Volume 2

Capítulo 95: O Passado que Não Morreu

— Aí... Aí, Hikki — sussurrou Colth, debaixo de uma grossa coberta no banco de trás do carro.

— Hã? — respondeu o rapaz ao volante, seu olhar aflito refletido nas luzes vibrantes da cidade noturna.

— No que está pensando?

— No que eu... — disfarçou ajeitando o corpo frente ao volante enquanto pisava no pedal do acelerador. — Eu estou seguindo o plano, não está vendo? Agora, fique abaixado aí atrás, tá legal?

— Eu tô abaixado — Colth estava apenas com o rosto descoberto enquanto deitado no banco traseiro envolto por uma variada pilha de roupa suja. — Você parece preocupado.

— E eu não deveria? Eu acabei de ajudar um prisioneiro a fugir e estou passeando com ele nesse exato momento pela cidade.

— Antigamente, você era mais confiante.

— As coisas mudaram, Colth — disse o motorista, antes de um suspiro. Olhou por um breve momento para o homem no banco de trás e continuou: — Estamos chegando no posto fiscal, se esconde.

Colth se cobriu completamente, deixando apenas uma pequena fresta entre a coberta que o escondia. Deitado no banco traseiro, ele podia ver apenas as luzes movendo-se no teto interno de couro revestido e uma pequena parte do céu completamente breu através da janela.

O carro diminuiu a velocidade e as luzes da torre do posto fiscal ganharam intensidade. Um solavanco e o veículo parou completamente.

Colth sentia a leve vibração do motor que, mesmo sendo quase completamente silencioso, ainda reverberava o baixo ruído pelo corpo do carro. Com isso, era possível até ouvir a respiração tensa de Hikki e o baixar do vidro da janela do motorista por ele próprio.

— Boa noite — cumprimentou o motorista.

Colth ouviu as palavras do rapaz sem conseguir ver muito além do teto do carro. Embora tenha identificado tensão em sua voz, Hikki parecia saber o que estava fazendo.

— Documentos e o motivo da sua saída — solicitou uma voz rústica feminina.

— Aqui está. Motivo profissional — respondeu de imediato.

— Hikki Vellsan — leu em voz alta a mulher. —  Me desculpe, Superior, mas as ordens são para parar todos que transitem pelas áreas.

No momento em que Colth estranhou o “Superior” direcionado a Hikki, algo passou frente a janela do lado de fora e ganhou sua atenção.

— O que o senhor está levando? — perguntou a segunda presença em uma voz masculina jovem.

— Soldado — a voz feminina intimidou imediatamente a pergunta —, você sabe com quem está falando?

— Eu sei que é o nosso Superior, mas as ordens são para entrevistar todos que estejam com alguma carga estranha e...

Colth, escondido sob a coberta, prendeu a respiração, atento a cada palavra trocada entre o motorista e os oficiais.

— Soldado, você está desrespeitando as diretrizes! Volte para o seu posto — repreendeu a voz feminina. Voltou-se mais gentil ao motorista do veículo: — Desculpe-me, senhor Hikki. O novato só está nervoso porque fez sua primeira apreensão hoje. Nada demais, mas já está se achando.

— Foram dois cristais de Sathsai — rebateu o soldado mais novo.

— Dois pequenos cristais — caçoou a voz feminina. —  Nada que precise se preocupar, Superior. Aqui, seu documento, pode passar.

— Vejo que estão fazendo um bom trabalho. Continuem assim — concluiu Hikki em tom de despedida.

— Sim, senhor.

— Sim, senhor.

Finalmente, após uma pausa angustiante, Hikki soltou um suspiro de alívio. Colth sentiu o carro se mover novamente à medida que o som abafado das vozes dos oficiais ficava para trás.

— Passamos, Colth — disse Hikki, sua voz carregada de alívio enquanto as luzes do exterior diminuíam e o carro retomava sua rota.

