Volume 2

Capítulo 96: Sombra Sanguínea

— E agora? Aceitas o teu destino?

“O quê? O que...” Garta se perdeu em seus pensamentos melancólicos.

— O que foi que aconteceu? — se perguntou ela incrédula.

Ela se viu em meio a escuridão de sua mente. O vazio breu lhe cercando por todos os lados. Nada além das vozes obstinadas da espada de Finn se ouvia:

— Alertamos sobre essa conjuntura. Sua relutância foi a semente para o perecimento de sua aliada.

— Iara... Não pode ser verdade — lamentou.

— A deusa de Callis sempre foi, e sempre será, impiedosa. Você, guardiã de Finn, pode acabar com isso, aqui e agora.”

— Isso não está acontecendo... — Garta colocou uma das mãos sobre o rosto e chacoalhou a cabeça, mas nada mudou.

— Já aconteceu. E continuará acontecendo, se não fizer algo a respeito.

— Eu...

— Você sabe o que deves fazer. Aceite a tarefa de eliminar o guardião de Calis, o último resquício da magia de destruição nesse mundo.

Garta hesitou. Lembranças dolorosas de um outro tempo passaram diante de seus olhos lhe atormentando.

— Eu prometi que não mataria mais.

— E o que isso lhe rendeu? Cumplicidade? — perguntou a voz intrépida.

A escuridão se abriu diante de Garta, e ela pôde ver o corpo de Iara agonizando com as partes faltantes aos seus pés. Se assustou assombrada:

— Ah!

Ao se espantar, recuou um passo mal dado que lhe fez cair para trás, sentada ao chão da pura escuridão que retornou em um piscar.

— É isso? O fim daquela garota. A morte de uma pessoa que confiou em você. O derramar do sangue de uma companheira. Você participou de tudo isso! — disse as vozes fervorosas.

— Não. Eu não.

— Você não se importava com ela! Não dá a mínima para a morte dessa pobre e inocente garota!

— É mentira, é mentira — sussurrou a guardiã, com os lábios trêmulos.

— Idealizou que se não derramasse sangue ele nunca estaria em suas mãos, não foi?

— N...

— Estava errada! O sangue que escorre daquela pobre garota está impregnado em suas mãos, encrustada debaixo das suas unhas e gravadas nas suas digitais. Olhe para elas!

— Eu não queira...

— Olhe!!!

Garta levou as palmas das mãos para diante de seus olhos e observou de perto o líquido vermelho espesso escorrendo entre seus dedos. Quando se deu conta, estava sentada sobre uma enorme poça de sangue quente.

Se levantou imediatamente, abalada, cambaleante enquanto um zumbido preenchia os seus ouvidos enervados:

— Não, não, não...

— Foi você!

A mulher fechou os olhos com intensidade e levou ambas as mãos aos ouvidos na tentativa de tapá-los.

— Não, não, não!

— Foi você, guardiã!!!

— Não! Eu não fiz isso! Foi o Bernard!!!

O silêncio voltou a se estabelecer. A calmaria retornou. Apenas a própria respiração pesada de Garta se destacava. A mulher abriu os olhos para voltar a observar a escuridão ao seu arredor. Disse com os ombros mais leves:

— Foi o guardião de Calis que fez isso. Ele é o culpado.

— Não estás apenas transferindo a culpa, não é?

— Não. A culpa é dele. Bernard, o guardião de Calis, é aquele que causou tudo isso.

— Estávamos corretos desde o início. Então nos diga, guardiã — As vozes da espada de Finn retornavam mais resolutas. — O que vai fazer a respeito?

— O que eu vou fazer?

                                               ***

— Eu vou contar até dez! — avisou o pequeno Jorge tapando os olhos diante de uma das grandes árvores na praça em frente ao restaurante Gato Implacável.

O Sol alcançava o topo do céu azul em mais um simples dia na região Norte de Albores.

— Conta mais! — gritou uma das seis crianças que corriam pela praça procurando por qualquer lugar que pudesse virar um esconderijo. — Conta até cem mil!

— Hehehe — gargalhou Iara, correndo para longe das duas árvores ao centro da praça. Adentrou ao restaurante sem pensar muito no que estava fazendo, como qualquer uma das outras crianças da sua idade.

Caminhou acelerada com a cabeça abaixada em meio as mesas do salão do restaurante sem que os funcionários ou os clientes percebessem sua presença.

— Um lugar. Um lugar que ele não vai me achar — sussurrou seus planos.

