figura.
Hector só podia trocar olhares com cada um. Sua existência era agora ignorada por ambos, nem pareciam mais enxergá-lo. Yellow comprovou isso, fitando o homem intensamente.
— Como vai a vida, “Informante”?
. . .
Quem? Novamente, a voz do cartola sequer ecoou nos ouvidos alheios. Informante? Quem caralhos era esse maluco? Apenas uma coisa era óbvia, ele também conhecia Yellow. A posse de um Fator B foi a primeira certeza a brotar na mente do detetive.
— Ye-Yellow! Quem diabos é ele?
Isso não importa.
O olho elétrico descarregou na direção do homem, cuja única reação foi dar um passo para trás. Mas com uma breve análise, Hector pôde perceber que a postura assumida pelo tal Informante não se tratava de medo.
“Ele está pronto para lutar… Bem, contra esse cara, fugir com certeza nunca seria uma opção.”, ponderou, fitando ambos rapidamente. “Mas… quem exatamente é esse cara? Eu quero saber!!”
Entretanto, Yellow era contrário à sua vontade. Com passos largos se aproximou do homem. Um golpe! O punho cheio de trapos foi contra o demônio junto de um grito de guerra.
Com uma mão, foi interrompido. Não se preocupe, não vai doer.
A mesma mão que parou o golpe mergulhou no rosto da figura. TRUM! O relâmpago partiu do olho dourado e imbuiu o corpo da vítima na alta voltagem de energia amarelada.
“Não vai doer”, foi o que disse o demônio. Agora, Hector observava estático a figura desconhecida gritar com todas as suas forças, debatendo-se como um coelho nas presas de um lobo na vã tentativa de se libertar.
Não demorou mais do que cinco segundos. Os gritos cessaram junto do trovão. Yellow nem precisou abrir sua mão, pois aquele corpo acabou levado pelo próprio vento na forma de pó, forma essa assumida também pelos trapos que vestia.
Sem nada falar, Yellow se virou na direção de Hector e caminho até ele. E agora querendo se jogar sozinho daquela altura fatal, o detetive fechou os olhos na esperança do corpo não agir sozinho ao ver a mesma mão negra vindo até seu rosto.
Foi apenas um toque, seguido de um curto e leve choque que fez um arrepio subir-lhe o corpo.
— Está feito — disse Yellow, removendo a mão. — Parabéns, você agora carrega o título de Invencível. Espero que goste do presentinho.
— Do que caralhos você tá falando!? Você literalmente matou um cara aleatório e me deu um choque.
— Você vai entender melhor quando fizer o seu primeiro e último treinamento. Ser invencível ou não, isso vai depender da sua capacidade de usar a habilidade que te dei.
Hector coçou o queixo, se não fosse pela dor que de alguma forma seu corpo ainda sentia, teria arrancado a própria pele.
Fechou os punhos repetidas vezes, vasculhou rapidamente seus membros. Nada, não havia nada de diferente em seu físico. Era um pequeno alívio, antes ficar louco do que se parecer com aquele demônio logo à frente.
Mas para sua infelicidade, aqueles pensamentos talvez tivessem ecoado na cabeça de Yellow.
A gente se vê por aí.
Com um sorriso de uma atendente de montanha russa, sua perna levantou e agiu tão rápido quanto o cérebro do detetive, chutando-o para a boca do penhasco.
Arremessado longe demais para agarras as paredes, Hector se viu ser engolido por um queda de quatro quilômetros em direção à praia rochosa ao fim do percurso.
Finalmente pôde descobrir a verdade, sua vida inteira estava passando diante de seus olhos, apesar de que a maior parte dela era apenas um borrão.
Antes que sua própria mente engolisse-o dentro de suas próprias memórias e o tempo desacelerasse, um bravejo veio do fundo de sua garganta, um som semelhante ao de uma besta antiga que abalou até mesmo aquele demônio inalcançável.
YELLOOOOOOW!!
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