Volume 2

Capítulo 6: A Escolha do Idiota

Parte 1

 

A besta soltou um uivo. Nesse instante, energia mágica foi reunida e um ataque mortíferolançado.

Loki e Cherubim saltaram para desviar e a chuva de balas espalhou-se pelo campo de batalha, colidindo com os pilares de pedra que marcavam os limites do campo. Fragmentos de

pedra voaram com o impacto, um deles cortou o rosto de Charl.

(O que exatamente é isso...!?)

Os olhos de Charl estavam fixos na batalha em curso. Rabi estava atacando

implacavelmente e a batalha havia se transformado unilateralmente a seu favor. Uma recarga

de energia seguida por um tiro de canhão. Contra os ataques rápidos de Rabi, Cherubim nada

podia fazer além de desviar de cada um dos tiros.

Uma vez que Rabi estava usando uma grande quantidade de energia, a pele de Frey

continuava a se rasgar e ela continuava sangrando.

A essa altura, Frey já não conseguia mais andar. Ela estava de joelhos, contorcendo-se de

agonia.

Pairando sobre a cabeça de Charl, Sigmund sussurrou.

— Isso não é bom. A energia mágica da Frey está sendo retirada forçadamente dela.

— Forçadamente... o que vai acontecer?

— Se isso continuar, aquela garota vai morrer!

Rabi ainda estava destruindo tudo, atacando Cherubim furiosamente. De repente, porém,

seus tornozelos foram cortados por pequenas espadas.

Espadas curtas tinham saído de todas as partes de Cherubim e, incapaz de resistir a elas,

Rabi foi forçado a recuar.

As oito pequenas espadas estavam flutuando. Com Loki no centro, elas giravam lentamente ao redor dele.

— Aquela é a ‘Barreira de Espadas’...!

Essa era a razão pela qual Loki era considerado um rival direto para Magnus. Aquela era uma barreira que automaticamente atacava qualquer um que entrasse em sua zona de controle.

No momento em que Rabi colocou um pé a frente, as espadas moveram-se bruscamente, impiedosamente cortando-o.

As espadas o perfuraram, penetrando a perna e fazendo pedaços de carne voarem.

Entretanto—

Perto do local das feridas, bolhas estavam sendo formadas, curando as lesões de Rabi.

Que incrível capacidade regenerativa! No entanto, essa regeneração parecia ter um preço.

Absorvendo as feridas no lugar de Rabi, mais e mais sangue voava do corpo de Frey,

evaporando e tornando-se uma névoa negra.

(O sangue dela está sendo convertido em energia mágica...!)

O sangue fresco era um excelente material para artes mágicas, devido a sua elevada

pureza. Era parecido com queimar gasolina. Fosse devido a algum mecanismo especial ou a

uma arte mágica, o sangue dela estava sendo forçado a se converter em energia mágica.

Sem dizer que, obviamente, havia um limite mortal de sangue que poderia ser convertido.

Do jeito como as coisas estavam indo, Frey com certeza iria morrer!

— Cherubim, pare!

[Sim...?]

Recebendo o comando de Loki, Cherubim cessou o ataque.

Essa era abertura para Rabi escapar, mas escapar era a última coisa na cabeça de Rabi no

momento.

Avançando rapidamente, ele ferozmente atacou a cabeça de Cherubim, mandando-o para

longe. Rolando com o impulso, ele voou até Loki, caindo sobre o jovem.

Mostrando suas presas, Rabi tentou esmagar a traqueia de Loki. Loki tinhas suas duas mãos

ao redor do pescoço de Rabi, empurrando-o. No entanto, a força de Loki era apenas humana.

As mãos dele não poderiam manter o cão longe por muito mais tempo.

— Uu... Rabi... Não...!

Com seu sangue voando, Frey gritou. Entretanto, Rabi não parou ou não pode ouvir as

palavras dela. Incapaz de ficar quieta, Charl começou a se mover na direção de Frey.

— Espere, Charl. O que você está planejando fazer?

Sigmund cravou suas garras na boina dela. Charl respondeu com clara irritação.

— Não importa como você olhe, isso não é normal! A Obrigação da Nobreza manda que eu

salve uma vida caso eu seja capaz de—

— Você não pode!

Não foi apenas Sigmund. Outra voz diferente impediu Charl.

— Conheça o seu lugar, Charlotte.

Virando a cabeça, Kimberly estava parada atrás dela.

— Os únicos que são permitidos no palco da Festa Noturna são aqueles que foram

convocados. Sua vez ainda será daqui a vários dias... Subir ao palco da Festa Noturna sem ter

sido chamada é considerada uma falta de educação.

— Mas, Professora! Essa não é a hora e nem o lugar para dizer isso!

— Não se preocupe, apenas relaxe. Existe alguém mais qualificado do que você para ajudá-

los, afinal.

Kimberly sorriu. Ela estava olhando para além de Charl, seu olhar voltado para algo no

campo.

Com um mau pressentimento no coração, Charl virou-se.

É verdade. Hoje à noite, havia apenas mais uma pessoa que poderia estar no palco da Festa

Noturna.

Passando ao lado de um Cherubim imóvel, algo estava correndo.

Esse algo chutou Rabi, soltando Loki.

Usando o impulso para se apoiar, saltou para trás. A misteriosa sombra se dividiu em duas,

e cada uma delas pousou.

Uma delas era um autômato de primeira linha com um bonito cabelo preto. E, a identidade

do outro—

— ... Aquele. Tolo. Idiota!

Vapor subia da cabeça de Charl.

Aquele idiota tinha um sorriso no rosto e falava com uma atitude despreocupada.

— Permita-me participar. Afinal, eu não tenho um parceiro para essa dança.

Parado no meio do campo de batalha, estava a pessoa que deveria, supostamente, estar

severamente ferida, ninguém menos que o Penúltimo.

