Volume 3

Capítulo 3: No Fundo do Abismo

Parte 1

 

Surpreendida pela súbita explosão de luz, Yaya correu para a janela.

Lá fora, a luz e as sombras estavam entrelaçadas, criando várias gradações de preto e branco.

Era o brilho do Canhão Lustre. Em comparação à quando ela o tinha visto anteriormente, no momento havia uma notável diferença de intensidade.

O feixe luminoso estava indo em direção aos destroços da torre do relógio espalhados pelo chão.

— ...Raishin?!

Incapaz de se conter, Yaya saltou pela janela e começou a correr.

A luz desapareceu assim que atingiu as ruínas da torre do relógio.

Os guardas da segurança estavam emitindo o alarme e distribuindo ordens. Assim que Yaya chegou até eles, o chão subitamente cedeu. A terra desintegrou-se com um grande estrondo. Parecia que o Canhão Lustre não tinha apenas obliterado os destroços, mas também havia perfurado a terra.

Os destroços começaram a cair dentro do buraco. Areia, pedras, tijolos, metal— e o Raishin!

— Raishin! Raishin—!

— Espere, Yaya!

Alguém tinha agarrado o braço de Yaya. Era um aperto surpreendentemente forte.

A pessoa segurando o braço dela não era outra senão a bela professora Kimberly.

— Parece que você chegou tarde demais. No entanto, agora que a situação ficou desse jeito, não há nada que eu ou você possamos fazer. Não faça nenhuma tolice.

— ... a Yaya vai procurar o Raishin!

— No fundo do buraco? Não se incomode.

— Mas!

— Você não percebeu? Tem um monte de pessoas olhando na sua direção.

Ela olhou em volta no mesmo instante.

Assim como Kimberly havia dito, os olhares dos guardas de segurança estavam firmemente fixos em sua direção.

Eles eram desconfiados, hostis e cheios de uma suspeita temerosa. Como os de Raishin, os cinco sentidos da Yaya também eram mais aguçados do que os de uma pessoa normal. Ela sentiu o peso dos olhares afiados sobre ela, semelhantes a pessoas apontando armas em sua direção.

— Uma vez, você venceu severas restrições com sua própria força. Isso é algo a ser temido. Neste momento, para eles você não é nada além de um monstro misterioso.

Mesmo que Kimberly tivesse dito tudo aquilo, Yaya ainda estava incerta quanto ao que fazer.

Ela se remexia com uma mistura de inquietação e impaciência. Vendo-a reduzida a tal estado, Kimberly mostrou uma rara demonstração de gentileza em sua voz.

— Siga as minhas ordens obedientemente. Eu prometo que não irei fazer nada de mal.

— ...mas—

— Se você tentar alguma tolice agora, o Penúltimo também acabará sendo prejudicado.

Foi o golpe de misericórdia. Ouvindo isso, Yaya parou de se mover.

— Em todo caso, considere a profundidade deste buraco. Qualquer pessoa a cair em algo tão profundo deveria morrer instantaneamente... sendo assim, mesmo que você vá lá para baixo agora, não há nada que você possa fazer para ajudar.

— ...!

— No entanto, se eles estiverem vivos, então ele vai encontrar alguma maneira de se manter seguro e você ir lá para baixo acabaria sendo um ato desnecessário.

Suas palavras eram cheias de confiança. Era perfeitamente possível que Kimberly tivesse mais fé em Raishin do que a própria Yaya.

E isso era algo muito, muito vergonhoso de se perceber.

— A professora... está certa.

— Boa garota. Agora venha.

— Onde estamos indo...?

— Eu tenho uma ou duas ideias por mim mesma. Entretanto, eu devo discuti-las com meus companheiros.

Dando as costas para a comoção que se formava ao redor do grande buraco, Kimberly começou a caminhar em direção ao bosque.

 

Parte 2

 

O sol pendia no céu noturno.

Para a cabeça grogue dele, era isso que parecia.

Uma cortina preta cobria todo o mundo, tanto quanto o olhar alcançava, e bem no centro daquela escuridão, um grande sol estava brilhando.

Raishin piscou várias vezes, tentando organizar suas lembranças difusas.

Ele lembrou-se claramente de que havia caído. Algo sobre a terra cedendo e ele sendo pego pela destruição causada por Sigmund.

Lembrando disso, ele percebeu que a luz acima dele não era o sol, mas sim um buraco que havia sido aberto no solo.

O que significava que ele tinha caído por uma grande distância. O mais estranho era que ele continuava vivo depois de cair tudo aquilo.

Ele cautelosamente tentou mover os dedos.

Sua pele ficou fria ao pensar que ele poderia tê-los perdido... ah, eles se moveram! E também não havia dor alguma.

Raishin cuidadosamente verificou se estava bem, antes de lentamente se levantar.

Seus arredores estavam escuros como o breu. A luz entrava apenas pelo buraco acima dele, mas por alguma razão ela não parecia chegar até onde ele estava.

Felizmente, ele havia levado seu equipamento quando saiu. Tirando uma lamparina de seu coldre, ele a acendeu com um fósforo. Levantando-a para examinar os arredores, ele não viu nada além de areia.

— Yaya...!

Ele tentou chamar por ela, mas tudo o que ele pode ouvir foram os sons de seu eco, embora apenas após algum tempo.

O lugar em que ele estava era consideravelmente grande. Ele se perguntou desde quando a Academia tinha esse tipo de túnel em seu subterrâneo.

Depois de chamar várias vezes, ficou evidente que Yaya não se encontrava em nenhum lugar próximo dali.

— Nenhuma outra escolha, então. Acho que vou ter que sair daqui por mim mesmo...

Naquele momento, seu corpo ficou paralisado de medo.

Reflexivamente apagando a lamparina, ele se atirou no chão e olhou na direção da qual estava vindo a presença.

Incontáveis estrelas estavam brilhando no céu.

Não, não eram estrelas... aquilo eram olhos!

Ele estava sendo vigiado. E por um grande número deles!

