Volume 2
Capítulo 99: Julgamento
Colth se via alvo da nuvem de corvos que Índigo evocou em meio ao hall dividido pelo canal de águas serenas. As criaturas mergulharam em voo na direção dele em um ataque ordenado. O rapaz abaixou-se instintivamente, levantando as mãos para se proteger do ataque iminente. Os corvos bateram suas asas furiosamente enquanto buscavam atingí-lo com seus bicos afiados.
— Droga, Índigo. Eu só quero ajudar — reclamou Colth, em meio a tensão.
O guardião de Anima respirou fundo, preparando-se para reagir e encontrar uma brecha na ofensiva de Índigo. Sentiu a pressão dos corvos se aproximando, mas manteve a compostura. Concentrou-se rapidamente em sua magia, invocando o escudo de Agnes, a barreira de pura magia de Mutha que o envolveu num piscar de olhos.
Os corvos, ao se chocarem contra a barreira, foram repelidos com força, alguns caindo ao chão enquanto outros tentavam desesperadamente contornar a proteção mágica de Colth. O som de seus bicos batendo contra a barreira era ensurdecedor, como pedras atingindo vidro, ecoando pelo hall.
— Magia de Mutha — notou Índigo. Provocou: — Vai roubar a magia de Véu do mesmo modo que roubou essa?
— Eu não roubei a magia de Mutha! — rebateu Colth. — A sua guardiã me confiou ela para que eu a usasse para o bem.
— Acha que eu vou acreditar nisso?
Colth aproveitou o momento de distração dos corvos para planejar sua próxima movimentação. Ele precisava agir rápido antes que Índigo encontrasse uma forma de contornar sua defesa. Com os olhos fixos no guardião de Véu, Colth avaliou suas opções, buscando uma brecha em sua guarda para contra-atacar.
Ele sabia que precisava se aproximar para ter qualquer chance de derrotar Índigo. Sem armas à disposição, manteve o escudo de Mutha ativo, e avançou em corrida com determinação em direção a Índigo. Com coragem enunciou:
— Eu vou fazê-lo acreditar!
Índigo viu a aproximação do guardião de Anima e se manteve plácido. Possuía uma última linha de defesa que era confiável e eficaz, além dos corvos restantes que ainda sobrevoavam o alto do hall e esperavam o seu próximo comando.
— Eu já disse, você não vai passar — respondeu Índigo, preparado para o encontro.
Colth, mesmo percebendo a confiança de seu oponente, não hesitou e manteve a sua corrida. O rapaz estava a poucos passos de Índigo e, prestes a alcançá-lo, desfez o escudo de Agnes e estendeu o braço direito com a palma da mão à vista em direção ao rosto do oponente. Mais um passo, e teria cumprido o seu plano de ataque, mas o chão tremeu.
O guardião de Anima se surpreendeu, ao lado do piso de mármore por onde corria, duas criaturas surgiram. Dois sirveres evocados do chão com um único objetivo.
Colth não teve tempo nem de pensar, os dois lobos negros emergidos do chão abocanharam as duas pernas do rapaz com seus dentes afiados. Cada um responsável por uma perna do guardião de Anima, o fizeram parar.
— Argh! — Colth sentiu a dor perfurar a sua pele e penetrar em sua carne.
Ele não conseguiu mais se mover. Os sirveres pareciam presos ao chão, e de fato, metade dos corpos dos lobos ainda estavam imersos no chão sólido de mármore.
— Eu os avisei — disse Índigo frente ao seu oponente imobilizado. — Não permitirei que encostem na magia de Véu.
Índigo estava ao lado de um terceiro lobo negro, uma última linha de defesa que o guardava. A criatura caminhava ao arredor de seu evocador com os olhos bravios fixos em Colth.
O rapaz imobilizado sentiu o seu próprio sangue escorrer pelas suas pernas perfuradas por presas. Ele chegou a procurar por Lashir com esperança de uma intervenção, mas a viu distante com sérios problemas contra o capelobus do outro lado da ponte que interligava as partes do hall. Não tinha outro jeito, precisaria apelar para o seu último recurso. Suplicou:
— Índigo, você precisa me escutar. Se não conseguirmos alcançar a essência, a Iara vai morrer.
— Não me venha com essa, guardião de Anima — rebateu Índigo, cético e indiferente. — Por você não ter vivido de fato no mundo Anima, talvez não saiba, mas os guardiões possuem uma função além de ser uma oferenda.
— Proteger o seu deus — antecipou-se Colth.
— Não — respondeu Índigo, com seriedade em seu rosto frente ao do oponente. — Está errado. A função é servir o seu deus. E como servo de Véu, ele me solicitou que protegesse a sua magia, que as criaturas que ele criou fossem mantidas dignas.