 

Parte 2

 

A palpitação da ferida dava a ele uma sensação de queimação, como se seu peito estivesse

em chamas.

Mesmo que a dor no peito estivesse esfaqueando-o, Raishin ainda sorria.

Mesmo que ele mesmo achasse isso estranho, ele estava sorrindo. Não importa o quanto

ele sorrisse, isso não mudava o fato de que ele não poderia fazer praticamente nada. Se ele

perdesse a concentração por um momento, seus joelhos iriam começar a ceder. O fio que

mantinha seu peito junto estava tenso, como se pudesse se romper a qualquer momento.

Acima disso, ele não poderia usar seu braço dominante.

Mesmo assim, ele tinha que fazer isso.

O físico de Rabi era como o de um urso e ele estava rosnando com um tom baixo. Raishin

deu um passo à frente, na direção dele,

— Vamos fazer isso, Yaya. Suimei Nijuu—!?

Subitamente, algo colidiu lateralmente com ele. Fraco, ele não foi capaz de resistir e caiu drasticamente.

Tendo feito uma entrada tão legal, esse sucessão de acontecimentos era embaraçosa.

Raishin rapidamente pôs-se de pé, e virou-se na direção do culpado— Loki, que havia se atirado contra ele.

— O que diabos você pensa que está fazendo!?

— Isso é o que eu deveria estar dizendo. Pessoas não relacionadas como você deveriam ficar

de fora. Cherubim!

[Estou pronto]

Ao comando de Loki, Cherubim começou a flutuar. Antes que o autômato de metal pudesse

fazer qualquer coisa, no entanto, Raishin bateu na parte de trás da cabeça de Loki, interferindo

em suas ações.

— O que você está fazendo!?

— Essa é minha fala! O que exatamente você está fazendo!?

— Seu imbecil! Obviamente eu estou indo parar o Rabi!

— Você que é idiota! Se você atacar, então isso vai pôr a vida da Frey ainda mais em perigo!

— Você não sabe de nada! Um imbecil como você deveria apenas calar a boca e me assistir!

— Você que deveria estar me assistindo”

— Não, você!

— Você!

Mais uma vez, os dois começaram a brigar feito crianças. Esse não era nem o lugar e nem a

hora para isso, mas os dois realmente não conseguiam se dar bem. Enquanto eles estavam

discutindo, Rabi avançou na direção deles... mas Yaya e Cherubim combinaram-se lindamente

para bloquear Rabi.

— Então, o seu plano é ficar no meu caminho de qualquer jeito?

Loki falou com uma clara intenção assassina. Raishin olhou diretamente nos olhos dele,

— É claro que sim. Isso porque o seu plano é matar o Rabi.

— ... Se eu não fizer isso, alguns dos espectadores podem acabar se ferindo. Frey também

vai acabar morrendo desse jeito.

— Se é assim que você se sente, então você deveria apenas se afastar. Deixe que eu paro

ele.

No instante seguinte, a perna de Loki descreveu um arco no ar.

O chute acertou em cheio a cintura de Raishin. A dor subiu até sua clavícula, fazendo

Raishin gritar de agonia.

— Veja. O que você espera conseguir fazer no seu estado atual? Há apenas uma pessoa que

pode salvar a Frey, e essa pessoa sou eu.

Ele virou a palma de sua mão para Cherubim. O autômato começou a se transformar.

Soando muito parecido com uma tempestade enquanto se transformava, Cherubim

assumiu sua forma de espada gigante.

— Um único golpe limpo e o Coração será destruído e, assim, o monstro vai parar. Então,

Frey estará salv—

— Isso não vai salvá-la!

A voz de Raishin o atingiu como um tapa na cara.

— Você não entende!? Ela gosta muito do Rabi... ele é praticamente da família para ela! Se

você matar o Rabi e salvar apenas ela, isso não poderia ser considerado um resgate no fim das

contas!

— —Então, o que você quer que eu faça!? Fique parado e assista a morte da Frey!?

— Não!

Enquanto gritava, ao mesmo tempo ele colocou as mãos nas costas de Yaya, canalizando

energia mágica diretamente para ela.

— Eu vou salvar os dois. Suimei Nijuuyonshou!

— Entendido!

Agachando-se, Yaya disparou com um impulso, como uma rajada de vento.

Talvez tenha sido devido a algum tipo de intuição animal, mas Rabi agiu como se tivesse

percebido algum perigo. Movendo-se para os lados, ele se desviava de Yaya, que se

aproximava. Entretanto, Yaya ajustava seu corpo, perseguindo-o.

Parecia que aquilo era um jogo de tiro ao alvo. A velocidade da disputa fez com que os

espectadores se mexessem.

— Estou contando com você, Yaya. Segure-o!

Yaya estava mantendo Rabi ocupado, desviando sua atenção. Usando essa oportunidade,

Raishin avançou. Chegando até Frey, que se contorcia, ele a pegou.

Além de matar Rabi, havia apenas mais um jeito de pará-lo.

Ao invés de infligir danos a Rabi, ao invés disso ele iria deixar Frey inconsciente.

Inconsciente, um marionetista não era capaz de liberar nem mesmo pequenas quantidades

de energia mágica. Era devido a mesma razão pela qual os animais não possuíam energia

mágica. A combinação de um baixo nível de consciência e baixo nível de inteligência significaria

que um ser humano não seria capaz de gerar nenhuma energia mágica.

Os olhos de Frey estavam vagos e sem foco. Raishin engoliu em seco, hesitando por um

breve momento. Não era a primeira vez que ele fazia isso, mas uma vez que sua oponente era

uma garota, ele podia sentir sua determinação enfraquecendo.

Entretanto, não havia outra forma.

Se ele fosse ser o tipo de pessoa que deixaria as coisas pela metade agora, então ele nunca

seria capaz de proteger ninguém.