Havia uma incrível pressão vindo dos olhos. Parecia que eles estavam rasgando suas vestes, arrancando sua pele, dilacerando seu corpo em pedaços e enxergando através de cada uma das células de seu corpo.

Todas as dezenas de milhares deles, isso se não fossem centenas.

No momento seguinte, todos piscaram de uma só vez.

Depois que alguns segundos haviam se passado, ele finalmente recuperou a compostura. Os olhos também haviam desaparecido.

Seu coração batia violentamente. Suor frio jorrava por todos os poros de seu corpo, deixando-o encharcado, como se ele tivesse acabado de tomar chuva.

O que diabos foi isso?

Havia alguma coisa ali? Era a arte mágica de alguém? Ou era apenas uma alucinação induzida pelo medo?

Ele não conseguia compreender sua verdadeira natureza. Ele nem mesmo conseguia começar a imaginar o que poderia ser aquilo. No entanto, Raishin não era um covarde que iria desistir apenas por causa de uma ameaça desconhecida.

Voltando a acender a lamparina, ele iluminou seus arredores.

O morro de areia estendia-se amplamente e por uma grande distância. Não havia nenhum traço deixado pelo monstro.

Raishin limpou a mente, banindo de sua cabeça a mais recente experiência, com o objetivo de se concentrar em escapar.

A inclinação também seguia para baixo. O instinto por si só estava lhe dizendo para subir, mas o monte de areia não parecia chegar até o buraco e escalar a areia iria gastar muito de sua energia.

Portanto, a melhor opção era a de não fazer nenhum movimento em falso e calmamente esperar até que a ajuda chegasse. No entanto, após inspecionar os arredores um pouco mais cuidadosamente, Raishin pode ver rochas e detritos espalhados de forma inconstante. Muito provavelmente, eles tinham caído pelo buraco junto com ele quando o chão cedeu anteriormente. Além disso, o solo acima dele provavelmente ainda estava frágil. Se outro colapso ocorresse, havia um alto risco de que ele fosse esmagado até a morte.

Descontando o fato de que ele estava fugindo do monstro, a melhor escolha que ele tinha era ir para outro lugar.

Descendo um pouco o morro de areia, a luz de sua lamparina tocou em algo estranho.

— ...ei! Recomponha-se!

Ele correu rapidamente e deslizou pela areia em direção ao objeto macio.

Levando sua orelha até perto do rosto dela, ele buscou por qualquer sinal de respiração. Felizmente ele encontrou.

— Acorde, Henri! Henriette!

Gritando no ouvido dela, os olhos de Henri abriram-se de repente.

— Você está bem? Está sentindo dor em algum lugar?

— Nãããããão!! Um homem!!

Agarrando punhados de areia, ela começou a atirá-los em Raishin, criando uma nuvem de poeira durante o processo.

Se ela estava tão vívida, então ela provavelmente estava bem.

— Pare com isso... eu disse para parar, Henri!

— Sintomuitosintomuitosintomuitosintomuito!

— Fique quieta. E levante-se. Nós vamos procurar por uma saída.

— Eh... uma saída?

— Será que você bateu sua cabeça no meio do caminho? Nós caímos aqui juntos, lembra?

Apontando para cima, ele indicou o “sol” pendurado no céu.

— O chão lá em cima pode entrar em colapso a qualquer momento. Se algo caísse agora, nós ficaríamos esmagados, mais planos que panquecas. Não podemos ficar aqui por mais tempo.

— Mas mesmo assim... existe mesmo alguma saída?

— Claro que existe. Se não existir, nós estaremos acabados. Portanto, temos que apostar na existência de uma.

Henri lançou um duro e longo olhar na direção de Raishin. Havia alguma pequena admiração nele.

No entanto, ela ainda permanecia teimosamente obstinada a ser desonesta em relação aos seus verdadeiros sentimentos.

— ...por favor, deixe-me aqui. Se você estiver indo, faça-o sem mim.

Raishin riu ironicamente. Yaya geralmente era um saco de se lidar, mas Henri não ficava para trás, mesmo que em um sentido diferente.

— Uma senhorita mimada. No entanto, mesmo que você diga que não, eu vou ter que levá-la comigo. Afinal, nós...

O rosto de Raishin ficou sério.

— ...iremos morrer se não agirmos com inteligência.

 

Parte 3

 

Em frente ao Dormitório Tartaruga, acima do bosque.

Charl estava sentada sobre as costas de Sigmund, sua respiração era rápida e superficial.

O som das ruínas da torre do relógio parecia o de uma cachoeira enquanto tudo caía no enorme buraco.

Os detritos, o alicerce e também o Diretor.

Ela finalmente tinha feito isso— matado uma pessoa pela primeira vez!

Suas mãos sentiam-se frias e irresponsáveis. Pareciam que elas pertenciam inteiramente a outra pessoa quando Charl as usou para abraçar seu corpo trêmulo.

— Você está bem, Charl?

Ela recuperou seus sentidos ao ouvir a voz de Sigmund.

— ...estou bem. Precisamos nos apressar e nos esconder.

— Sobre isso. Por mais que eu fosse adorar me esconder calmamente e desaparecer— eu temo que isso já não é mais possível.

Em um instante, algum tipo de bala roçou a bochecha de Charl.

Haviam perseguidores no bosque!

Se fosse algo tão simples quanto rifles, Sigmund seria capaz de suportar, mas os guardas de segurança estavam equipados com canhões. Ela tinha que fazer alguma coisa antes que eles fossem derrubados por aquela artilharia pesada.

Ela fez com que Sigmund se virasse. Quando ela fez isso, ela sentiu a ativação da energia mágica.

Várias sombras surgiram através das árvores.

A aparência lembrava a de soldadinhos de chumbo adornados com capacetes. Eles eram tão grandes quanto uma criança, marionetes mecanizadas e inorgânicas, que eram autômatos de edição padrão oferecidos aos guardas de segurança, os Heimguarders.

Com movimentos rápidos e ágeis como os de um macaco, os autômatos atacaram.

