Volume 1 – Arco 2
Capítulo 28: O rei dos ladrões vs. o Titã Enegrecido, parte 3: O caminho do coração oco
Alvaro não sabia o que acabara de acontecer. Não entendia o motivo de toda aquela energia que o circulava, nem o porquê dela dar vida aonde não deveria ter. Era curioso como tudo ao seu redor parecia se agrupar nele, como se fosse o centro do universo.
Não, não era isso, ele percebeu. Ele não estava no centro de tudo, apenas criara um Microcosmo onde ele era absoluto. Onde ele reinava como um deus…
Sorriu com aquilo e, estendendo a mão, permitiu que a vida voltasse a garotinha e a pessoa que estava por debaixo dos escombros, dando-a o suficiente para que ela pudesse sair dali.
A mãe e a garotinha olharam para ele, ambas surpresas. Sorrindo, virou-se para o Titã Enegrecido, que olhava para ele com clara surpresa. Quem poderia o culpar? Alvaro acabara de alcançar um nível diferente do que estava antes.
Não… ele sempre teve esse poder. Era uma parte dele, uma que ele ignorou enquanto treinava nos caminhos daquela arte. A arte de trazer a tona seu eu verdadeiro.
Enquanto lembrava do passado, sentiu uma movimentação suspeita atrás de si. Com um movimento tão natural quanto o choro de um recém-nascido, seu punho acertou rosto do titã, que foi enviado para longe.
“Estou mais rápido… Não, não é só isso… aquele movimento de antes foi tão natural quanto possível.” Sorriu enquanto compreendia as implicações disso. Seu oponente voltou, mas cada golpe era desviado com maestria.
Assim era o caminho do Mushin, a arte do coração oco.
Desviou de outro golpe, e então mais um. Abaixou a cabeça antes mesmo do chute o alcançar e, com maestria, golpeou a perna de apoio, deixando seu adversário cair no chão.
Agora ele podia ler perfeitamente o campo de batalha.
Sorriu enquanto desenhava um arco com as mãos, enviando uma onda de calor para cima do oponente. O mesmo sentiu seu corpo derreter ante a pressão e teve de usar as sombras como escudo.
“Inacreditável… Ele alcançou mesmo o status de um deus… não consigo nem me aproximar direito.”
Com mais um movimento de seus dedos, flechas de luz se formaram atrás do titã e, com o mesmo movimento, foram lançadas nas costas dele. Gritou de dor enquanto focava toda a sua defesa a frente, bloqueando a luz.
Quando a onda de calor finalmente cessou, usou dessa chance para teleportar com um véu de sombras. Quando voltou, estava no topo do castelo, recuperando o fôlego.
Olhou na direção do rei enquanto remoía o acontecido. Não esperava que ainda houvessem aqueles com sangue dos deuses dentre os humanos, por isso que tinha medo.
Antigamente, vários deles andavam pela terra, os deuses sazonais eram mais comuns. Homens e mulheres que podiam mudar o rumo de uma batalha com sua mera presença.
Eram tempos sombrios para seu povo.
“Estou velho e não tenho mais a mesma capacidade de antes, mas não me subestime” pensou, dois facões de sombras haviam se formado em suas mãos. Mesmo ali, sentia o olhar do deus primaveril e, pela primeira vez naquela luta, tornou seu coração oco.
Desviou de um soco de trás e permitiu que diversos espinhos de sombra sólida se formassem atrás de si. Seguido disso, pôs as duas lâminas acima de suas cabeça, bloqueando a perna de Álvaro e o afastando da melhor forma possível.
O mesmo deu uma pirueta no ar e estreitou os olhos, permitindo que uma onda de calor tomasse o castelo, as plantas que floresceram avançaram contra o titã, tentando o prender.
Afastou-se e desviou das ondas de calor enquanto cortava as plantas, sem tirar os olhos do inimigo. Seguido disso veio a defesa contra um golpe vindo direto de sua frente, uma onda de choque o jogou para trás e precisou cravar o facão no chão para se manter na arena.
Largou a lâmina e saiu do caminho, bloqueando os socos com a segunda e criando vários espinhos de sombra no chão, forçando Álvaro a pular do telhado. Pegou-a e pulou no céu.
As lâminas foram arremessadas contra o pescoço do monarca, forçando-o a alterar o eixo do corpo. Dando um chute no ar, acertou o rosto do titã e voltou a cair, usando de uma onda de calor para não tomar o dano da queda. Seguido disso, esquivou de mais lanças de sombras, que cresciam da terra e caiam do céu.