Colocando seu braço ao redor do pescoço de Frey, ele começou a apertar seu braço com

força ao redor do cachecol dela.

Subitamente, Rabi mudou de direção e começou a correr na direção de Raishin.

Raishin reagiu imediatamente, empurrando Frey enquanto se esquivava. Incapaz de se

manter de pé, Raishin caiu e a sombra de Rabi ficou sobre ele.

Os dentes afiados de Rabi aproximavam-se da garganta dele. Yaya, ela... não conseguiria a

tempo!

— Raishin!

Ele escutou o grito desesperado de Yaya e então—

O som de algo duro colidindo chegou aos seus ouvidos.

Não era o som de dentes se fechando, mas o som de uma espada gigante interceptando

presas.

Como se estivesse protegendo Raishin, as costas de alguém estavam diante dele. Esse

alguém era Loki e a coisa que havia parado Rabi era a espada gigante em suas mãos.

— Loki...

— Se eu pudesse dizer por mim mesmo, eu sou uma pessoa tolerante... mas agora, eu estou

com vontade de matar pessoas que só sabem falar!

Enquanto competia em força contra Rabi, Loki cuspiu suas últimas palavras.

— Assim que eu acabar com ele, você é o próximo!

Raishin sorriu sombriamente e pôs-se de pé.

— Que seja. Eu ficarei feliz em chutar sua bunda.

— Fale por você mesmo!

Os dois moveram-se ao mesmo tempo.

Loki balançou sua lâmina gigantesca, mandando para longe o corpo de Rabi.

Imediatamente depois, ele fez com que Cherubim voltasse a sua forma original, enviando-o

para cima de Rabi.

Entretanto, ele não fez nenhuma tentativa de cortá-lo. Ele meramente mostrava suas

lâminas, forçando Rabi para trás. Rabi logo encontrou Yaya, que estava esperando. Preso entre

os dois autômatos, Rabi não podia se mover.

Enquanto isso acontecia, Raishin já estava ao lado de Frey. Assim como ele fez antes, ele

envolveu o pescoço dela, comprimindo sua artéria carótida.

Quase instantaneamente, com o fluxo de sangue para seu cérebro interrompido, os

membros de Frey tombaram, moles.

Rabi começou a cambalear de dor.

Arranhando o chão com as patas dianteiras, ele começou a sacudir a cabeça. Suas patas

pareciam instáveis e sua cauda caiu, sem energia.

Seus músculos, que haviam aumentado de tamanho, começaram a diminuir na frente de

todos.

E então, ele caiu com um estrondo. Tudo isso aconteceu tão rápido, que foi assustador.

Assim que todos pensaram que havia acabado, aconteceu.

O ombro de Rabi se abriu, espalhando sangue e carne para todos os lados.

 

Parte 3

 

Mal haviam se passado dez minutos após o final inconclusivo da batalha.

Na entrada da Faculdade de Medicina, alguém estava inquieto, andando de um lado para o

outro.

Era Raishin. Incapaz de manter a calma, ele estava esperando por alguém. Yaya o observava

com preocupação. Ela ainda estava preocupada com as feridas de seu mestre.

Finalmente, os pés de Raishin pararam de se mover. Seu agudo senso de audição tinha

captado o som de passos.

Os olhos dele confirmaram o que seus ouvidos haviam mostrado. A luz, que brilhava

fracamente, revelava a identidade das sombras que se aproximavam. Não havia a menor

probabilidade de que ele confundisse aquele quimono. Eram Shouko e Irori.

Raishin correu até elas assim que as viu.

— Desculpe. E obrigado. Eu... Além da Shouko, não há mais ninguém em quem eu possa

confiar...

— Guarde sua história para mais tarde. Onde está o autômato danificado?

O mais depressa que pode, Raishin levou Shouko até a Enfermaria.

Abrindo a porta, quatro figuras surgiram em seu campo de visão.

Havia um médico de óculos. Kimberly, que estava escorada em uma parede. E duas garotas

da Equipe Médica. Do lado oposto da sala, Frey estava recebendo tratamento, dormindo em

uma cama simples.

A primeira pessoa a reagir foi o Doutor Cruel.

— Uma Deusa...!?

Após deixar isso escapar, ele rapidamente tentou suavizar sua aparência e colocou um

sorriso refrescante no rosto. Enquanto continuava a trabalhar em Frey, ele falou:

— É um prazer conhecê-la. O que traz uma dama tão requintada a um lugar miserável como

este? Infelizmente, como você pode ver, estou um pouco ocupado no momento, então, talvez

se você puder esperar—

— Sim, também é um prazer conhecê-lo, garoto mal-educado.

— Garoto!?

— Se você realmente quer me encantar, sugiro que primeiro você aprenda a etiqueta

adequada a um ser humano e, então, tente novamente.

Passando por Cruel como se ele nem mesmo estivesse ali, Shouko caminhou até o centro

da sala.

Rabi estava deitado sobre uma mesa.

Uma vez que Rabi era um autômato, normalmente ele não ficaria sob a jurisdição da

Enfermaria. Entretanto, como ele era em grande parte orgânico, ele não fora levado para os

departamentos de tecnologia ou de engenharia, tendo sido enviado para cá ao invés disso. E

também, ele foi trazido para cá para que pudesse ficar próximo de sua marionetista, Frey.

Shouko olhou de canto de olho para Kimberly, que estava ao seu lado.

— Está tudo bem eu estar aqui sem ter sido convidada?

— Eu não ligo. Na verdade, estou emocionada. Eu vou poder assistir a famosa Karyuusai em

ação.

Tendo adquirido autorização, Shouko começou a mexer em seu tapa-olho, escolhendo uma

lente para examinar Rabi.