Colth estranhou as palavras e a confiança exacerbada do seu inimigo.
— Você não é o selo de Índigo, não é? — questionou Colth, especulando.
O outro ergueu de leve os lábios, quase imperceptível, para representar um sorriso ambíguo.
— Quem é você?! — reforçou Colth, frente a frente com o estranho de aparência idêntica a Índigo.
O homem ignorou a pergunta e fez a sua própria indagação com as sobrancelhas se estreitando, mas ainda com uma feição apática:
— Por que alguém que possui a capacidade de reconhecer a diferença entre a minha criação e Índigo, está ajudando a guardiã de Rubrum?
— Hã? Como assim? — Indagou Colth, ainda preso pelos dois sirveres aos seus pés e vigiado pelo terceiro ao lado do oponente.
Mesmo sabendo que só precisaria encostar a palma da mão no inimigo, ele não alcançaria aquela estranha pessoa com aparência do Índigo, justamente por estar impedido pelos lobos negros com as presas cravadas em suas pernas e prontos para rasgá-las.
— Responda, guardião de Anima — ordenou a idêntica semelhança de Índigo. — Qual é o motivo de estar na mente da guardiã de Véu em busca de sua essência. Ainda mais com essa mulher de acompanhante.
— Então a Iara realmente passou a ser a guardiã de Véu — sussurrou Colth, seus pensamentos expostos apenas confirmavam as suas suspeitas. Fixou os seus olhos confiantes no oponente à sua frente e finalmente respondeu, sem pestanejar: — A Lashir vai salvar a Iara. Por isso estamos aqui.
O estranho homem, a um passo de seu prisioneiro, mediu a situação toda com os olhos. Observou Lashir lutando pela sua vida contra o capelobus do outro lado do hall, e então voltou sua atenção ao rapaz novamente:
— Eu ainda não sei se você é um completo tolo ou um corajoso infame parasita. De qualquer forma, não o deixarei passar. Mas estou curioso, como descobriu que minha representação não é um selo de Índigo?
Colth mordeu os lábios, como em preparação para algo. Rebateu as palavras do homem se certificando de que o que estava prestes a fazer era, realmente, sua última alternativa:
— Não vai nos deixar passar?
— Não — respondeu sereno o falso Índigo.
— E quer saber como eu descobri que você não é o selo de Índigo, que você é apenas uma cópia? — Colth respirou fundo. — Tudo bem. Bom, o Índigo me contou sobre uma de suas batalhas mais difíceis.
— Interessante. Então partiu dele próprio? — O ouvinte pareceu concentrado nas palavras, mesmo que não demonstrasse em sua face.
— Sim. Foi uma batalha contra Bernard, o guardião de Calis — prosseguia Colth com o assunto. — Após um combate intenso e cansativo nos arredores do palácio da cidade Capital no mundo de Tera, Índigo aparentemente havia vencido. Ele estava em uma situação quase idêntica a essa em que estamos agora. Havia rendido Bernard com suas criaturas sombrias. O guardião de Calis estava preso pelas garras do capelobus, assim como eu estou preso agora.
— Ele capturou o guardião de Calis? Como era de se esperar. Índigo sempre um passo à frente de seus adversários. — A cópia pareceu minimamente orgulhosa.
— Mas não acabou por aí. Índigo não esperava pelo o que estava por vir. Bernard fez algo que o surpreendeu — Colth colocou mais suspense em sua voz. O ouvinte foi fisgado pela curiosidade. — Bernard se soltou das garras do capelobus e acertou a perna do guardião de Véu o incapacitando.
— Como isso aconteceu? — perguntou o homem, absorvido pela história. — Você disse que ele estava nas garras do capelobus. Jamais conseguiria se libertar de uma situação dessas.
— Quer saber como ele fez? — Os olhos de Colth brilharam com uma intensidade corajosamente atrevida.
A cópia logo notou que algo estava estranho. Aquele rapaz de Anima havia ganho confiança demais para quem estava rendido daquele modo. Percebeu a semelhança do que acabara de ouvir da boca de Colth e se atentou de imediato.
O homem se resguardou e deu um passo para trás tentando se afastar de seu prisioneiro, mas quando o fez, sentiu suas costas atingir uma superfície sólida.
— Hã? — A cópia perfeita de um Índigo mais jovem olhou para trás procurando pelo obstáculo que interrompeu o seu recuo.
Havia algo translúcido, quase transparente, como uma parede. Reconheceu a magia de Mutha ao mesmo tempo que ouviu um de seus Sirveres gemer de dor. O homem arregalou os olhos e se virou para tentar entender o que estava acontecendo.