Sigmund bateu suas asas e balançou sua cauda para afastá-los. No entanto, haviam muitos deles. Por um breve momento houve uma abertura e uma sombra surgiu nas costas de Charl.

— Droga...

O Heimguarder esticou um dedo. Uma faísca branco-azulada irrompeu a partir dele. A luz crepitante indicava que ela era de alta voltagem. Se Charl fosse atingida por aquilo, ela iria perder a consciência em um instante!

No momento seguinte, no entanto, o Heimguarder foi soprado para longe no horizonte.

Em seu lugar havia um homem. Seu atraente cabelo loiro era quase prateado. Ele estava vestindo um terno bem costurado, mas não usava um paletó. Em vez disso, ele usava um colete apertado. Usava um par de óculos escuros e a expressão em seu rosto era ilegível.

O homem tinha aparecido de repente, completamente do nada, e agora estava completamente parado no meio do ar. Charl o ignorou enquanto dizia,

— Nós estamos recuando, Sigmund.

— ...entendido.

Houve um clarão ao redor de Sigmund e seu grande corpo encolheu de tamanho em apenas um instante.

Charl perdeu o equilíbrio e quando ela caiu, o homem a agarrou pelo braço e a puxou para cima.

— Ai! Ei, tente ser gentil—

Seus protestos acabaram ali. Assim que ela estava prestes a repreendê-lo violentamente, o cenário mudou em um piscar de olhos.

Charl se agarrou ao braço dele com toda a força, para que ela não acabasse caindo. O homem continuou a acelerar, esquivando-se facilmente da chuva de balas que vinham do bosque abaixo.

Segurando ambos, Sigmund e Charl, ele continuou a voar pelo bosque sem problemas.

Ele era como uma rajada de vento enquanto voava silenciosamente em frente, não parecendo ser incomodado pelo peso extra.

Parando um pouco antes do campo em que eram realizadas as simulações de batalhas, ele cautelosamente alterou sua rota, dando meia volta.

O cenário diante dos olhos dela mudou quando ela se encontrou indo em direção a seção central da Academia. Assim que o grande auditório ficou à vista, a aparência de Charl começou a se transformar.

Seu cintilante cabelo dourado se transformou em um marrom sem graça e suas roupas foram trocadas para um uniforme comum.

Era mais provável que fosse a arte mágica de alguém. No momento em que Charl havia terminado de se transformar na discreta estudante — Ravena— o homem aterrissou atrás do edifício.

Ele gentilmente colocou Charl no chão. Ele era mais cavalheiro do que ela pensava. Sigmund havia se transformado em uma pomba e agora estava empoleirado em seu ombro, arrulhando.

Os dois entraram no auditório e foram para o terceiro andar, onde ficava a área privada do Comitê Executivo.

No fim do terceiro andar, no escritório do antigo Presidente do Comitê Disciplinar, o jovem garoto de antes estava presente.

— Bem-vinda de volta, Ravena.

Charl não respondeu. Seu rosto empalideceu enquanto ela tentava conter a náusea que estava sentindo.

— Oh, querida, qual é o problema? Será que fingir ser uma pessoa morta lhe causa arrepios?

Ele falou com um tom leve. Ou melhor, seria mais correto dizer que ele estava brincando com ela.

Ela foi sua colega de quarto, não foi? A bem-humorada Ravena.

Ele estava certo. Ravena era uma pessoa de boa índole. Ela sempre tinha sido correta com a Charl.

Se Charl não tivesse feito aquilo, elas poderiam até mesmo ter se tornado amigas.

Vendo o silêncio de Charl, o garoto deu de ombros, um gesto carregado de tédio.

— Vamos direto para o ponto principal, então. Com a destruição das ruínas da torre do relógio, o estado do diretor atualmente é desconhecido.

A voz dele mudou subitamente, tornando-se gélida.

— Eu disse a você que existia uma grande caverna abaixo dos terrenos da Academia— havia uma razão para que eu dissesse tudo isso. Você ainda não fortaleceu a sua determinação, não é?

— Eu já! Eu matei o diretor corretamente, não foi!?

— Então ele fica enterrado sob todos aqueles escombros... por que você fez isso de forma tão espalhafatosa? Considerando o seu Sigmund, se você quisesse, você poderia ter facilmente passado pela segurança e o explodido.

— ...esse teria sido um plano terrível. Desde ontem, o Diretor estava recebendo escolta de um batalhão com armas anti-magia.

— Certo, desde ontem. No entanto, eu não acredito que essas armas anti-magia teriam sido eficazes contra o seu circuito Gram.

Charl ficou em silêncio. Por mais vexatório que fosse, a lógica dele era perfeitamente razoável.

— Bom, está tudo bem. Eu não tenho problemas desde que você entregue o que prometeu antes do prazo limite. Que termina em cerca de vinte horas...?

— ...o que você está dizendo? Eu terminei o trabalho.

— Não, você não terminou. Graças a isso, no entanto, ela também conseguiu sobreviver.

O garoto enfiou a mão no bolso e tirou um cristal, segurando-o para que ela pudesse ver.

Algum tipo de cenário estava sendo mostrado em meio as profundezas do cristal transparente.

Aquele era um dispositivo mágico, então. Uma ferramenta dotada de um circuito mágico instalado, de modo que ele pudesse ser usado em artes mágicas.

Ao contrário dos autômatos, dispositivos mágicos não possuíam inteligência, de modo que o mago precisava canalizar e controlar a energia mágica por conta própria. Se comparado a um instrumento musical, autômatos eram como instrumentos que vinham com um instrumentista anexado, enquanto os dispositivos mágicos eram simples instrumentos— o som que produziriam dependeria de quem os estivesse tocando.

Vendo a imagem refletida no cristal, Charl se desesperou.

— Onde ela está?! Que lugar é esse?!

— Acalme-se. Henri ainda está viva. Ou melhor, eu deveria dizer que você acabou não matando ela.

Foi uma declaração carregada. Demorou um pouco para que Charl percebesse o que ele estava insinuando.