Pensou em se esconder atrás de uma das mesas, ou então só permanecer o máximo de tempo que conseguisse ali dentro do estabelecimento, antes que alguém a colocasse para fora. Mas quando percebeu, já estava na cozinha do restaurante e, para além disso, algo chamou a sua atenção. Ao fundo da cozinha do restaurante uma escada lhe convidava para o segundo piso do estabelecimento.

No mesmo instante que os degraus ganharam os seus olhos, Iara se lembrou do que ouviu alguns dias atrás em uma conversar casual com seus pais: “A Garta mora em cima do restaurante, não é?”

Aquilo foi o suficiente para atingir a sua curiosidade com uma força tão grande que lhe fez esquecer completamente da brincadeira que se passava na praça com as crianças.

Os olhos da garotinha brilharam, não pensou duas vezes antes de subir o primeiro degrau. Chegou a olhar em volta para se certificar que nenhum adulto fosse lhe dar uma bronca, mas só viu os garçons servindo os clientes em um dia corrido de trabalho e os funcionários da cozinha completamente ocupados e concentrados. Retornou sua atenção para escada e continuou a subir.

Quando chegou ao topo, se viu no início de um corredor simples e vazio com poucas portas. A garotinha continuou, como se estivesse adentrando cada vez mais em uma super aventura pelo ambiente desconhecido.

Seus passos leves mal afundavam o piso de madeira e muito menos faziam algum ruído frente a sua cautela infantil. Adiante no corredor, ouviu um barulho que lhe chamou a atenção. Não havia dúvidas que o som vinha de trás de uma das portas.

A garota se aproximou, com os ouvidos atentos até estar de frente para a porta. Ouviu bem baixinho dali:

— Droga...

Os olhos da garotinha ficaram ainda mais curiosos. Ela reconheceu aquela voz e, se estivesse certa, estaria diante de uma descoberta magnífica em seu mundo inocente e infantil.

Colocou ambas as mãos na maçaneta da porta e sentiu algo pegajoso no metal, não se importou. Girou a maçaneta e abriu a porta. Viu a mulher que esperava encontrar. A dona do quarto estava em frente a uma penteadeira com uma pequena bacia d’água sobre ela, onde esfregava as mãos e se via no espelho.

— Garta? — importunou a menina.

A garota frente ao espelho se assustou a ponto de deixar cair um objeto que estava em suas mãos ao chão.

O objeto metálico bateu no piso de madeira e foi parar diante dos pequenos pés descalços de Iara.

A menina engoliu seco ao perceber do que se tratava aquilo. Uma faca com o cabo e a lâmina manchados de sangue. Ela levou seus olhos amedrontados até os de Garta. Pensou que veria um rosto perverso, cruel, mas ao invés disso, viu os olhos da garota fundos e abatidos.

Garta caminhou até a entrada do quarto e fechou a porta colocando a menina paralisada para dentro. Em seguida, recolheu a faca do chão deixando evidente suas mãos manchadas pelo sangue.

— Ah?! — Iara deu um passo para trás intimidada.

Em resposta, Garta apenas suspirou despencando os ombros. Retornou até a sua penteadeira e continuou a limpar a faca na água da bacia.

Iara manteve-se paralisada, apenas assistindo a garota de costas. Podia acompanhar os olhos dela pelo reflexo do espelho e, mesmo sendo uma criança com pouca vivência, podia sentir a tristeza que perdurava naquele olhar desesperançoso. Garta rebateu o observar pelo espelho e perguntou neutra:

— Por que não correu?

— Correr, de você?

— É. Não está com medo? — indagou a garota ainda com as mãos molhadas diante do espelho.

— Um pouco — Iara hesitou. — Mas você não é má.

— Hmph — Garta sorriu leve. — E como você pode saber se eu sou má ou não? Você é apenas uma criança.

— Você me salvou, Garta. Você salvou o papai e a mamãe. Eu vi você lutando, esqueceu?

— É verdade. Tem razão.

— Esse sangue... — Iara percorreu os olhos pelo rastro vermelho deixado ao chão pela queda da faca. — Era uma pessoa má, eu sei disso.

— ... — Garta deixou o silêncio falar por si só.

A garotinha, embora assustada, sentiu uma pontada de compaixão ao observar a expressão de Garta refletida no espelho. Ela sabia que por trás daqueles olhos cansados e daquele semblante carregado havia dor.

— Você... você me ensina a lutar? — Iara perguntou timidamente, sua voz desconstruindo o silêncio tenso do quarto.

— Do que está falando?

— Eu quero ficar forte que nem você, Garta. E aí eu vou lutar contra quem te obrigou a fazer isso.

— Por que acha que alguém me obrigou a isso?

— Eu já disse. Você não é má. Teve algum motivo para isso. Então, eu vou lutar contra ele.

Garta hesitou por um momento antes de responder, carregou sua voz com seus conflitos internos:

— Não está mesmo com medo?

— Lógico que não! Sei que se você tiver escolha, você fará o bem. Como fez para mim. — Iara se impôs estufando o peito. A garotinha atuou como se fosse uma verdadeira mulher crescida e encarou Garta. — Afinal, você me salvou, Garta. Você é uma boa pessoa.

A guardiã se surpreendeu.

“Não, Iara. Foi você quem me salvou. Em você encontrei a minha redenção. Foi sua presença que apontou a luz em meio à escuridão que me consumia. Você me mostrou que eu não era apenas àquela sombra. Que eu poderia me tornar muito mais.”

                                               ***

Um estrondo ensurdecedor estilhaçou o silêncio do salão destelhado, como um trovão do céu enfurecido. A força da explosão era avassaladora, uma verdadeira tempestade que irrompeu do centro e se propagou em todas as direções, varrendo a poeira para longe e apagando as velas em seu caminho.

— Mas o quê...? — Goro mal teve tempo de articular, antes de ser engolido pela fúria do vento e da poeira, obrigado a erguer os braços para proteger seu rosto.

Quando a tempestade finalmente se acalmou e o vendaval cessou, Goro pôde observar o olho daquele breve furacão. Seu rosto espantado deu lugar a pura incredulidade ao deparar-se com Garta, erguendo a espada curva de Finn com uma ferocidade em seus olhos.

O metal da arma reluzia à luz tênue da noite. Desprovido de ferrugem ou desgaste, ela brilhava como nunca. O fio da lâmina cintilava com uma intensidade quase sobrenatural, como se fosse capaz de cortar até mesmo a escuridão que pairava sobre eles.

A criatura, que não podia mais ser reconhecida como Bernard, se colocou diante da guardiã de Finn. Preparada para a batalha inevitável. Procurando por aquela luta.

— Esse é o olhar de um verdadeiro guardião — disse Bernard, em meio aos rosnados quase indecifráveis.

Garta respirava fundo, ofegante, a tristeza da perda dando lugar à raiva e euforia. Ela se preparou para o seu ataque, colocou a espada frente aos seus olhos com o fio da lâmina apontada para a criatura de cabeça leonina e rabo de serpente. Aquela coisa bizarra era o resumo do que ela mais odiava. Partiu sem pensar em mais nada, apenas colocou o que sentia em seus movimentos.

Cada passo em corrida na direção de Bernard era uma explosão de fúria e entrega. A criatura mal teve tempo de se proteger, tentando desesperadamente um ataque com sua cauda antes que a guardiã a alcançasse, mas foi em vão.

— Ahh!

Garta soltou um grito raivoso, sua voz ecoando entre os escombros do salão, enquanto desferia o primeiro golpe. A lâmina da espada desceu abruptamente, cortando o ar com um assobio agudo, quase imperceptível. Rasgou as escamas da criatura como se fossem papel, penetrando sua carne dura e musculosa sem encontrar qualquer resistência. A cauda se dividiu em duas, jorrando um sangue espesso e escuro pelo chão. A guardiã transpassou.

Diante da velocidade e ferocidade da mulher, a criatura, Bernard, tentou se defender com outro ataque. Rugiu com intensidade e, diante do seu rosto animalesco cheio de dentes que mal cabiam em sua boca, uma esfera de energia se formou. No instante seguinte, Bernard lançou a magia na direção de Garta, em uma tentativa de detê-la.

A esfera de pura magia de destruição iluminou todo o salão, mas Garta não temeu. Com agilidade, ela antecipou o movimento de Bernard. Com um salto ágil para o lado, escapou por pouco do impacto direto da energia de Calis. Porém, ao se reorientar para o alvo novamente, viu uma série de três ataques idênticos se desencadear, iluminando todo o ambiente com intensidade ameaçadora.

Sem hesitação, Garta disparou em corrida em volta da criatura, ciente de que não só a sua vida dependia daquilo. As esferas de energia chocaram-se ao chão por onde ela havia acabado de passar, consumindo a matéria e deixando para trás pequenas crateras em seu rastro. A guardiã estava focada apenas em alcançar sua meta, sem perceber que acabou correndo diretamente para o golpe planejado por Bernard.

— Agora você conhece a dor! — rugiu a criatura. — Agora você é realmente uma guardiã!

Com um movimento fluido, a criatura esticou suas garras afiadas, varrendo todo o espaço ao seu redor enquanto girava em seu próprio eixo. Era um golpe mortal, impossível de se esquivar.