Colth havia socado um dos lobos que estava agarrado as suas pernas, se desvencilhando dele e libertando o seu pé direito. Ainda não estava livre por completo, a perna esquerda foi ainda mais pressionada pelos dentes do segundo Sirveres, mas não teria tempo e nem condições para se fazer livre daquele também.
Colth pressionou os dentes uns contra os outros e deu um passo à frente. A pele, a carne e a dor rasgaram diante da dentição selvagem do lobo sobre a sua perna esquerda.
O inimigo que era idêntico a Índigo se viu cercado pelo escudo de Agnes que Colth criou para não permitir a sua fuga.
Como uma pequena cúpula, a magia de Mutha aprisionava a cópia vera semelhança de índigo e Colth em um diâmetro limitado e apertado. O terceiro Sirveres até tentou socorrer o seu conjurador, mas do lado de fora do escudo fechado, não pôde fazer mais do que arranhar a superfície invisível da sólida parede. O mesmo ocorreu com os corvos que desesperadamente tentava adentrar a cúpula de magia, mas sem sucesso ao chocarem os seus bicos pontiagudos na parede impenetrável.
— Devoção! — Colth urrou, com todo ímpeto. Parte daquela energia vinha de sua coragem, e o restante com a dor da sua perna sendo estraçalhada pelo lobo negro feroz, mas não poderia voltar atrás agora, era o que havia planejado e sabia desde então que precisaria suportar as consequências.
Precisou apenas do passo adiante com a perna direita para poder alcançar o seu inimigo. Esticou o braço e a palma da mão até a cópia de Índigo. Diferentemente do esperado, o seu oponente não tentou revidar, agiu tentando se afastar da magia de Anima nas pontas dos dedos de Colth, encolhendo-se em direção a parede que o escudo proporcionava às suas costas, mas não era o suficiente.
Viu a aproximação da mão de Colth e o brilho da magia se aproximar junto com a resposta em gritos doloridos do seu oponente com a perna ensanguentada.
— Não desistir, e ir até o fim! Custe o que custar! Foi assim que Bernard escapou da derrota aquele dia! — vociferou Colth. — Índigo jamais cometeria o erro de negligenciar a devoção de alguém novamente. Mas você, deus Véu, não aprendeu ainda, não foi?
— Como foi que...
Colth tocou a testa do seu oponente com a palma da mão radiante. No mesmo instante, o homem e as criaturas que o acompanhavam, desapareceram.
A tensão cessou em um piscar de olhos.
— Eu odeio a realidade dos sonhos — sussurrou Colth, exausto.
O rapaz respirou fundo, aliviado. Lembrou da dor irrompendo em sua perna e despencou-se ao sentar-se ao chão de mármore frio.
Pressionou as marcas de dentes na perna para estancar o sangramento. Em seguida, conferiu o outro lado do hall e viu Lashir. A mulher parecia bem, ela se aproximava com poucos arranhões no corpo após a batalha com o capelobus.
Lashir atravessou a pequena ponte sobre as águas que dividiam o hall e comentou com um breve ar de desafogo:
— Eu não sei o que você fez, mas o grandalhão peludo desapareceu. — Parou frente ao Colth e as manchas de sangue ao chão. Perguntou com uma centelha de preocupação: — Está tudo bem aí?
Colth engoliu a dor e respondeu vitorioso:
— Tudo bem. Esse não é de fato meu corpo verdadeiro. Quando eu sair dessa realidade, vou estar completamente inteiro. — Respirou fundo, atingido pela aflição vermelha escorrendo sobre sua perna, comentou: — Mas se eu soubesse que isso causaria tanta dor assim, eu teria pensado em outra coisa.
Lashir ergueu uma das sobrancelhas sobre seus olhos ardilosos. Perguntou impressionada:
— Fez isso de propósito? Você é maluco, é?
— He — Colth sorriu em meio a dor. — Olha quem fala, a mulher que mora dentro da minha cabeça.
Lashir respondeu com um leve levantar no canto de seus belos lábios para finalizar o assunto. Colth então prosseguiu:
— E agora? O que vamos...
— Eu tenho que admitir — disse uma voz masculina jovial, se aproximando ao interromper a conversa —, você é bem corajoso. Como é mesmo o seu nome?
Colth e Lashir rapidamente levaram seus olhos para o rapaz que parou alguns passos adiante deles. Um garoto de cabelos claros bagunçados e com corte audaz, que possuía tatuagens pelo pescoço e braços. A camiseta simples amassada lhe dava uma aura banal que contrastava com as marcas retilíneas sobre sua pele e o olhar imparcial.