— É isso mesmo, você deveria tê-la matado! Ela também estava na linha de fogo. Não é ótimo que você não tenha mirado no Diretor, afinal?

Charl suprimiu suas emoções, falando através de seus lábios trêmulos.

— ...que lugar é esse?

— A grande caverna subterrânea. Depois que os alicerces foram destruídos, tudo acabou desabando. O Diretor, o seu segurança particular e também a sua linda irmãzinha.

O garoto voltou a olhar para o seu cristal, deixando escapar um grito de surpresa.

— Bem, isso é interessante. Parece que, de algum modo, o Penúltimo também está lá.

Charl cerrou os dentes. Raishin estava ao lado de Henri, mesmo depois dela ter dito a ele que ficasse longe. Ele realmente sabia como irritá-la, ignorando o aviso que ela havia dado a ele dessa forma.

No entanto... em algum lugar dentro do seu coração, ela sentia como se pudesse entender a parte dele que se recusava a desistir.

— Shin, eu poderia intervir aqui?

Seu atendente o chamou. O homem de óculos escuros fez uma pequena reverência, parecida com a de um mordomo, enquanto falava.

— Eu temo que isso vá ser extremamente difícil, considerando que os guardas de segurança irão manter seus olhos no buraco. No entanto, se o jovem mestre emitir uma ordem, então o processo de recuperação será facilitado.

— Entendo. Nesse caso, vamos fazer isso. Leve dez homens com você. Eu também gostaria de saber qual é a situação do terreno.

Charl caminhou em direção ao garoto, batendo as duas mãos sobre a mesa.

— Eu também vou! A Henri...

— Você não pode.

— Deixe-me ir junto! Se alguma coisa acontecer com a Henri, eu...

— Eu acabei de dizer que você não pode.

Charl olhou para o garoto com os olhos cheios de intenção assassina.

Em resposta a energia mágica que Charl estava liberando, Sigmund abriu as asas, embora elas fossem de pomba.

Entretanto, ela não podia fazer nada.

— Em vez de ir para o subterrâneo, você deveria estar caminhando em direção ao edifício escolar. Afinal, as aulas estão prestes a começar, Senhorita Ravena.

Charl parecia ter mergulhado até o fundo do abismo do desespero enquanto ela, de forma impotente, marchava para fora da sala.

Depois que ela saiu, o garoto deu uma risadinha enquanto olhava para o seu ajudante.

— Parece que você deseja dizer algo, Shin.

— ...foi você quem disse para onde a Henriette deveria ir. Se o Canhão Lustre tivesse sido um golpe direto, nós teríamos perdido a nossa refém. Por que, então, você fez algo assim?

— Porque parecia ser uma ideia divertida.

Shin ficou em silêncio. O garoto bebeu seu chá preto, fazendo uma expressão emburrada.

— Não faça essa cara. Eu sabia que a Charlotte seria incapaz de atacar de qualquer outra forma além daquela. Não havia a menor preocupação de que a Henriette viesse a perecer.

— Mas as coisas que acontecem no subsolo estão além do seu controle. Na pior das hipóteses, ela poderia ter morrido na queda.

— Se isso acontecesse, tudo o que precisaríamos fazer é criar uma nova Henriette, não é?

— ...isso é completamente herético. Você está se tornando complemente podre por dentro, não é?

— Obrigado pelo elogio. Irei leva-lo para a tarefa mais tarde.

— ...o que você está pensando, afinal?

— Você não entendeu? Se a Catedral dos Tolos realmente existir, isso irá ajudar a impulsionar as pesquisas da Academia com uma quantidade considerável de verba. Há um valor em expor sua existência, mesmo que isso signifique correr o risco de ter nossos planos expostos. E agora, ela realmente apareceu.

Um riso despreocupado escapou de seus lábios. Era uma risada que soava como se viesse de um anjo.

Shin olhou para o rosto sorridente de seu mestre com uma mistura de medo e admiração, as quais se transformaram em intoxicação.

— Eu preciso verificar isso com meus próprios olhos. O quão próxima esta Academia é do Simulacro de Deus. Parece que pode haver um bônus inesperado lá embaixo, então não fique brincando quando chegar lá, tudo bem?

— Como quiser.

Shin fez uma reverência e imediatamente depois saiu da sala.

 

Parte 4

 

— Vo- Você acabou de dizer que nós vamos morrer...?

Henri olhou para Raishin, o medo brilhando em seus olhos.

— É apenas uma possibilidade, imagine. Pense nisso. Ninguém nunca nos disse que havia uma caverna como essa abaixo da Academia. Portanto, isso provavelmente é um segredo. E, obviamente, você poderia contar com uma mão o número de pessoas que sabem disso.

— ...está bem. Eu estou bem com isso. Se tivermos que morrer aqui, isso vai evitar vários problemas.

— Pare de ser irracional! Você é exatamente tão cabeça dura quanto ela.

Os ombros de Henri se contraíram ao ouvir isso. Ficando ainda mais teimosa, ela virou de costas para Raishin.

Abraçando os joelhos, ela se abaixou e parou de se mover. Não movia nem mesmo um único músculo.

— Em todo caso, a ajuda virá. Eu definitivamente não vou morrer.

— Você tem muita coragem para dizer que quer morrer. Se a ajuda não vier, o que você vai fazer?

— Perfeito. Se a ajuda não vier, então eu irei morrer aqui.

Naquele momento, um grande pedaço de detrito entrou em colapso com um timing perfeito. O impacto enviou vibrações pelo solo, espalhando areia na inclinação ao seu redor.

Não passando a nem mesmo cinco metros de onde Henri estava, os detritos desapareceram na escuridão.

Se tivesse sido atingida diretamente por aquilo, ela certamente teria morrido. Mesmo se ela fosse atingida apenas de raspão, o resultado com certeza teria sido o mesmo.

Olhando mais atentamente, ele pode ver que o rosto de Henri estava pálido e ela estava tremendo levemente.

Raishin continuou a observá-la e, ao mesmo tempo, tentava formular um plano em sua cabeça. Eventualmente, ele abriu a boca para falar.