Quebrou as poucas que se aproximaram demais e olhou para o titã. Pulou para frente, com os punhos prontos para o ataque. Mentalmente, começou a recitar o cântico da Magicae Sagitta.
Ambos trocaram golpes novamente, Álvaro se afastou e jogou a mão para frente, as flechas sendo disparadas. O inimigo criou uma muralha de sombras, que quase foi rompida devido a força absurda que continha aquela magia.
— Queime… — disse, aparecendo atrás do titã e disparando uma Flamae Providentia, incinerado tudo a frente. As chamas, normalmente azuis, tinham uma cor quase branca de tão quente. Quando parou de colocar mana na magia, tudo o que viu a frente foi a devastação digna do inferno. Sua cidade estava arruinada, mas ela podia ser reconstruída.
As vidas que foram perdidas hoje, no entanto, jamais retornariam.
— Mostre-se… — falou, desviando de inúmeras lanças de sombra e, girando o eixo para trás, esquivou de um chute, os punhos de ambos se encontraram e o choque causou uma enorme devastação.
— Se acha que eu vou perder para um pirralho como você… está muito enganado! — gritou, dando o seu melhor para atacar. Mesmo que seus punhos não tivessem força, mesmo que o sangue dentro de suas veias queimasse e a carne se tornasse carvão, pelo bem de seus compatriotas… por aquelas crianças de sua vila, não podia falhar.
A verdade é que os titãs enegrecidos eram uma raça rara, que devia ter sido extinta há anos. Existiam desde a era dos deuses, com uma criança nova nascendo a cada mil anos. Poucos adultos sobraram, por isso, o futuro de sua espécie dependia exclusivamente das crianças.
Os pequeninos foram raptados por um Lorde demônio, tudo para ter certeza que indivíduos problemáticos seriam eliminados. Indivíduos como este à sua frente.
“Isso é ruim.” Percebeu que, se não terminasse a luta rápido, acabaria sendo derrotado pelo jovem deus. Com um berro, formou uma espada de sombras e correu. Continuou atacando, mesmo que Álvaro não fosse acertado por nenhum dos ataques.
Colocou toda a sua fé numa ofensiva desesperada, rezando para seu deus que fosse recompensado. Com um movimento rápido, o monarca reapareceu atrás do monstro. Vendo isso, tentou rapidamente virar-se e cortar o pescoço dele, contudo, no último segundo, teve o ar arrancado de seus pulmões, uma enorme dor crescendo no estômago.
A força da cotovelada o mandou direto contra os destroços e chamas, atravessando-os. Parou o movimento enquanto tentava se levantar, cuspindo sangue e vômito no chão. Amaldiçoou aquela situação, tentando se levantar desesperadamente.
Arregalou os olhos e sentiu a raiva crescer. Não havia um único sinal de cansaço no corpo do rei. Ao contrário, a passada calma e tranquila mostrava o quão forte ficara. Contudo, estava claro para o titã que, mesmo naquele estado, ainda tinha o respeito e atenção dele.
Mesmo que tivesse sido completamente derrotado, Álvaro não o olhava com nada além da mesma expressão cautelosa que tinha no início do combate, calculando cada movimento que podia fazer.
Levantou o corpo e ficou de pé, o corpo tremia como bambu e não conseguia se imaginar vencendo, contudo precisava fazer isso. Se perdesse, os pequeninos morreriam e sua tribo seria condenada a extinção.
O desejo e instinto de continuar a espécie deu ao titã uma nova leva de força e, com um urro, liberou todas as sombras que guardava. Uma expressão de choque cruzou o rosto de seu inimigo, deixando-o satisfeito consigo mesmo.
A rajada de cortes e armas de sombra partiam tudo a frente. Estralando a língua, pulou para longe, usando da Magicae Sagitta para defletir vários outros ataques.
A ferocidade e velocidade daqueles golpes o colocaram, momentaneamente, na defensiva. Pela primeira vez desde que despertou, foi obrigado a lutar pela sua vida. Naquela situação, ante tudo aquilo, memórias cruzaram uma vez mais sua mente.
Memórias daqueles que vieram a sua cidade, de um jovem cheio de potencial, de um rapaz com um passado conturbado, de seu melhor amigo, cujo sangue fora derramado por suas mãos.
“Ah” Percebeu enfim do que se tratavam aquelas visões. Antes que pudesse agir sobre elas, várias lanças foram contra ele, estilhaçando as flechas mágicas e o forçando a erguer uma barreira. Aparecendo atrás de si, o Titã enegrecido tentou um chute na cabeça.
Bloqueando, virou-se só para ver o oponente sorrindo. Arregalando os olhos com a imagem que lhe veio a mente, pôs os dois braços acima da cabeça e pulou para trás, bloqueando um chute que vinha de cima.