— Você é... — Colth reconheceu aquele garoto de imediato. Seria difícil de esquecer uma aparência daquelas. Seus pensamentos vazaram pelos seus lábios: — O deus de Véu.
— Eu sei quem eu sou. Perguntei quem é você — rebateu o garoto, que aparentava ter treze ou quatorze anos de idade, mas sua voz serena e aura lhe davam um aspecto quase ancião.
— Colth. Eu me chamo Colth — disse ele ao chão.
— Muito bem, Colth, Guardião de Anima. Você tem minha confiança, poderá prosseguir até a essência.
— Hã? Sério? — Colth Se surpreendeu com os dizeres. Mesmo que em tom de indiferença e olhar desinteressado do deus de Véu, aquilo foi uma resposta muito mais positiva do que esperava.
— Sim — confirmou Véu. — Alguém que consiga diferenciar o Índigo verdadeiro, frente a minha criação imperfeita, é alguém de mínima confiança. Mas me diga, como sabia que era eu que estava por trás daquela criação?
— Índigo me disse que o deus ao qual ele servia, nunca entrou em uma batalha, disse que ele era covarde demais para lutar por si próprio. E por isso criou as criaturas sombrias, os seres imperfeitos, para lutar por ele — resumiu Colth. — Mas é impossível recriar uma pessoa, não é?
Lashir, ao lado rapaz ao chão, perguntou com uma dúvida sincera:
— O que isso quer dizer? Eu achei que a cópia do Índigo com a qual lutamos fosse um selo.
Colth continuou com a explicação:
— Não. O falso Índigo é uma criação do deus Véu, mas diferentemente das criaturas sombrias, que são seres que agem apenas por instinto e diretrizes, uma pessoa precisa de uma consciência, uma mente. E isso não se cria, mesmo que você seja um dos oito deuses filhos de Lux. Você mesmo precisa controlar o corpo e a mente da criação.
— Impressionante — disse Véu, indiferente. — Realmente, você teve boas e longas conversas com Índigo.
— Na verdade, não — respondeu Colth, revelador. — Foi apenas a conversa de uma noite. Acho que o Índigo é que conhecia muito bem você, e nos disse tudo o que aconteceria caso... estivéssemos em situação parecida a essa.
— Como eu havia dito, — finalizava Véu. — Índigo sempre está um passo à frente.
Colth sorriu satisfeito com o desfecho, mesmo que a dor provocado pela perna machucada o fizesse pensar o contrário.
— Então é isso — afirmou ele. — Me dá uma ajuda para me levantar, Lashir.
— Acha que eu sou o quê? — perguntou a mulher irritada olhando com autoridade para baixo onde Colth se encontrava.
— Vamo lá — pediu Colth, quase em súplica. — Eu te salvei do capelobus. Uma ajudinha agora não vai fazer mal, por favor.
— Me salvou? Eu ia acabar com aquela criatura em segundos. Não precisava da sua ajuda. Posso derrotar um capelobus com só uma das mãos.
— Tá falando sério? — perguntou Colth, pesaroso. Arrependido de comprar aquela discussão.
— Pode apostar. Aí, moleque! — esbravejou em direção ao deus Véu. — Conjura mais um capelobus. Eu vou mostrar para esse idiota como é que se faz.
— Não precisa disso, Lashir — suplicou Colth.
— Ah, precisa sim — respondeu desafiada. — Aí, moleque...
Véu continuava com um olhar completamente sem expressão, como uma pedra de gelo. Respondeu:
— Não precisa pedir de novo.
O deus ergueu a sobrancelha direita em um tique. No momento seguinte, Lashir se sentiu abraçada pelas costas.
— Que merda é essa... Isso aqui já não é justo!
Quando se deu conta, as garras afiadas de um capelobus estavam sobre o seu pescoço e seus calcanhares eram aprisionados por mordidas de dois Sirveres que tinham os seus corpos transbordados do chão de mármore.
Lashir estava completamente rendida. O capelobus às suas costas e os Sirveres aos seus pés, não podia mover um músculo.
— O que está fazendo, Véu?! — questionou Colth, preocupado.
— Eu disse que você poderia passar, guardião de Anima. — respondeu o deus sem expressão, com seriedade plena. — Mas essa mulher, não é bem-vinda.
O capelobus pressionou a garganta de Lashir cortando-a superficialmente e derramando apenas uma gota do seu sangue mais que vermelho. Estava prestes a acabar com a vida da mulher, aguardava apenas um comando do seu evocador, o deus de Véu.
— Espera! Não faz isso! — implorou Colth, ainda ao chão com sua perna gravemente ferida.