— Eu acabei de me lembrar de uma coisa. Há muito tempo atrás, milhares de pessoas eram enterradas vivas nessa caverna.

— Eh...?

— Esse lugar é uma ampla instalação para artes mágicas. Essa caverna em si é um dispositivo mágico colossal. A fim de proteger este segredo, aqueles que trabalharam aqui foram enterrados vivos após o término de sua construção, para que nenhum deles pudesse contar nada para ninguém. Aliás...

—  ...?

— As pessoas que foram deixadas aqui passaram a adotar o canibalismo para sobreviverem. Eles rasgaram a carne uns dos outros, tiraram os intestinos, beberam o sangue e roeram os ossos.

Henri agarrou os joelhos com mais força a medida em que um poder não natural fluía através de seus dedos.

— Uma vez que eles abandonaram a humanidade que tinham, eventualmente o mundo os rejeitou e eles acabaram se tornando monstros. Depois de um longo período de tempo, apenas um dos monstros restou...

— ...o -o que aconteceu em seguida?

— Mesmo agora, ele ainda vaga por este labirinto. Sempre em busca de sua próxima presa...

O fogo na lamparina de Raishin piscou fracamente. Por causa de sua história anterior, mesmo o próprio Raishin teve arrepios e sentiu o cabelo do seu pescoço ficar de pé.

— I- Isso é apenas uma história de terror clichê. Você inventou isso.

— Sério? Então você deveria tentar forçar um pouco mais os seus ouvidos. Se você ouvir com atenção o bastante, você pode ouvir o som do monstro se arrastando. Ali, lá no fundo—

Interrompendo abruptamente sua pequena fala, Raishin virou-se mais depressa que uma bala.

— ...o- o que há de errado?

— Shh... você não está ouvindo alguma coisa?

Henri engoliu em seco, apertando ainda mais as pernas a medida em que ela se encolhia ainda mais.

— Ali... é fraco, mas...

— Eh... espe... eu não gosto disso... pare com isso...

— AJUUUUUUUUUUDE-MEEEEEEEEEEEE!!!!

— NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOO!

Henri gritou, cobrindo a cabeça com as mãos.

— Sintomuitosintomuitosintomuitosintomuitosintomuito...

Henri estava chorando em um estado meio enlouquecido. Raishin ficou surpreso com o quão eficaz seu plano tinha sido, indo muito além de suas expectativas.

— ...não, quero dizer, eu que sinto muito. Aquilo foi uma piada. Você não precisa ficar assustada.

— Uma... pi- piada...?

— É apenas uma versão alterada de uma velha história de terror contada na minha cidade natal. Eu não passo de um estudante transferido e com notas ruins. Por causa disso, eu não sabia que esse lugar existia. Ou melhor, eu nem mesmo poderia saber sobre um lugar como esse.

— I- Isso é muito cruel! É imperdoável! Eu pensei que ia acabar me mijando!

— Uma dama de uma família nobre não deveria dizer algo como ‘se mijar’.

Enquanto pensava, Henri estava com medo de morrer. Ela queria empurrar a dor e o medo para longe.

Nesse caso, talvez fosse possível que ele conseguisse fazer com que ela se abrisse e revelasse o motivo pela qual ela estava tão decidida a cometer suicídio.

Nesse mundo, haviam pessoas a quem era negada a oportunidade de viver, mesmo que elas quisessem muito ter uma vida...

Mas ele não tinha intenção de pregar a ela algo sobre isso.

O próprio Raishin abrigou pensamentos como esses logo após perder sua família. Viver era difícil e tudo o que ele queria era desistir e simplesmente acabar com tudo aquilo. Uma vez que a pessoa se preparasse, nenhuma palavra seria capaz de minar sua determinação. A pessoa que tinha mudado a mente de Raishin— dado a ele uma razão renovada para continuar a viver fora o seu irmão que, ironicamente, era a mesma pessoa que havia feito com que ele viesse a pensar que o suicídio era uma boa ideia.

A vingança tornou-se a razão pela qual o Raishin continuou a viver.

Por isso, em vez de pregar a ela, Raishin optou por uma abordagem mais suave.

— Eu não sei o que vai acontecer uma vez que você for para o outro mundo e eu nem mesmo estou certo de que há mesmo um outro mundo. No entanto, se houver, ele é provavelmente tão escuro quanto este lugar. Sombrio e cheio de pessoas mortas.

— ... uu.

— Alguém com tanto medo de fantasmas quanto você, não deveria ir para o outro mundo por vontade própria.

— Eu... mesmo eu... estou com medo... de morrer...

Como ele pensava, Henri não era alguém que ‘queria morrer’.

Nesse caso, deve haver outra razão para suas contínuas tentativas de suicídio. Talvez fosse algo como se ela tivesse que morrer...?

— Em qualquer caso, não se preocupe. Eu estou aqui com você agora. Mesmo que seja só eu, ao menos você não está sozinha. Nós vamos procurar a saída juntos e eu prometo que não vou deixar você morrer tão facilmente.

Inquieta, Henri ergueu a cabeça.

Por um instante, o olhar no rosto dela desencadeou nas memórias do Raishin a imagem do rosto da irmã dela.

— Minha parceira é uma pessoa extremamente ciumenta. Assim que ela descobrir que eu estou sozinho aqui com outra mulher, ela irá mover céus e terra para vir atrás de nós aqui em baixo. É por isso que vai ficar tudo bem. A ajuda definitivamente vai chegar.

Henri olhou para baixo, antes de finalmente balançar a cabeça.

Era, finalmente, o primeiro gesto honesto que ela tinha feito desde que Raishin a conhecera.

— Tudo bem então. Vamos lá.

Raishin estendeu a mão para puxá-la para cima.

Henri hesitou. No entanto, embora ela tivesse medo de homens, parecia que o medo que ela estava sentindo naquela situação era ainda maior. Cautelosamente estendendo a mão, como se estivesse esticando-a na direção de um cachorro louco, ela agarrou a mão de Raishin.

