Volume 1 – Arco 1
Capítulo 21: Samsara
Não se sabe se ver seria o termo correto para descrever o ato.
Não se sabe se podia sentir alguma coisa.
Ethan apenas sabia que estava morto. Não conseguia discernir sensações físicas e, invés disso, apenas percebia as coisas como elas eram.
Aquele sentimento era indescritível. Quase como se bebesse água pela primeira vez desde que nasceu. Achou que devia ser tomado pelo desespero ou dor, não aquele mar de emoções.
— Que chato… — pensou enquanto sua forma fluía livremente naquele enorme plano. — Não vou poder me vingar assim… — Havia outras coisas que não poderia fazer também.
Não se tornaria um Mármore.
Não deixaria Ittai orgulhoso…
Não seria livre!
— Eu… eu não quero isso! Não quero morrer enquanto não realizei nada! — A forma líquida começou a se agitar conforme o humor do rapaz ficava mais instável. Tentou se mover, uma tarefa impossível para aqueles que morreram.
— Ora… o que temos aqui? — Um som ecoou naquele espaço. A sensação de ouvir aquilo era semelhante a diamante sendo cortado, e Ethan imediatamente sentiu o desconforto aumentar ao perceber a sombra atrás de si.
Era estranho que, mesmo naquela escuridão, ainda havia algo capaz de fazer uma sombra.
— É a primeira vez que vejo uma gota de tinta no meu domínio. As formas dos vivos tendem a ser mais animalescas que isso — riu com desdém ante o medo do rapaz. — Você me teme? Escapou de mim várias vezes, pequeno Destruidor, mas não vou deixar que fuja. Não se preocupe… sua alma ainda estará intacta quando for enviada para o próximo corpo…
— O que está dizendo? — perguntou, notando pela primeira vez a ausência de som da voz. Era mais como se imprimisse a pergunta na mente daqueles que queria que ouvissem.
A entidade ficou quieta por alguns instantes. O tempo naquele lugar era convoluto e Ethan jurava que aqueles poucos segundos foram centenas de anos.
— Kukuku… Kihahahahaha! Não é possível! O último filho da linhagem de Noah não conhece a verdade! Isso é impagável! — A sombra começou a envolvê-lo e, por mais que quisesse se mover, apenas ficou paralisado no lugar. — Sem a maldita influencia que vocês Destruidores tem no ciclo de reincarnação, posso enfim destruir o mundo dos mortais! Vou poder recomeçar a Guerra e me deliciar com as almas que virão!
Ethan sentiu o medo o tomar enquanto percebia que não haveria escapatória dessa. Não queria morrer, nem deixar que aquela entidade fizesse o que prometeu, mas não podia fazer nada. Nada! Ainda era muito fraco e não havia mudado nada!
— Kukuku… não pense assim, Ethan.
Aquela risada…
A raiva que sentiu borbulhar dentro de si ante a forma informal que o demônio chamava seu nome…
Tudo aquilo apontava para uma única criatura…
— Agar!
— E ai? — respondeu, um sorriso se formando na parede de carne e vísceras. A atenção do demônio voltou para o vulto escuro enquanto Ethan tentava se mover de alguma forma. — Pode me fazer um favor e devolver esse aqui pro mundo dos vivos?
O lugar foi tomado por uma densa sensação de medo. Tanto que o rapaz parou de debater os membros imaginários e congelou.
— Você tem coragem, seu pirralho. Pedir ao representante da morte para trazer alguém de volta a vida…
— Nossa, que medo! — Agar tinha um sorriso claro nas inúmeras bocas enquanto permitia que sua presença se igualasse a do Lich. — Representante da morte ou não, eu sou um dos 5 Lordes Demônios que competem pelo título de Rei… que tal mostrar mais respeito?
“O que é isso…” Não tinha corpo. Não tinha nem sequer uma mente… mas Ethan podia dizer o quão poderosos eram aqueles dois seres. A força de ambos era tamanha que ele não conseguia se ver ganhando deles, não importava o quanto tentasse.
Se se movesse, morreria.
Se falasse, morreria.
Se pensasse, morreria.
Os dois entraram num impasse até que o Lich soltou o que parecia ser um suspiro cansado. — Certo… se o Destruidor aceitar, pode levar a alma dele de volta ao mundo dos vivos.
— Excelente. Sabia que era alguém sensato!
Aquela era uma mentira deslavada e todos sabiam disso. O representante da morte tinha a certeza que, se ele não acatasse as ordens do Lorde, o Samsara é que perderia.
— O que me diz, Ethan? Quer uma chance de voltar a vida? Não acho que seu orgulho o permitiria aceitar minha ajuda de novo. — O rapaz congelou em incredulidade e se lembrou da primeira vez que se encontrou com Agar… e das palavras do demônio.
Só então Ethan percebeu que, do ponto de vista distorcido de Agar, matar toda a sua família foi uma forma de o ajudar… e, talvez o mais assustador daquilo, funcionou.
Nunca conseguiria sair numa jornada da forma que estava… nunca descobriria seu verdadeiro chamado sem aquele choque…
Nunca seria livre se seus pais ainda estivessem vivos.
— Bem, tenho algumas condições, antes que aceite.
— Condições?
— Sim… a primeira e mais importante. Vai se esquecer de tudo o que viu no Samsara. Isso é para satisfazer tanto o nosso amigo ali quanto a próxima condição — respondeu e então fez uma pausa longa. — Você deve me permitir viver dentro de seus sonhos.
— Meus sonhos?