De uma forma ou de outra, ela parecia estar olhando para o corpo de Rabi com algum tipo

de filtro de raio X. Você podia ver e ouvir a energia mágica fluindo através de seu tapa-olho.

Sem levantar a cabeça, Shouko começou a gritar instruções com uma voz afiada.

— Eu vou precisar de uma pinça de isolamento, um cateter de condução, etanol e de água

destilada. Depois disso, vou precisar de um pouco de sal. Irori, traga-me uma bacia com gelo. E

também, Professora Kimberly, posso incomodá-la e pedir que você corte uma mecha de cabelo

daquela garota dormindo logo ali?

Enquanto falava, ela enfiou a mão na manga e tirou de lá um pacote. Abrindo-o, haviam

várias ferramentas de diferentes tamanhos amontoadas lá dentro. Além disso, diversas pedras

preciosas rolaram para cima da mesa com um barulho, para as quais Raishin pode apenas

olhar com olhos invejosos.

— Joias...?

— Você realmente não sabe de nada. Essas são pedras mágicas. Elas são baterias naturais

para armazenar energia mágica. Devido a sua composição cristalina, elas são capazes de

armazenar energia mágica de alta qualidade dentro delas.

Enquanto cortava o cabelo de Frey, Kimberly sussurrou ao ouvido de Raishin.

As mãos de Shouko moviam-se rapidamente. Removendo a corrente que ela tinha ao redor

da cintura, ela a posicionou a sua frente, colocando-a em Rabi.

Era uma barreira. Parecia muito similar a técnica usada pelo Clã Akabane.

A seguir, Shouko segurou uma corda com a boca, usando-a para segurar as longas mangas

de seu quimono.

Seus braços eram brancos e finos. Seus dedos também eram longos e finos e eram um

pouco ossudos para uma dama. Com uma aparência de que eram usados com regularidade,

eram os dedos de uma mestre artesã.

Finalmente, a ‘operação’ de Shouko havia começado.

O modo como ela usava suas mãos era polido e refinado, sem nenhum movimento perdido.

Ela parecia não perder absolutamente nenhum deles. Era como se ela soubesse exatamente o

que fazer e exatamente quando fazer.

Era como assistir a um pianista tocando seu instrumento. Sem tempo para se mostrar ou

para respirar, em menos de dez minutos ela havia terminado o tratamento de Rabi.

Ela usou o cabelo de Frey para finalizar, rapidamente suturando a ferida.

— Enfaixe ele.

Ela deu instruções para as duas garotas da Equipe Médica e, então, afastou-se de Rabi.

Lavando as mãos na bacia que Irori havia trazido, ela limpou o sangue.

— Bom trabalho.

Apenas admiração existia na voz de Kimberly quando ela agradeceu Shouko pelo trabalho.

— Então, esse autômato será capaz de viver por muito tempo?

— Em primeiro lugar, isso seria impossível desde o começo.

— —Essa, como posso dizer, é uma resposta bastante inesperada.

— Os órgãos internos são uma completa bagunça. Se o Coração não fosse de qualidade,

seria praticamente um caso perdido.

Raishin inconscientemente olhou na direção de Frey e ficou um pouco aliviado por ela

ainda não ter recuperado a consciência e não ter escutado aquilo.

— No entanto, minha regra é fazer tudo com perfeição e fazer até o fim. Eu gostaria de

reparar as partes danificadas, então ele poderia ter uma conexão mais forte com a vida. Se eu

apenas tivesse algum carvalho de qualidade comigo.

— Carvalho? Você está pensando em talhá-los?

— Eu sou uma marionetista. Ao invés da pretensão de ser uma médica, você poderia dizer

que a imagem de uma artesã de madeira combine melhor comigo.

— Ótimo, ótimo, entendi. Bem, eu estou com pressa, de modo que acho melhor ir na frente.

Kimberly caminhou para fora da Enfermaria. Depois de vê-la desaparecer de vista, Shouko

virou-se para Raishin.

— Bem então, vamos ouvir sua história.

 

Parte 4

 

Shouko caminhou pelo corredor com passos pouco naturais, com os quais Raishin havia se

acostumado.

Atrás dela, Yaya e Raishin estavam seguindo-a, como se fossem duas crianças

problemáticas sendo levadas para a sala do Diretor.

Finalmente, Shouko parou em uma varanda deserta. Irori apressou-se e abriu uma pequena

caixa, retirando um pouco de tabaco de dentro dela.

Shouko o embalou em seu cachimbo e o acendeu. Ela inspirou, exalou e bateu seu

cachimbo para limpar um pouco das cinzas.

Após terminar sua única tarefa, Shouko agora estava relaxando. Entretanto, o silêncio era

apavorante. Raishin havia falhado em completar a missão que os militares haviam dado a ele e

ainda havia feito Yaya sofrer danos severos. Sua negligência havia feito que ele mesmo

também acabasse ferido. Acima disso, por causa do seu desejo de salvar Rabi a qualquer custo,

ele havia feito algo que ele sabia que iria atrair a atenção da Academia: Ele havia convocado

Shouko. Bastava dizer que não havia falta de material que provasse sua falha.

Incapaz de suportar o silêncio por mais tempo, Raishin decidiu falar primeiro.

— Bem... Obrigado por ajudar. Eu estou em débito com você...

— Eu ainda não ajudei ninguém. Entretanto, eu vou me lembrar dessa dívida.

Enquanto colocava tabaco fresco em seu cachimbo, ela falou sem nenhum tom de raiva em

sua voz.

E então, ela gentilmente rolou uma pequena pedra sobre a palma de sua mão, para que

eles vissem.

A pequena pedra tinha um padrão gravado. Ao ver aquilo, os olhos de Raishin e de Yaya

arregalaram-se.

— Um circuito mágico! Não me diga que é do Rabi...!?

— Com isso, o objetivo dos militares foi alcançado. Agora, não deverão haver queixas,

mesmo que o deixemos viver.

 

Deixá-lo viver. Uma vez que o significado dessas palavras o alcançou, Raishin subitamente

sentiu a tensão se esvair, deixando-o exausto.

— O... Obrigado... Muito obrigado, Shouko...!

— Ainda é muito cedo para essas palavras de gratidão. Há apenas uma pequena chance

daquilo que eu fiz realmente ajudá-lo.

Mesmo que ela dissesse aquilo, Shouko havia feito tudo o que podia. Isso por si só, já o

fazia sentir-se mais animado.

Agora que ele estava exausto, a dor da qual ele havia esquecido voltou com força total. Em

primeiro lugar, o corpo de Raishin não estava em condições para que ele ficasse andando por

aí. Involuntariamente, ele encontrava-se caindo de joelhos vez ou outra.

— Isso é o mais desagradável para mim.

As palavras de Shouko o pegaram de surpresa e Raishn olhou para ela. Entretanto, parecia

que ela não estava falando da situação de Raishin. Shouko estava olhando para longe.

— Garoto, você já percebeu isso, certo? A D-Works participou da Festa Noturna apenas para

comparar os tipos Angel e Garm, fazendo-os lutar um contra o outro.

— ... Sim. A Yomi disse a mesma coisa.

— No entanto, isso é apenas uma ilusão. É uma mentira usada para camuflar o fato de que

eles estavam usando aqueles dois.

Aqueles dois. Ela estava falando sobre Frey e Loki?

— O objetivo da D-Works não era comparar os dois modelos. Embora Loki pareça realmente

estar almejando o trono de Wiseman— Frey é usada para testes.

Essa última parte surpreendeu Raishin. Ele não entendia o que Shouko estava dizendo.

Para ser mais preciso, porém, ele estava começando a entender. Todos os inúmeros fatos e

incontáveis eventos estavam gritando a verdade para ele. A fúria de Rabi. A dor assolando

Frey. Aquele imenso sangramento...

— ... Antes, durante a luta. Por que o Rabi saiu de controle?

— Você está vendo isso de forma equivocada, garoto. Quem saiu de controle foi a Frey.

— Hum...?

— Rabi estava sobrecarregado com energia mágica em um nível além do normal, e foi isso

que fez com que ele perdesse a razão. Incapaz de lidar com a tensão, seu Coração finalmente

se rompeu devido ao estresse.

— ... Eu não entendo. Do que é que você está falando?

— Você realmente não entendeu?

Raishin vacilou diante do olhar afiado de Shouko.

— O coração da Frey foi implantado com um circuito mágico.

— O qu—

Ao lado de Raishin, a boca de Yaya abriu-se devido ao choque.

O Coração de Rabi?

Não, não era isso. Não havia nada de errado com seus ouvidos. Shouko havia dito

claramente o coração da Frey!

— Se você quer forçar energia mágica para fora do hospedeiro, é necessário um circuito

mágico. Se você continuar a aumentar a afinidade do hospedeiro com a energia mágica, cedo

ou tarde a própria composição do hospedeiro será alterada.

Finalmente ele entendeu as implicações das palavras dela.

Ele tinha visto isso com seus próprios olhos antes, não tinha? Dentro daquela instalação

que era um orfanato apenas no nome. O que ele havia visto lá dentro era vil e repugnante.

— Shiramiko— neste país eles são chamados de Crianças Prometidas. Crianças que nascem

com grandes quantidades de energia mágica dentro de seus corpos. Você não acha que seria

uma grande ideia se você pudesse produzir algo assim em larga escala?

Era um pensamento louco. Era algo que uma pessoa jamais pensaria normalmente.

Entretanto, se fosse uma corporação, ou se você olhasse isso do ponto de vista do exército,

então talvez isso não fosse... completamente impensável.

Se você pudesse produzir soldados poderosos como esses em larga escala, isso seria algo a

se comemorar.

— Então, em outras palavras, Frey e Loki são...

— Homúnculos Shiramiko. Cobaias da D-Works.

A verdade atingiu Raishin como um golpe no estomago.

Yaya ficou medonhamente pálida. Mesmo Irori fez uma leve careta.

Shouko continuou em um tom conclusivo.

— Se você olhasse para a circulação de energia mágica desses dois, você teria percebido. Ela

não só é artificialmente precisa, eles também possuem um fluxo anormal de energia mágica

dentro deles. Não há dúvidas quanto a isso, os corações deles foram mecanizados.

— Então, você está dizendo que eles implantaram uma máquina em um corpo humano...?

— A mudança na coloração da pele é, provavelmente, um efeito colateral do processo. O

aumento na carga sobre o corpo pode ter causado a destruição das células de pigmentação.

— E isso... isso é algo que pode ser feito tão facilmente?

— Não seja absurdo. Você já deve ter visto isso, garoto. O que acontece com as crianças que

não resistem à operação.

O refrigerador subterrâneo continha os corpos de incontáveis crianças.

Muito provavelmente, aqueles corpos foram utilizados como materiais para o circuito

Garm.

— Não há nenhum desperdício. Honestamente falando, é tão eficiente que chega a ser

desagradável.

Um jato negro de raiva começou a surgir, preenchendo completamente o peito de Raishin.

O que diabos era isso?

(O que diabos era isso!?)

Raishin pôs-se de pé como uma bala, pronto para correr a qualquer momento.

— Espere.

Não havia espaço para discussão na voz afiada dela. Seu tom imperativo fez Raishin parar

onde estava, impedindo-o de seguir avançando.

Shouko falou com calma e lentamente, mas não havia a menor dúvida de que suas palavras

eram rigorosas.

— Você precisa descansar esta noite. No momento, eu proíbo você de deixar o terreno da

Academia.

— Por que!?

— Você está me questionando, garoto?

Os olhos dela eram frios. Eram tão terríveis quanto olhar diretamente para o cano de uma

arma carregada. Yaya encolheu-se, como um coelho assustado.

— Por que eu ordenei que Komurasaki fosse com você até o orfanato — por que eu ordenei

que Yaya ficasse para trás, você não compreende a lógica por trás disso?

— ... Vou perguntar. Por quê?

— Foi para impedi-lo de fazer algo estúpido.

— Os únicos que podem ser chamados de estúpidos são aqueles caras! Quanto tempo você

vai permitir que eles ajam como bem entenderem!?

— Pare de falar de forma tão presunçosa. Você ainda é incapaz de fazer qualquer coisa,

garoto. Eu devo ser franca com você? Você não é páreo para ele, afinal.

— Ele...?

— Bronson. Uma vez, ele também foi um dos que aspiravam o trono do Wiseman.

Ele já havia escutado aquele nome antes. Naquela vez, quando Charl lhe dera informações.

— Isso foi cinco Festas Noturnas atrás, de modo que seria em torno de vinte anos atrás. Ele

foi derrotado em algum momento na corrida até o trono de Wiseman e, assim, deixou a Festa

Noturna.

— E depois disso, ele fundou a D-Works... certo?

— Do jeito como você está agora, completamente irritado dessa forma, você nunca irá ter

chances contra ele. No momento, você nem mesmo seria capaz de enfrentar o Imperador da

Espada. Sem mencionar, garoto, que você está seriamente ferido. Não seja imprudente. Você

se esqueceu da nossa aposta?

Incapaz de responder, Raishin baixou a cabeça, rangendo os dentes.

— Se você entendeu, então sugiro que você exercite a sua prudência.

Shouko apagou seu cachimbo e friamente deu as costas para ele, afastando-se da varanda.

 

Parte 5

 

Raishin apareceu na Faculdade de Medicina com passos vacilantes. Yaya o seguia

reservadamente, mas Raishin apenas a ignorava e, em algum ponto, ela apenas desapareceu

de sua vista.

Isso continuou por algum tempo. No momento em que ele notou onde estava, já estava

diante da Enfermaria.

A Enfermaria estava deserta. Talvez fosse devido ao fato de não ter dormido na noite

anterior, mas Cruel estava deitado no sofá, em um sono profundo. As estudantes da Equipe

Médica já tinham ido embora e Kimberly também não estava em nenhum lugar onde pudesse

ser encontrada.

Ver uma cama vazia o deixou chocado.

Frey supostamente deveria estar dormindo, mas ela não estava lá. Apressadamente

entrando na sala, do outro lado da porta para a sala de tratamento, o cabelo branco aperolado

entrou em seu campo de visão.

Sua pele branca estava coberta de bandagens em vários pontos. Vários band-aids também

foram colocados nela.

Frey estava olhando fixamente para a cama de Rabi. A ponte de seu focinho estava

levemente enrugada e seus bigodes ocasionalmente se contorciam quando ele exalava.

— Você tem certeza que está tudo bem para você já estar de pé?

Surpresa, ela virou a cabeça para trás. Seus olhos assustados eram horrivelmente

vermelhos.

— Uu... Eu poderia dizer o mesmo para você.

— Nas palavras da Professora Kimberly, eu sou mais uma barata do que humano.

Isso deveria ser uma piada, mas Frey não riu.

Ela parecia completamente desfigurada. Sem saber qual seria a melhor coisa a se fazer,

Rashin falou.

— Shouko é a melhor fabricante de marionetes do mundo. Então, ela, quero dizer...

 

Ela definitivamente irá salvá-lo — ele queria dizer algo parecido com isso, mas ele não

podia apenas irresponsavelmente assumir que seria assim.

A vida e a morte de qualquer criatura viva era algo que, não importa o quanto os humanos

se esforçassem, ou quantas técnicas ou artes eles desenvolvessem, jamais poderia ser

controlado. Dois anos atrás, Raishin havia aprendido a verdade por trás dessa afirmação.

Portanto...

— ... Seria ótimo se ela pudesse ajudar, sabia?

Era tudo o que ele podia dizer. Frey silenciosamente assentiu.

— Quando ele melhorar, você deveria deixar a Charl tocar nele. De alguma forma, aquela

garota parece gostar de cães.

— A T-Rex...?

— Ela é chamada assim, mas, na verdade, ela não é má pessoa. Ela apenas é um pouco

desonesta consigo mesmo às vezes. Ela só não tem amigos devido a uma série de mal

entendidos causados por ela.

— ... Então ela é como eu.

Delicadamente acariciando a nuca de Rabi, Frey murmurou tranquilamente.

— Mas, eu não estava sozinha... Porque o Rabi era minha família.

— ... A Yomi era sua família também?

— Yomi... ela era como minha segunda mãe.

— ... Desculpe. Eu—

— Não... Isso é porque eu fui fraca...!

Fechando as pálpebras com força, lágrimas transparentes desceram pelo rosto dela.

— A verdade é que eu... eu supostamente deveria estar no palco... Mas eu, eu estava com

medo... Eu chorei... então eu desci... e por causa disso, minha mãe, ela...

Frey, de repente, ficou agitada.

Ele não sabia se deveria dizer algo a ela. Independentemente disso, Frey continuou.

— É por isso que o Loki... me odeia. Porque eu sou frac... e inútil, eu trago infelicidade aos

outros... causo mortes e não consigo proteger ninguém... se eu fosse um pouco mais... capaz,

então o Loki... não teria que virar o mestre... do Cherubim.

Como ela soluçava muito enquanto falava, era difícil para Raishin encontrar um sentido em

tudo que ela estava dizendo. Além disso, ele realmente não entendia a maior parte.