 

Parte 5

 

O terreno em que as ruínas da torre do relógio ficavam havia sido completamente limpo.

O entulho, que tinha sido empilhado, tinha desaparecido completamente.

Em seu lugar havia uma cavidade em forma de taco. Aquilo se parecia exatamente com uma das crateras lunares.

Ela ouviu que um grande buraco havia sido aberto, mas do ângulo em que estava era difícil dizer. Frey ficou nas pontas dos pés e inclinou-se para trás, tanto quanto fosse possível, antes de perder o equilíbrio e cair de costas.

A área circundante foi isolada com uma corda, restringindo o acesso dos estudantes comuns.

O pessoal da segurança estava alinhado e todos seguravam suas armas, seus autômatos também estavam lá. Como se isso não fosse o bastante, os membros do Comitê Disciplinar também estavam posicionados. A segurança era muito pesada e toda aquela multidão estava atrapalhando.

— Ei, você conseguiu confirmar o número de vítimas? Quantas pessoas caíram ali dentro?

— Não faço ideia. Como está o Diretor? Ele está vivo ou morto?

— É verdade que alguns alunos foram pegos pela explosão?

— Eu vi isso. Era um garoto oriental e eu acho que vi uma garota caindo também.

—...um oriental?

Frey ficou pálida, apressadamente correu em direção a corda de isolamento.

Entretanto, as pessoas de lá, obviamente, não a deixaram passar. Uma estudante ficou em seu caminho. A braçadeira em seu braço tinha os dizeres ‘Censura’ nela. Era um membro do Comitê Disciplinar.

— Você não pode ir mais longe do que isso. Há um risco do chão sofrer um segundo colapso.

— Erm... só um pouquinho...

— Não significa não.

—  ...

Soluço.

— Mesmo que você chore, eu não vou deixá-la passar. Isso é algo que o Conselho de Administração decidiu. Não há outra maneira.

Levemente enxotada dali, Frey não teve escolha a não ser voltar.

Em frente a ela, no entanto, havia alguém de sandálias bloqueando o caminho.

Olhando para cima, ela viu que a pessoa tinha o mesmo cabelo cor de pérola que ela, assim como os mesmos olhos vermelhos.

— Isso não me cheira bem.

Seu irmão mais novo, Loki, estava ali com a ajuda de uma muleta. Considerando que ele ainda era um paciente internado e que seu tendão ainda lhe causava problemas, ele devia ter precisado fazer muito esforço para fazer todo o caminho até este lugar.

Um olhar infeliz surgiu em seu rosto, antes que ele falasse com desdém.

— Ele mal recebeu alta e já se meteu em problemas. Ele deve ter nascido sob alguma estrela amaldiçoada. Não se envolva com ele, ou esse azar vai se espalhar e devorar você.

Após insensivelmente declarar sua opinião, ele deu as costas para as ruínas da torre do relógio. Observando-o ir embora com passos vacilantes, Frey se perguntou por que ele tinha se preocupado em andar todo o caminho até ali e achou que isso fosse muito estranho.

— Raishin...

Obviamente, não havia ninguém para dar a ela uma resposta.

Ao mesmo tempo, havia um grupo de pessoas se reunindo entre as árvores, a uma curta distância da torre do relógio.

Escondendo-se entre as árvores, eles estavam secretamente observando as ruínas da torre do relógio.

Todos eles estavam vestindo mantos negros. O capuz e a bainha eram incrustados com fios de ouro, deixando a roupa muito bonita. Até onde os olhos podiam ver, haviam quatro sombras. Nenhuma das quatro estava emitindo qualquer traço de sua presença, tornando-se impossíveis de se detectar. Não havia nenhuma figura de autômato nas proximidades, mas não haviam dúvidas de que os quatro eram magos soberbos.

Olhando para eles, Yaya recuou ligeiramente. Se autômatos tivessem algo parecido com instinto, então Yaya estava sentindo um medo instintivo neste momento.

Ao lado dela, Kimberly estava encostada em uma árvore. Embora ela estivesse usando seu jaleco habitual, não restavam dúvidas de que ela era, definitivamente, um deles.

— Cara, oh cara, aquela pequena punk levada foi lá e fez algo interessante. E pensar que ela iria realmente destruir um monumento cultural com cem anos de história gravados nele. Além disso, ela até mesmo eliminou as ruínas.

Houve uma risada sarcástica. Acima de sua cabeça, um homem pousado em um galho havia silenciosamente aberto a boca.

— Agora, então, o que você irá fazer, camarada Nightingale... ou eu deveria dizer, Professora Kimberly?

— Eu estou pensando nisso no momento, camarada Turtledove.

Atrás dos dois, outras três sombras falaram.

— O objetivo do inimigo está claro. Devemos nos mover para fornecer proteção ao Diretor de uma vez.

— Eu concordo com o Crow. No momento, não podemos nos dar ao luxo de permitir que o Diretor morra. Além disso, seria uma boa oportunidade para verificarmos a Catedral dos Tolos com nossos próprios olhos.

— ...eu também não tenho objeções à sugestão do Crow.

— Por favor, aguardem. Se fizermos algum movimento imprudente, corremos o risco de fazer com que a Catedral desapareça e isso seria um problema.

Kimberly interrompeu bruscamente, bloqueando os três que estavam inclinados a agir.

 — Nosso objetivo é simplesmente observação e vigilância. Nós evitamos o vazamento de informações sobre o ocorrido, mas não podemos agir por conta própria. Se agíssemos agora, há uma chance de que acabássemos alterando o destino em si.

Os três ficaram em silêncio. As objeções de Kimberly eram muito bem fundadas.

O homem chamado Turtledove voltou a falar, como se estivesse representando os demais.

— Nightingale. Você mencionou que o Penúltimo também desapareceu?

— Sim, ele deve ter nascido sob alguma estrela amaldiçoada. Ele é um estudante analfabeto sob minha tutela, mas pode ser sagaz e estranhamente exigente às vezes. Sem erro que ele vai sempre estar no meio de qualquer confusão acontecendo.

— O único sobrevivente do Clã Akabane... poderia ser que fosse sobre ele que o Pai estava falando...

— Existe a possibilidade. Embora ele pareça ser um pouco falho, ele realmente é único.

— Compreendo. Embora eu não possa negar que esse curso de ação é frouxo, nós devemos respeitar as instruções do Pai. Apesar de todas as probabilidades, nós recebemos ordens para continuarmos com nossa observação silenciosa.

Ele olhou em volta. Os outros membros assentiram com a cabeça.

— Nightingale. O que você vai fazer?

— Alguém tem que ficar aqui para observar, certo? Se acontecer algo dentro da Academia, eu irei reportar no mesmo instante.

Com isso, seu plano foi estabelecido. As sombras desapareceram uma após a outra. Desapareceram silenciosamente, como se fossem fantasmas.

No fim, Yaya não conseguiu dizer nem sequer uma palavra. Tudo o que ela podia fazer era assistir enquanto a discussão entre eles prosseguia.

Assim que Kimberly foi deixada sozinha, ela relaxou e deixou escapar um suspiro de alívio.

— Estou preocupada com eles, mas vamos sair daqui primeiro. Você está bem, Yaya?

— Si- Sim. Desculpe-me, mas o que você vai fazer a respeito do Raishin?

— Vamos deixa-lo por enquanto. No entanto, eu não quero que você pense que eu estou sendo fria aqui. Uma vez que ele retornar para a superfície, nós iremos garantir sua segurança. Não iremos permitir que ele morra tão facilmente.

Enquanto caminhava, Kimberly se virou apenas uma vez.

— Se ele realmente for o rapaz que o Pai previu, então ele certamente não irá chutar o balde em um lugar como esse... agora, então.

Kimberly sorriu como um gato. Yaya não entendia o que ela estava falando e sua cabeça estava ligeiramente inclinada, em perplexidade.

 

Parte 6

 

Confiando na lamparina, Raishin e Henri desceram ladeira abaixo.

A área iluminada pela lamparina não se estendia muito. Ter que descer pela areia era uma tarefa difícil. Mesmo assim, depois de meia hora descendo a encosta, eles finalmente chegaram ao nível do solo.

A superfície sob seus pés era dura. Eles estavam andando sobre rocha.

— Espero que a partir de agora fiquemos sempre no nível do solo. Mesmo assim, eu ainda não consigo ver nada na minha frente.

Enquanto dava vários passos à frente, subitamente a figura de Henri afundou. Ela estava caindo!

A reação de Raishin foi rápida. Com o braço esquerdo, ele agarrou o pulso de Henri, colocando toda a sua força para puxá-la para cima de uma só vez. O impulso gerado fez com que ambos caíssem para trás sobre o chão de areia.

A luz da lamparina brilhou claramente no lugar em que Henri estava, iluminando o penhasco em que ela quase havia caído.

Ele não podia ver o fundo, o que significava que era profundo. Os detritos que tinham caído pelo buraco mais cedo, provavelmente tinham mergulhado por este abismo. Para ele, pareceu que cair ali seria completamente o fim da linha.

Durante o mais breve dos instantes, ele pensou ter visto alguma coisa branca perto do pé do penhasco... um objeto em forma de cúpula.

Um castelo... ou uma Catedral?

Não, ele deve ter se enganado. Não havia nenhuma maneira de que a luz pudesse chegar até tal distância, então talvez seus olhos estivessem lhe pregando uma peça.

Lembrando-se da multidão de olhos que ele havia visto antes, Raishin estremeceu involuntariamente.

Balançando a cabeça, ele se levantou e estendeu a mão para Henri, que ainda estava caída na areia.

— Você está bem? Aqui, segure a minha mão.

— Nãããão! Não me toque!

Um soco voou em sua direção e Raishin rapidamente se esquivou.

— Isso é um pouco demais para alguém que está tentando ajudar você. Por que você odeia homens tanto assim... oh, entendo. É por causa daquilo, não é? No passado, algum cara sem a menor cerimônia tratou você como o lixo de ontem...

— Na- Não! Eu juro pela honra do nome da Família Belew que nada disso jamais aconteceu... espere, esse cenário é muito rude! Como você pôde violar a mim até mesmo nessa sua imaginação selvagem?!

— O diabos que eu fiz isso! Pare de me tratar como se eu fosse algum pervertido!

Henri puxou sua boina e escondeu o rosto em seu interior, como sempre fazia.

— Eu odeio garotos. Eles são assustadores, violentos, estúpidos, sujos e também...

Mesmo com a audição excepcional de Raishin, ele não conseguiu pegar o último pedaço da sentença dela.

Ainda assim, o fato de que ele conseguiu ter uma conversa de verdade com ela era um enorme passo adiante.

Raishin riu ironicamente e estendeu a mão, desta vez lentamente, em direção a ela.

— Vamos lá. Desta vez, preste um pouco mais de atenção em seus pés.

— Tu-tudo bem... ai!

Ela tentou se levantar, mas não conseguiu. Ela devia ter torcido alguma parte de sua perna quando caiu desajeitadamente. Raishin estendeu a mão para sua canela, usando a ponta dos dedos para pressionar determinados pontos.

— Kya! Isso machuca!

— Desculpe. Mas ao menos não está quebrado.

— Como você pode saber com certeza?

— Eu sei jiu-jitsu. Jiu-jitsu especializado em hematomas e ossos quebrados.

— Jujitsu?

— É uma arte de luta criado no Japão. Deixando isso de lado, se sua perna estivesse quebrada, você estaria chorando de dor agora e a experiência seria dolorosamente intensa.

Henri não era tão pesada. Ele percebeu que poderia carregá-la nas costas, mas...

Henri odiava homens. Ela provavelmente ficaria extremamente angustiada se tivesse que ser carregada por Raishin. Além disso, Raishin não estava em condições plenas. Se ele a carregasse, andar uma grande distância seria um problema.

— Bem, não posso fazer nada, eu acho. Nós vamos ter que esperar a ajuda aqui mesmo.