— Superior? — perguntou o homem, no banco traseiro, ele removia as cobertas que escondiam seu corpo, mas se manteve abaixado no banco traseiro.

— Tem sorte desse “Superior” estar do seu lado, se não fosse isso, eles jamais me deixariam sair da fortaleza com uma carga vinda da lavanderia.

— Então temos um Superior levando roupas para lavar. Que tipo de hierarquia vocês construíram nesse mundo, em? — se perguntou realmente curioso.

Colth estava sedento para olhar pela janela e observar a cidade principal no mundo de Finn, mas não poderia arriscar, não enquanto fugitivo da prisão da fortaleza Última.

— Do tipo que me mataria se descobrissem que eu o ajudei.

— Por que será que isso é tão familiar, em? — se perguntou Colth, pensativo diante daqueles dizeres.

— O quê?

— Não é nada não — desconversou.

Quase uma hora depois, e o carro voltou a parar novamente. Dessa vez o lugar estava bem mais escuro e o ar que vinha da respiração de Hikki era muito mais tranquilo.

— Chegamos — anunciou o motorista, sua voz ecoando suavemente no interior do carro enquanto desligava o motor com um simples movimento da alavanca no volante.

— Finalmente — resmungou Colth, sua impaciência mal disfarçada.

Eles saíram do veículo, e conforme o ambiente se iluminava ao redor, Colth percebeu que estavam em uma garagem apertada. As paredes de alvenaria, nuas e desprovidas de adornos, cercavam-nos por todos os lados, enquanto um portão de madeira maciça guardava a única saída visível. Apenas um par de lâmpadas azuladas pendiam do teto, oferecendo uma luz pálida que mal dissipava a escuridão ao redor.

Ao observar o veículo onde estivera, Colth ficou surpreso com sua aparência tão diferente da que havia se acostumado. Era como se tivesse sido arrancado de uma realidade paralela, diferente de tudo que já vira em seu mundo. Os contornos elegantes e agressivos sugeriam uma tecnologia além da sua compreensão, um sinal de que Finn havia alcançado outro nível de tecnologia.

O vislumbre diante do veículo se desfez quando Hikki chamou a sua atenção puxar um cordão vindo do teto ao canto da garagem:

— Vamos, Colth. Por aqui.

O rapaz puxou a corda e revelou uma passagem no teto com uma simples escada de madeira que desceu até o chão de onde estavam.

— Ah, tá bom — assentiu o fugitivo, em direção a escada.

Hikki escalou a escada de mão mostrando o caminho, e Colth seguiu logo atrás, agarrando-se aos degraus com firmeza enquanto a madeira rangia sob seus pés. Já no piso superior, o rapaz se viu em meio a um tipo de oficina.

Mesas de trabalho alinhavam-se ao longo da parede, cada uma delas coberta por uma profusão de ferramentas e peças metálicas. Estantes de madeira, curvadas sob o peso de engenhocas incomuns e objetos de formas estranhas, ocupavam os cantos da sala sem janela, mergulhando tudo em uma luz fria e difusa das lâmpadas penduradas ao teto.

No centro da sala, uma mulher solitária estava imersa em seu trabalho, tão absorta que mal percebeu a chegada deles. Sua estatura miúda e delicada contrastava com a complexidade das máquinas que manipulava com habilidade surpreendente. Ela vestia um casaco leve com um cinto de ferramentas preso a cintura, e protegia seus olhos com um par de óculos de segurança embaçados. Cercada por uma profusão de equipamentos e instrumentos dispostos meticulosamente sobre a bancada de trabalho, seguia trabalhando em meio a um zumbido suave de seus dispositivos que competia com o rangido ocasional das engrenagens em suas mãos, criando uma sinfonia sintética que preenchia os ouvidos de Colth com uma sensação incomum de já ter vivido aquele momento.

— Bertha... — Colth murmurou, mal audível.

Instantaneamente, o ruído metálico que preenchia a oficina cessou abruptamente, interrompido pela surpresa da mulher. Ela deixou cair as ferramentas sobre a bancada antes de se virar rapidamente em direção a Colth. Sua expressão, manchada por fuligem e obscurecida pelos óculos de proteção, permaneceu fechada e determinada enquanto avançava na direção do fugitivo.

— Quem é você? — ela perguntou, aproximando-se tanto que seus olhos quase se encontraram com os de Colth.

O rapaz deu um passo para trás pressionado. Tentou responder:

— Eu... — ele tentou começar, mas foi imediatamente interrompido.

— Como sabe o meu nome? —  Bertha questionou novamente, sua voz carregada de desconfiança. Dessa vez ela sacou uma chave de boca do seu cinto de ferramentas e apontou ameaçadora para o queixo de Colth.

— Bertha eu...

— Exatamente esse nome, como sabe dele?

— Beca, seus óculos estão embaçados — esclareceu Hikki ao lado deles —, esse é o Colth.

A mulher baixinha parou. Pensou a respeito, ainda com a chave apontada para o rosto de Colth, e finalmente a recolheu guardando-a no cinto. Subiu seus óculos até a testa e permitiu-se observar o rosto do rapaz com os olhos nus. Proferiu presunçosa:

— Ah, claro. É apenas o Colth, eu já sabia. Estava apenas testando ele para... Espera aí!!! — de repente, ela notou algo que a fez arregalar os olhos. Com um movimento rápido, segurou o rosto de Colth entre suas mãos, pressionando os dedos contra suas bochechas: — O seu rosto! Está exatamente como era há uma década atrás.

Os olhos dela brilhavam com algum fascínio.

Você notou foi? — respondeu o rapaz com a dificuldade de mover os lábios entre as mãos pequenas de Bertha que os pressionava.

— Não parece magia, mas também não pode ser algo natural — Bertha ponderou em voz alta analisando a pele do rosto do rapaz, seu entusiasmo crescendo. — Então só pode ser... Um ser artificial construído com peças que simulem perfeitamente a aparência e a inteligência humana. Por mais que ainda faltem ajustes à inteligência.

Ajustes na inteligência?

— Eu já desconfiava desde àquela época, mas agora não restam dúvidas, eu estou diante de um autômato. Impressionante.

Na verdade, eu fui atingido por uma forte magia combinada de Lux e Tera. É como se eu tivesse saltado onze anos.

A garota apertou os olhos e mudou a sua expressão de animada para aborrecida:

— Ah? Então é só viagem no tempo? Que chato — concluiu Bertha e libertou o rosto de Colth de suas mãos.

— É bom ver você também, Bertha.

— Não me chame assim — respondeu ela desinteressada, enquanto retornava a sua mesa de trabalho.

— Ué? Por que não?

— Pergunte ao meu ajudante, estou ocupada — finalizou ela, colocando as mãos sobre as suas ferramentas na bancada.

— Eu não sou o seu... a esquece — tentou rebater Hikki, mas percebeu que a mulher pequenina nem lhe dava mais ouvidos. Se voltou a Colth para então explicar: — A Bertha “morreu” alguns anos atrás. Ela está escondida desde então. Agora ela se chama Beca.

— Beca — repetiu Colth pensativo. Continuou com dúvidas: — Entendi, mas como foi que a Bertha “morreu”?

— Eu a matei — disse Hikki, desviando os olhos cansados.

— Você?

— Quer dizer, pelo menos é o que acham. Foi uma ordem expressa para eliminá-la e... — Hikki hesitou, seu olhar vagando até a figura concentrada de Beca, ou Bertha, no fundo da sala — ...bom, como pode ver, eu não a cumpri de fato.

— Mandaram matar a Bertha? Por quê? Quem faria isso? — Colth estava incrédulo, sua voz carregada de indignação.

— Eu não tive escolha. Foi uma ordem direta e expressa do próprio Imperador.

— Tsc — Colth lamentou, sua irritação transparecendo. — Imperador, é?



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