Entretanto, as palavras que se seguiram foram afiadas como uma faca, cortando o peito de

Raishin.

— Desculpe, Rabi... Eu sinto muito mesmo... Eu não pude... proteger ninguém...

Eu não pude proteger ninguém. O significado dessas palavras era absurdamente claro para

Raishin.

Ele conhecia a razão pela qual Frey estava participando da Festa Noturna. Se o

desenvolvimento do circuito Garm fosse interrompido, então aqueles cães no galpão — a

família de Frey, seriam sacrificados.

— Por causa da minha fraqueza... todos... estão mortos... Eu sinto muito... mamãe... eu sinto

muito... todo mundo... eu sinto muito... Rabi...!

Era mais do que Raishin poderia suportar. Frey estava agarrada a Rabi, engasgando-se com

as próprias lágrimas.

Suas palavras, lágrimas e as implicações delas, direcionavam Raishin para um único ponto.

D-Works. Bronson.

Frey era uma cobaia. Uma das crianças que, depois que pereciam, eram transformadas em

‘partes’.

Tomando reféns para obrigar Frey a entrar em ação, forçando-a a participar dessa Festa

Noturna contra sua vontade.

Frey não era a responsável por deixar Rabi a beira da morte e nem era responsável pelas

próprias feridas quase fatais.

Mas, mesmo assim—

Frey era a única chorando agora. A única assumindo a responsabilidade, a única suportando

a culpa, a única que estava infeliz e triste.

Ele queria abraçá-la, mas com seu braço direito imobilizado, ele não seria capaz de fazer

isso.

 

 

Então, ao invés disso, ele gritou como se estivesse dando uma ordem.

— Você está errada!

Surpresa, Frey virou-se para olhar para ele.

— ... Você não fez nada de errado. Nada. Nem mesmo uma coisa.

Raishin virou o rosto, como se estivesse tentando escapar de alguma coisa, e saiu da Enfermaria.

 

Parte 6

 

A raiva ainda ardia em seu coração quando ele saiu da Enfermaria.

Parado no corredor, com uma expressão de quem parecia ter acabado de entender tudo,

estava Yaya.

Seus olhos se encontraram por um breve momento.

— ... Yaya.

— Sim?

— Eu sou um idiota, não sou?

O sorriso no rosto de Yaya era como uma flor nascendo.

— Sim.

Apenas com isso, ele entendeu.

Raishin caminhou em direção a entrada. Atrás dele, Yaya o seguia obedientemente.

Passando pela entrada, eles foram recebidos por uma sombra sob o luar.

— Sério, esse ano a Festa Noturna está sendo um completo desastre.

A sombra murmurou com uma voz assassina. Ela tinha um corpo pequeno. Sob a luz fraca

do luar, seu cabelo dourado brilhava misteriosamente. Haviam quatro chifres no topo de sua

cabeça—ou melhor, quatro asas.

— No primeiro dia, o 99o Assento foi forçado a se retirar. E hoje, o 98o Assento foi forçado a

parar devido a uma intervenção médica. Dois dias seguidos sem que tenha ocorrido um final

limpo ou uma vitória decisiva.

Charl estreitou os olhos, dando um olhar de dúvida para Raishin.

— E onde exatamente você está planejando ir a essa hora da noite?

— ... Apenas dar uma caminhada.

— Você está indo ao orfanato dirigido pela D-Works, não está? Antes que os irmãos de Rabi

possam ser sacrificados, você está indo raptá-los, certo?

— ... Sabe, uma dama como você não deveria ficar bisbilhotando, certo?

— Idiota. Muito idiota. Você é o maior idiota da história, o ápice da pirâmide dos idiotas.

 

 

Charl estava pressionando seus dedos em suas têmporas, como se ela estivesse com

enxaqueca.

— Você faz ideia de qual é o estado em que se encontra? Mesmo que aquele médico

charlatão tenha dito, você não está em condições de andar por aí. Apenas o idiota dos idiotas

iria considerar participar da Festa Noturna nesse estado. Você pode morrer a qualquer

momento, mas você ainda quer fazer algo tão exagerado? Você tem algum tipo de desejo de

morrer?

Raishin escutou a torrente verbal em silêncio e no canto dos olhos de Charl, lágrimas se

formaram.

— Seja razoável. Você viu isso na última batalha, não viu? Aquelas pessoas não tiveram

escrúpulos para fazer aquilo com a Frey. Eles iriam matar um humano a sangue frio. Pense no

que eles fariam com um intruso.

— Com base nos mosquetes deles, eu diria que queijo suíço.

— Armas são o menor dos seus problemas. Muito provavelmente, eles vão ter autômatos

equipados para batalha esperando lá.

— Nesse caso, suas preocupações são infundadas. Eu tenho o melhor autômato do mundo

comigo.

— É por isso que você é um idiota! Esqueça a D-Works, preocupe-se em ser pego pelos

seguranças daqui antes disso. Se o fato de que você a levou lá para fora for descoberto, você

seria expulso e a Yaya seria confiscada e desmontada.

— Então, tudo o que eu tenho que fazer é não ser descoberto, certo?

— ... Você conseguiu o rancor da Família Kingsfort. Também é possível que tenha

despertado a ira do governo. Tem muitas pessoas querendo matar você— ou melhor, que

estão esperando impacientemente a chance de fazê-lo.

— Você, de todas as pessoas, deveria entender.

— —Hum?

— Família não é algo que você deva perder tão facilmente.

Porque uma vez que você a perca, ela nunca mais poderá retornar.

A única coisa que sobra é uma vida de arrependimentos que nunca irão desaparecer.

— Além disso, você mesma disse. Eu sou uma pessoa que segue o Código dos Samurais.

Mesmo que eles mal se conhecessem, Yomi havia se sacrificado para salvar Raishin.