Aquilo parecia fácil. Era seu sonho e objetivo matar Agar, então ele aceitou sem pestanejar, mas primeiro queria saber o porquê. — É simples… eu quero ver o quão você vai aguentar até que eu o quebre e te traga aqui. E não pense que vai me vencer, moleque. Eu sobrevivi por um milênio pois sou um verdadeiro demônio, como tal, um humano jamais me derrotará.
Ethan engoliu em seco e aceitou os termos, irritado com a mera ideia de perder contra Agar. Um flash rompeu o véu de trevas e, num único instante, Ethan perdeu a consciência.
Voltando para o mundo de fora, era possível ver os mercenários recrutados por Ethan, assim como Hector, olhavam cabisbaixos para o corpo do rapaz.
Um minuto de silêncio foi declarado por Alvaro. Vários olhavam com lágrimas nos olhos… até que algo inacreditável ocorreu.
O sangue começou a correr de volta para a cicatriz, um líquido viscoso e enegrecido costurou o enorme buraco e, em alguns segundos, o jovem Destruidor soltou um suspiro aliviado e tossiu um pouco de sangue.
— Ai, que sono bão… que que deu co cês? — perguntou ao notar o olhar de incredulidade que todos ali davam para ele.
Hector piscou duas vezes e então mais uma. — O que quer dizer… era pra você estar morto!
Ethan se virou e arqueou uma sobrancelha. Tentou se lembrar do que ocorreu, tudo parecia confuso… sabia que estava na Vila dos Ladrões mas tudo estava embaralhado. Lembrou de um castelo, então de um cerco… assim como dor, e então mais dor… e aqueles olhos vermelhos acompanhados por uma imensa espada…
— Ahh… eu tô vivo… pera! Eu tô vivo! — A felicidade na sua voz era palpável e, como uma criança no natal, começou a pular e dançar. — Caceta, nunca me senti tão bem, hahaha.
— Bem, acho que vou apenas aceitar isso…
“Não… não é possível.” Alvaro pensou enquanto olhava para o garoto a sua frente. O medo era palpável para o rei enquanto tentava achar uma forma de explicar o que acabara de ocorrer. “Não importa quem for, uma vez que seu coração para, você morre. Nenhum humano devia ser capaz de se regenerar daquela forma…”
Com um suspiro ele chegou numa decisão. Ethan era perigoso demais para manter naquela cidade, não só como um ímã de problemas mas também havia algo nele… algo que fazia com que seus instintos de batalha gritassem.
Essa era uma sensação nova e começou quando o garoto chegou no campo de batalha… talvez um pouco antes. Decidido a testar o rapaz, olhou fundo nele, buscando algo que só praticantes de uma determinada Arte Marcial conseguem ver.
“Revele… qual o seu verdadeiro eu!”
Foi nesse instante que o mundo de Alvaro tornou-se negro e ele sentiu-se afundar numa profunda e viscosa tinta. Tentou nadar para cima, mas não havia fim naquilo.
Uma voz ressoou ali, forçando-o a obedecer.
— Não tocarás no meu Descendente, filho de Absalon.
“O que foi isso…” Já havia voltado para o mundo normal antes que pudesse entender o que ocorreu e só conseguiu olhar para o “descendente” com medo, as peças daquele quebra-cabeça se encaixando conforme lembrava de lendas antigas. “Esse garoto… é a reincarnação do Mestre Amnael?”
As antigas escrituras eram claras no que tangia aquela lenda: Quando o mundo precisar, seja para proteger a ordem natural ou subvertê-la, o sangue de Noah acordará e o Pai da Calamidade voltará sob nova pele.
— Ethan… agradeço por tudo o que fez por nós… mas preciso que parta… — pediu, recebendo várias vaias. Suspirou e olhou bem para o rapaz, que não parecia incomodado com o pedido. — Essa cidade não é segura o suficiente… além disso, você também precisa ir para o exame, não é?
O rapaz sorriu e acenou. Decidiu que partiria naquele momento mas uma mão o impediu. — Eu vou contigo. — A determinação na voz de Hector era clara. Ethan podia imaginar o tipo de olhar no rosto do seu amigo e sorriu. — Eu também quero me tornar um Mármore.
— Simbora então, minha gente! — Correu e riu enquanto o Ladino gritava para que esperasse, com irritação na voz. Alvaro viu tudo aquilo e sorriu, apenas do aperto no peito.
Sabia que ter alguém como o Destruidor em seu território não era seguro mas, por alguma razão, queria ver mais daquele rapaz. Decidiu que, pela primeira vez em séculos, Locust veria o exame dos Mármores.
Dessa forma, o Destino começou a se mover uma vez mais.
Bem, isso conclui o primeiro arco...
Foi uma jornada longa, cheia de lágrimas por conta dos Hiatos; sangue, também por conta dos Hiatos; e tragédia (que veio por conta dos Hiatos), mas estou feliz de concluir esse arco com essa cena. Acho que, mesmo com tudo o que aconteceu, esse capítulo terminou com um ar agradável até...
Claro, temos o Rei dos Ladrões desconfiado; um Lorde Demônio e uma ceita de Elfos tendo um interesse bem preocupante no nosso jovem herói, mas, parafraseando um grande narrador, a jornada continua.
Agora, quero falar de uma proposta.
Vou postar esse arco na Amazon (junto dos capítulos extras que aparecem a cada 4 capítulos normais). Não vou prometer algo fantástico, mas, se é fã do meu trabalho, gostaria de ver as aventuras fora da história principal, e quer me apoiar de alguma forma, dê um trocado para esse escritor.
Com isso, nos vemos no próximo arco, que deve começar a ser postado, no máximo, até a metade de Janeiro.