Forçosamente usando seu ombro para apoiar Henri, que parecia infeliz com isso, eles se moveram um pouco ao longo do penhasco. Posicionando-se a uma distância segura de qualquer queda potencial, eles sentaram-se no terreno rochoso.

— Eu tomei o café da manhã antes de vir para este lugar, mas e quanto a você?

— ...não posso fazer nada. Eu não tive a chance de fazer isso.

— Aqui.

Raishin ofereceu a ela um pacote. Estava bem embrulhado com papel parafinado. Henri o pegou e o desembrulhou, revelando um pão duro em forma de palito.

Estava coberto de açúcar. Em vez de dizer que aquilo era um pão em forma de palito, seria mais correto dizer que era como um donut em forma de palito.

— Está um pouco amassado, mas ainda é comestível. Vá em frente, coma.

— ...você sempre carrega algo assim com você quando sai?

— Isso salvou minha vida mais de uma vez. Eu também sempre carrego água comigo.

Henri olhou para o pão duro por algum tempo, antes de dar uma mordida.

Era um alimento portátil bruto. Ele não achava que aquilo fosse servir para o paladar refinado dela, mas...

— Isso é delicioso...

Inesperadamente, ela murmurou isso, embora mantivesse seu rosto virado para baixo, escondendo sua expressão.

Era igual a quando Charl virava a cabeça. Ambas tinham vergonha que os outros vissem as expressões em seus rostos.

Depois de terminar o pão e a água, Henri abraçou seus joelhos. Suas palavras saíram aos poucos.

— ...eu sinto muito. Isso tudo é culpa minha.

— O que foi isso? Você comeu alguma coisa estragada?

— Se eu tiver comido algo estragado, foi você quem deu para mim, em primeiro lugar!

Ela recuperou algum vigor durante sua explosão, mas ele se foi tão rápido quanto havia aparecido e ela voltou a fazer uma expressão sombria.

— Sabe, você realmente é a irmãzinha da Charl. Você faz a mesma expressão que ela quando está com raiva.

— ...você quer dizer algo na linha de que minha irmã é mais bonita que eu, como todos os outros, não é?

Henri subitamente deu uma risada irônica vazia enquanto virava a cabeça.

— Afinal de contas, todos os garotos estão sempre dizendo... que minha irmã é...

Assim que ele ouviu essas palavras sendo sussurradas, um sentimento indescritível começou a se espalhar dentro do peito de Raishin.

No começo, ele tinha pensado que não fosse nada, mas agora suas convicções sobre aquilo tinham mudado.

Um enorme senso de ridículo começou a crescer dentro dele, fazendo cócegas em seus lábios, até que finalmente Raishin desatou a rir.

— O que... que rude! Como você pode rir... como se atreve a rir... seu!

— Não jogue areia em mim! Eu não estou rindo de você ou nada parecido!

Com lágrimas nos olhos, Henri olhou para Raishin. Havia uma mistura de confiança e de desconfiança em sua expressão.

— Eu também tenho um irmão mais velho cujo talento extraordinário é melhor descrito como sendo algo de outro mundo.

—  ...

— Ele é alguém que tem sido anunciado como o mais talentoso desde o primeiro antepassado do nosso Clã. Se Deus realmente existe, então ele era extremamente amado por ele. Alguém tão comum quanto eu jamais poderia esperar alcançá-lo. Meu pai costumava dizer o seguinte: se eu fosse o filho mais velho e meu irmão o mais novo, isso teria causado um grande problema na sucessão do Clã.

Henri olhou para Raishin como se estivesse olhando para algo fascinante.

— Os adultos estavam sempre comparando nós dois. A verdade era que ele e eu éramos tão diferentes quanto o céu e a terra. Infelizmente, eu era a humilde terra.

Como ela iria lidar com a declaração espontânea de Raishin?

Depois de um tempo, Henri recomeçou a falar pouco a pouco.

— Quando éramos crianças... a Onee-sama... ela era muito popular.

— Popular... vendo como ela é agora, eu simplesmente não consigo imaginar que isso já tenha acontecido.

— As pessoas sempre se reuniam ao redor dela.

— Claro, mas hoje em dia eles mantém distância.

— Ela sempre foi muito amável e gentil com todos.

— Ela é sempre tão mal-humorada com todos.

Raishin a interrompeu em cada uma das declarações, mesmo que ela continuasse a falar com firmeza. De algum modo, ou melhor, havia uma lacuna extrema entre a Charl das memórias de Henri e a Charl de atualmente. Talvez sua personalidade tivesse sido moldada devido a suas circunstâncias recentes? Raishin analisou a possibilidade.

Naquele momento, houve um farfalhar de pano.

Havia sido apenas a alguns metros de distância. Alguém estava extremamente próximo a eles!

— Responda à minha pergunta de forma concisa, por favor.

A intenção assassina preenchia a voz metálica, como se ela estivesse sussurrando em seu ouvido.

Um instante depois, houve o som de alguém pousando. Raishin percebeu que era o som dele mesmo pousando após ter saltado para trás.

Alguém havia surgido sorrateiramente atrás dele e aterrissado. Esse alguém era mais rápido do que qualquer coisa que Raishin pudesse fazer.

(Mesmo com as minhas reações, eu não posso fazer nada!?)

— Você é inimigo do meu senhor?

Sem responder, Raishin virou-se lentamente.

A pessoa misteriosa não pareceu pensar que este ato fosse hostil. Graças a isso, Raishin foi capaz de dar uma olhada no rosto da pessoa.

Era uma garota. Ela estava usando uma touca lotada de babados. Haviam minúsculas fitas amarradas em seu cabelo, que mesmo na escuridão, Raishin podia dizer que era rosa vívido. Ela tinha sobrancelhas finas e um nariz pequeno. Seus traços faciais eram modestos e graciosos, mas ela tinha esse brilho suave que a fazia parecer muito adorável.

Era um rosto que ele nunca poderia e nunca iria esquecer...

— Nadeshiko...!

Era o rosto de sua irmã morta.



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