E, de fato, Garta não tentou se esquivar. Quando as garras afiadas da criatura inevitavelmente encontraram seu alvo, o movimento cessou. Uma onda de energia rompeu dali.

A guardiã de Finn encarou o golpe de frente, brandindo sua poderosa espada com a máxima determinação e absorvendo o impacto defensivamente. Seus pés escorregaram sobre o chão até que ela conseguisse equilibrar as forças contrárias.

Sem perder tempo após a defesa primorosa, a mulher imbuiu sua espada com puro arrojo e repeliu as garras de Bernard as jogando para longe. O caminho até a cabeça feral da criatura estava completamente aberto, um momento decisivo.

Com os olhos fixos nos olhos em pânico de Bernard, Garta reuniu suas forças nas pernas e, em um movimento bravo, saltou em uma explosão de velocidade. A espada deixou um rastro de luz enquanto cortava o som, empunhada por quem tinha direito de possuí-la.

Um único e sincero corte foi desferido. A lâmina rompeu e penetrou a pele da criatura ao mesmo tempo que Garta repousava os pés sobre o topo da cabeça do inimigo.

Ela continuou o corte, arrastando a espada e abrindo caminho entre a carne e o sangue espesso.

— Ahhh!!! — berrou Garta em esforço absoluto.

Bernard respondeu soltando um rugido agonizante enquanto o ferimento profundo se abria em seu corpo. Suas garras afrouxaram e seu corpo começou a tombar lentamente para trás, sua força diminuindo.

Garta permaneceu firme, empunhando a espada e finalizando o golpe de forma resoluta.

A criatura tombou, levantando poeira ao passo que seu corpo se estirava ao chão com marcas da batalha. Em seguida, um som ardente e uma luz plena ofuscou o salão.

A luz diminuiu. A poeira começou a baixar como um véu que também trouxe o silêncio e o desfecho.

A forma feral deixou de existir e, novamente, Bernard estava estirado ao chão com o seu corpo humano de volta. Garta, absoluta, caminhava até ele com um olhar de desprezo gélido.

— Então, era isso que lhe faltava, não é? — perguntou Bernard. Seu sangue escorria pelo chão enquanto os hematomas por toda sua face e corpo o desconfigurava. — Enfim, eu encontrei. Eu encontrei a verdadeira guardiã de Finn.

— Cale a boca — rebateu fria enquanto se aproximava a passos lentos.

O sorriso fraco nos lábios de Bernard contrastava com a expressão odiosa de Garta. Embora derrotado, ele encontrava uma espécie de satisfação em testemunhar a determinação implacável da guardiã diante dele:

― Veja, minha deusa! Eu a encontrei! — Bernard gritou ao céu noturno por entre o telhado destelhado. — Que minha queda seja apenas o prelúdio do caos que está por vir! Seu desejo estará seguro! Estará seguro com a guardiã de Finn.

— Eu disse, para calar a boca — Garta empunhou sua espada uma última vez, mirou a ponta da lâmina curva ao pescoço de Bernard, repousando sobre sua pele quente o metal frio.

― Que a ira que você carrega, Garta, seja a bênção de Calis sobre este mundo caído — concluiu Bernard. Com a serenidade de não carregar mais nada em seus ombros.

Em contrapartida, Garta se viu prisioneira das suas memórias doloridas que retornavam como realidade.

Estocou. A lâmina perfurou a garganta de Bernard, sem tomar conhecimento da fraca magia que protegia o corpo do guardião de Calis.

Garta aceitou o seu destino a contragosto. A fúria e o ódio deram lugar a um vazio desolado e desconfortável. A vitória pesava como uma derrota, e isso era ainda mais nítido, ao observar a face realizada de Bernard enquanto o seu corpo perdia os últimos sinais vitais.

“Está feito, guardiã.” Sussurrou as vozes da espada no interior da mente dela.

Garta respirou fundo sem relaxar os ombros. Sem se arrepender ou se orgulhar.

— Não!

O grito ecoante pelo salão fez a guardiã retornar à realidade. Ela levou seus olhos até a origem daquele berro desesperado.

— Não! Fala comigo, Iara! Iara! — suplicou Goro.

O rapaz estava ajoelhado ao chão, com o corpo de Iara desacordado em seus braços. Seus olhos tensos e sua roupa encharcada pelo sangue da garota gravemente ferida caracterizavam o seu desespero.

Garta foi acertada por quela visão cruel. Sentiu um arrepio que lhe fez paralisar.

— Garta, não fica aí parada! — implorou Goro. Seus olhos ganhando lágrimas — O que vamos fazer?! O que a gente faz?! Por favor, não deixe isso acontecer!!!

— ...



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