Isso meramente porque ela acreditava nele.

Ela acreditou nele e sabia que poderia deixar o resto por conta dele.

E é por isso que Raishin tinha que ir.

Mesmo que isso significasse colocar seu próprio corpo em grande em perigo, ele iria

quebrar as correntes de Frey.

— ... Eu não vou permitir que você vá.

Sigmund empoleirou-se no braço de Charl e, com energia mágica começando a fluir dela,

ela falou com tom de ameaça.

— Se você diz que vai, não importa o que aconteça, então você terá que me derrotar

primeiro.

Os olhos de Sigmund brilhavam e uma luz podia ser vista através das lacunas entre suas

presas.

Yaya preparou-se para saltar à sua frente, mas Raishin a deteve e falou com Charl com uma

voz calma.

— Por que você está tão inflexivelmente me impedindo de sair? Se algo acontecesse comigo,

isso não iria afetá-la, então por quê?

— ... O Código dos Samurais. Você me salvou uma vez.

Enquanto dizia isso, Charl rapidamente desviou o olhar.

— Só dessa vez. Apenas uma vez. É por isso que, apenas para retribuir o favor, eu também

devo protegê-lo. Só assim seria justo. Obviamente, essa é a única vez que irei protegê-lo. Mas,

já que é só dessa vez — não importa o que aconteça, eu irei proteger você. Mesmo que para

isso eu tenha que fazer algo que vá fazer com que você me odeie.

Mais uma vez, eles trocaram olhares.

Charl estava séria. Sigmund também compartilhava das emoções dela e estava se

preparando para a batalha.

Sua preocupação era óbvia. Yaya baixou os olhos, triste. Entretanto, Raishin também não

iria voltar atrás.

Procurando em seu peito com a mão esquerda, ele tirou um pingente prateado.

— Esse é o amuleto que você me deu. Embora a corrente tenha quebrado.

— Isso foi quando o Cherubim cortou você...?

— Essa coisa ajudou a salvar minha vida uma vez. O que significa que você já me protegeu

uma vez.

— —Não é disso que eu estava falando!

— Não foi o que eu quis dizer também. O que eu quero dizer é que você precisa ter mais fé.

Não em mim, no entanto. Acredite no poder desse amuleto que você deu para mim.

O pingente estava balançando um pouco. Olhando fixamente para o seu brilho, a expressão

no rosto de Charl mudou.

Ela franziu a testa e fez beicinho.

— ... Isso não é justo. Trazer isso agora foi um movimento covarde.

Esse pingente, por mais que ela não gostasse disso, a fazia se lembrar da vez em que

Raishin a salvara.

Naquela vez, Raishin havia entrado na batalha pelo bem de Charl, sem sequer pensar duas

vezes sobre sua própria vida.

Era o mesmo agora. Mais uma vez, Raishin estava indo arriscar sua vida para resgatar

alguém. Charl não tinha o direito de impedi-lo. Afinal, ela também havia sido salva por ele.

— ... Ótimo. Vá onde você quiser. Vá onde você quiser e morra a beira da estrada. E depois

que você morrer, espero que você seja comido por cães.

— Esse foi um giro de 180 graus na sua atitude.

Raishin riu ironicamente. Passando irritada por ele, Charl o deixou com uma última farpa.

— Você é realmente, realmente um idiota do tamanho do Big Ben!

E ela se foi. Ele pensou ter visto um pouco de cor nas bochechas dela, mas ele não foi capaz

de confirmar isso.

Yaya e Raishin trocaram olhares e, então, correram na escuridão.

Uma hora depois—

Raishin e Yaya estavam em um cavalo, correndo como o vento na calada da noite,

finalmente parando em um pequeno campo de trigo próximo ao orfanato.

O Yagaesumi de Komurasaki estava ativo em ambos. Entretanto, o cavalo era um problema

diferente. O som dos cascos e de sua respiração seriam ouvidos de longe.

Por causa disso, eles tiveram que parar o cavalo um pouco antes de seu destino final. A dor

aguda no braço fez Raishin fazer uma careta, mas ele riu disso quando desceu do cavalo.

— Oh, cara, eu disse a mim mesmo que nunca mais voltaria a esse lugar.

O orfanato em questão estava iluminado, mesmo sendo noite. Os quartos lá dentro (se é

que podiam ser chamados de quartos) estavam iluminados.

— Tem um monte de guardas de prontidão.

— Parece que o que aconteceu essa tarde deve ter sido um choque para eles.

— Está se referindo as coisas que o Raishin e a Komurasaki fizeram?

— Essa é uma grande distorção dos fatos, ok? Eu fiquei muito perto de morrer—

Uma luz vermelha passou por suas cabeças. Guiados pelo instinto, os dois saltaram para

trás.

Um conjunto de metais perfuraram o chão aos seus pés. Eram pequenas espadas!

A poeira começou a subir. Assustado pelo repentino ataque, o cavalo fugiu sozinho a toda

velocidade.

Embora ele fosse algo que eles pegaram com os militares apenas por conveniência, eles

não podiam se dar ao luxo de que ele fosse capturado.

Olhando para cima, ele podia ver que haviam sombras observando-os de cima do telhado

do orfanato. Parecia que haviam oito ou dez deles. Se metade deles fossem autômatos, sua

força não era algo que pudesse ser subestimada.

Antes que eles pudessem ser encurralados, Raishin moveu-se primeiro. Abrindo a mão na

direção de Yaya, ele canalizou sua energia mágica. Dispersando o Yaegasumi de Komurasaki,

ele ativou o Kongouriki de Yaya.

— Vai nessa, Yaya.

— Entendido! Essa é a especialidade da Yaya!

— ... Bom. Você não precisa se segurar como normalmente faz, ok?

Cortando o ar como um relâmpago, os dois invadiram o orfanato.



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