Sim, ele sabia bem o que eram aquelas memórias. Como não saberia? Estava tão na cara que ele odiou aquela situação como um todo.
Sangue jorrava dos pulsos, duas mãos caíram no chão, decepadas. A falta de concentração criou um buraco na barreira por onde as sombras passaram e perfuraram suas costas, algumas atravessando seu corpo.
Era a sua vida que passava pelos seus olhos.
"Entendo… Eu me aprofundei tanto no Mushin que não prestei atenção no presente, vendo o futuro como uma inevitabilidade…” percebeu, incrédulo. O corpo caiu para frente, as pálpebras pesadas e a perda de sangue afetaram a forma, fazendo com que, lentamente, voltasse a ser um humano.
Antes que caísse, o Titã o pegou pelo cabelo com a mão esquerda, a mão direita criou garras e estava pronto para acabar com aquela luta.
“Não…” Num surto, permitiu que a energia voltasse e olhou firme nos olhos do monstro, que se assustou com a intensidade das chamas que os rodeavam.
Com um berro, o sangue que caía secou e duas mãos, feitas inteiramente de luz, foram criadas no lugar dos membros que perdeu. Rapidamente, deu um forte soco no rosto do adversário e pulou para frente, desviando de lanças e lâminas.
“Não tenho muito tempo nessa forma… O Magna Restitutio tirou muito de mim, além disso…” Começou a trocar golpes com o oponente, cada ataque fazia o próprio chão e céus tremerem, como se o próprio mundo estivesse assustado. “Usar o Mushin, ao menos assim, está consumindo minha força vital…”
Era a realidade. Quanto mais usava aquele poder, mais próximo se sentia da exaustão completa. Contudo, mesmo que fosse inútil, ainda que sua morte estivesse garantida, Álvaro sabia de uma única coisa ante aquela situação.
Não queria perder.
As sombras se chocaram com a luz da primavera, o fogo criou vida, que foi imediatamente destruída com a força dos ataques.
Choque, criação, destruição, morte.
Assim era o processo que os dois criaram. Mesmo que ninguém estivesse lá para ver, mesmo que aquela luta jamais fosse lembrada, estavam satisfeitos.
Ambos colocaram cada frustração dos últimos anos naqueles golpes tão poderosos, ambos tinham o respeito um do outro.
Contudo, aquela era uma batalha de resistência, que um humano não poderia vencer.
Dessa forma, num momento que perdeu a concentração, Álvaro perdeu o poder e, naquele instante, o jovem rei foi cortado em dois pelas garras do titã.
O sangue jorrou e seu inimigo olhou aquilo com falsa indiferença. Sentia remorso, não por fazer isto, mas sim pela situação como um todo.
Ele, que tinha milênios de vida, que viu o surgimento da OPML, a morte de vários destruidores, sentiu nada mais que tristeza pela perda daquele que devia ser o último deus vivo.
Aquela morte lhe devia trazer felicidade, mas não foi isso que recebeu. Sua tristeza apenas aumentou quando a vida deixou enfim os olhos de Álvaro.
Os Titãs Enegrecidos tinham uma história com os deuses antigos, e ter lutado com este homem o encheu de felicidade, nostalgia e uma profunda perda.
— Finalmente acabou. — A voz de Agar soou no seu ouvido, uma pequena partícula de carne saiu de um dos seus poros, crescendo e expandindo até estar do tamanho de um louva-deus. — Deixou-me preocupado, kukuku. Diga-me, como é a sensação de matar um deus? Ainda que seja um recém-nascido, poucos cometem uma blasfêmia como essa.
— As crianças…
— Relaxe, elas estarão em casa em alguns dias… todas as seis.
Aquilo o fez cerrar os dentes e olhar incrédulo para o demônio.
— Seis? São sete! Onde está a última? — O pequeno pedaço de carne ficou quieto e então murchou, diminuindo de tamanho até morrer e deixar o titã só. — Agar? Responda-me!
O monstro rugiu ante os céus, percebendo que o lorde demônio o deixou só.
Naquele momento, ainda que Ethan e os outros não soubessem, o exame dos Mármores acabara de ficar muito mais interessante.
Bem, com isso fechamos essa parte do arco... e eu peço desculpas pelo atraso. De qualquer forma, acho que agora consigo voltar para a programação normal, tanto da história quanto da escrita como um todo, então relaxem. Tentarei postar o próximo capítulo na semana que vem, mesmo dia e hora que esse.
Caso queiram ajuda com questões literárias, abri um serviço de consultoria literária. Se possível, venham dar uma olhada: