Volume 2

Capítulo 75: Submerso nos Céus

— Parece que vai chover — comentou Colth, observando o céu nublado escurecendo.

Caminhando ao lado de Celina, em meios às ruínas de uma cidade irreconhecível, ele tentava não pensar sobre o passado distante daquele lugar, mas também não queria refletir muito sobre o futuro que o esperava com aquela atmosfera melancólica lhe rondando.

— Não se preocupe — respondeu Koza com o seu pequeno corpo apoiado sobre o ombro de Celina —, se o que Índigo disse estiver correto, já devemos estar chegando.

— Ele nos disse que Dilin vivia em uma fortaleza imensa, não vejo nada parecido com isso por aqui — concluiu o rapaz sincero olhando para todos os lados em procura.

À medida que a jornada avançava, os prédios residenciais e as ruas pareciam estar em melhor estado. Não era para menos, estavam chegando aos limites da capital e, consequentemente, se encontravam mais distantes do epicentro da explosão de nove anos atrás que ocorreu bem no meio da cidade. Mas nada ali se parecia com uma “fortaleza” como haviam mencionado.

Mesmo que os prédios residenciais se encontrassem inteiros, não se avistava uma pessoa sequer. O silêncio ermo da região central era o mesmo dali. A vegetação já começava a tomar conta do lugar, casas eram cobertas pelo verde de árvores e gramíneas que cresciam por todos os cantos.

— Vocês acham mesmo que a Dilin pode nos ajudar? — perguntou Celina trazendo os seus pensamentos receosos.

— Eu já disse — retrucou Colth determinado —, se ela se recusar a nos ajudar, vamos convence-la. Não importa como.

— Não era bem disso que eu estava falando. Estamos provocando Lux, a deusa dos deuses. Será que vai ser o suficiente?

— Entendo a sua preocupação, garota. — Koza interferiu ao ombro dela enquanto os primeiros pingos da chuva se apresentavam tímidos. — Não sei se vai ser o suficiente, mas definitivamente Dilin é a nossa melhor aposta. Ela provavelmente é a guardiã mais forte dentre os guardiões do mesmo ciclo. Talvez, tenha poder semelhante ao de um deus.

— Poder de um deus? — sussurrou Celina impressionada enquanto mantinha a caminhada em conjunto pela rua deserta.

— E que tipo de poder seria esse? — perguntou Colth curioso.

No mesmo momento que pronunciou aquelas palavras, o rapaz sentiu o seu peso diminuir. Como se tivesse acabado de mergulhar em águas invisíveis, flutuou.

— O que é isso? — perguntou Celina sentindo o mesmo efeito.

Os pés de ambos deixaram de tocar o solo arruinado. Eles tentavam se mexer, correr ou reagir, mas pareciam presos no ar espesso.

Seus pés continuaram a se distanciar do chão. Mesmo com controle absoluto sobre os seus corpos, Colth e Celina não conseguiam escapar daquela força ascendente. Estavam flutuando, levitando aos céus.

— O que está acontecendo, Koza!? — gritou Coth sem saber como reagir.

— Nós a encontramos. Encontramos a fortaleza da Dilin! — respondeu a criatura mirando seus olhos impressionados ao céu enquanto se agarrava ao tecido das roupas de Celina.

Colth virou o rosto para o alto, provocado pelo apontar de Koza. Viu uma estrutura enorme no céu em meio as nuvens cinzas carregadas.

A grande nuvem que trazia a chuva, escondia algo mais.

Seus corpos se aproximavam da estrutura que parecia domar os céus. Realmente, uma fortaleza cercada por muros de concreto que se apoiava sob uma camada grossa de terra flutuante, como uma ilha no céu.

A estrutura era imensa, maior do que muitas quadras da capital. Inimaginável de aquilo estar nos céus, sobrevoando a cidade sem qualquer propulsão. Mas se isso não bastasse, a estrutura estava de ponta cabeça. O telhado do prédio no centro dos muros apontava para baixo.

Colth arregalou os olhos e engoliu em seco se surpreendendo com aquela monstruosidade.

— Isso é imenso...

Sussurrou ele, enquanto, ao lado de Celina, continuavam a ascender ao céu. Ou talvez, estivessem caindo na estranha ilha fortaleza revirada.

A velocidade de seus corpos aumentou, como em uma queda livre invertida. O telhado do prédio flutuante se aproximava rápido enquanto a terra firme da Capital já estava distante. E percebendo o inevitável impacto no concreto maciço, Colth agarrou as mãos dela e fechou os olhos implorando para aquilo ser apenas um sonho.

Continuaram caindo, despencando céu acima. Colth sentiu o vento cortante no rosto machucar sua pele até que, simplesmente parou. Ele manteve os olhos fechados por mais alguns segundos, achando que havia calculado errado o tempo do impacto e que a morte certa ainda estava por vir, mas nada aconteceu.

Finalmente abriu os olhos e se viu sobre a superfície de concreto. Com o seu corpo flutuando a centímetros do sólido telhado, viu Celina e Koza na mesma situação ao seu lado sem conseguirem mexer os seus corpos.

— Olha só, eu tenho visitas! — disse uma voz feminina carregada com uma animação quase infantil se aproximando deles.

— Dilin — Koza notou a garota saltitante.

— Olá, dragãozinho! É uma surpresa você ainda estar vivo. O que veio fazer no meu castelo? — perguntou a garota baixinha parando ao lado dos corpos flutuantes das suas três “visitas”.

Atrás dela, dois homens em armaduras de placa, portando lanças afiadas com capacetes cobrindo todo os seus rostos se posicionavam em guarda a vigiando.

— Viemos conversar! Queremos sua ajuda! — gritou Colth, atravessando a conversa com seu implorar.

— Hã? — Dilin inclinou a cabeça e elevou as sobrancelhas em dúvida sincera enquanto encarava Colth. O avaliou. Se voltou a Koza: — Dragãozinho, quem é esse?

— Ele é o Colth. Um amigo. Estamos aqui para conversar sobre uma proposta. Queremos que...

— Colth, é? Gostei dele — comentou a baixinha interrompendo Koza, sem dar mais atenção.

Ela observou mais minuciosamente o rapaz se aproximando de sua face. Colth teve o seu rosto corado ao perceber a beleza pura daquela mulher. Seus contornos perfeitos se assemelhavam à de uma boneca, assim como a sua pureza nos olhos despreocupados e o seu belo cabelo longo completamente branco amarrado em um duplo coque, tão perfeito, que Colth perdeu o ar.

Antes que ele pudesse responder, a guardiã de Nox sacudiu a mão direita em um sinal especifico, fazendo com que os três finalmente fossem soltos pelo ar aprisionador, seus corpos caíram sobre o concreto do telhado.

Colth se levantou sacudindo a poeira e, de imediato, foi em auxílio à Celina:

— Você está bem? — perguntou ele enquanto a ajudava ficar de pé.

— Eu estou bem, obrigada — Celina respondeu com um sorriso amigável único.

Dilin observou tudo de forma atenta. Arqueou as sobrancelhas e trouxe seus pensamentos em voz alta:

— Eu não gostei dela.

— Calma, Dilin — disse Koza, rapidamente tomando a atenção. — Celina é importante para o que eu tenho a dizer. Ela é a guardiã de Tera. Queremos sua ajuda para se juntar a nós e...

— Guardiã de Tera? — perguntou a menina, interrompendo novamente Koza. Dilin mediu Celina com os olhos e virou o rosto com menosprezo: — Grande coisa, eu também sou uma guardiã.

Koza novamente foi rápido para intervir:

— Sim, nós sabemos. É por isso que estamos aqui, Dilin. Queremos sua ajuda. Estamos reunindo aliados para combater a...

— Colth — Dilin chamou a atenção do rapaz, interrompendo Koza mais uma vez.

— Sim — pronunciou-se ele.

— O que essa Celina — Dilin revirou os olhos —, é sua? Qual é a sua relação com ela?

Colth se surpreendeu com a pergunta da pequena mulher audaz. Ficou sem graça:

— Qual... qual é a minha relação com a Celina? — sentiu seu rosto voltar a ferver em vermelho. — Nós somos amigos.

— Amigos... — repetiu Dilin, apertando os olhos e julgando o espaço entre Celina e Colth. — E porque estão de mãos dadas?

Foi a vez de Celina ter o seu rosto completamente corado. Ela rapidamente afastou sua mão à do rapaz. Não haviam nem percebido, mas de fato, as mãos deles estavam entrelaçadas, tornando aquele momento ainda mais embaraçoso.

— Você deveria procurar amigos melhores, Colth — recomendou Dilin com um tom acirrado. — Essa daí é toda atirada.

— ... — Celina avermelhou-se mais. Queria poder esconder o seu rosto, mas não tinha onde.

Koza tentou retomar o foco da conversa: — Dilin, precisamos que você nos ouça.

— Ouça sobre o quê? — devolveu ela, com uma expressão levemente desinteressada. — Sei que estão aqui para me pedir ajuda contra Lux.

Você sabe? — perguntou Colth, um tanto impressionado.

— E teria mais algum motivo para virem até aqui? — disse Dilin, se afastando para trás de seus soldados armados. — De qualquer forma, estou ocupada. E minha resposta é não. Agora, guardas, prendam eles.

— O quê? Espera, não vai nem ouvir o que temos a dizer? — Celina anunciou o seu implorar enquanto os soldados já avançavam.

— Vocês estão pedindo para que eu lute contra a deusa criadora. Eu não tenho o que ouvir. Aproveitem a estadia — concluiu a menina em despedida.

— Espera, Dilin! — suplicou Colth. — Não estamos pedindo que lute contra Lux. Estamos pedindo que se junte a nós.

Ela franziu o cenho, um tanto intrigada com a afirmação de Colth. Cruzou os braços e encarou o trio com um misto de desconfiança, superioridade e curiosidade.

— Me juntar a vocês? Para quê? O que estão planejando exatamente? — questionou ela, mantendo sua postura defensiva.

Colth deu um passo à frente, tentando transmitir convicção e sinceridade em suas palavras:

— Estamos propondo uma aliança. Juntos, temos uma chance de enfrentar a deusa e restaurar o equilíbrio que ela perturbou. Restabelecer o mundo de Tera, como ele era antes.

A pequena mulher inclinou a cabeça, pensativa, mas ainda cética:

— Vocês têm alguma ideia de como enfrentar Lux? Vocês têm alguma noção do que ela é capaz de fazer? O quão forte ela é?

— Sabemos que é uma batalha difícil e perigosa — Koza assentiu com seriedade. — Mas também acreditamos que, com nossos poderes combinados, podemos encontrar uma maneira de neutralizar as ações de Lux. Dilin, você é uma peça fundamental nisso. Sua habilidade é incomparável.

— É, eu sei — concordou ela em tom autoritário. — Mas isso não responde a minha pergunta. Como vão enfrentar Lux?

— Vamos reunir os guardiões — disse Colth convicto. — Não cometeremos os mesmos erros dos deuses e...

— Hahaha — a garota caiu em uma gargalhada sincera enquanto os outros estranhavam. — Hahaha... Porque não estão rindo? É uma piada, não é?

— Não é piada, Dilin — respondeu Koza. — Já temos quatro guardiões, mas o Colth vale por dois, então...

— O Colth vale por dois? — A garotinha esgueirou os olhos interrompendo o seu riso, surpresa e interessada: — O que isso significa?

— Ah. — Colth sentiu-se um pouco desconfortável com a expectativa da mulher. — Eu sou o guardião de Anima, mas também tenho a magia de Mutha comigo.

— Guardião de Anima — Dilin se virou para esconder os seus sussurros e seus olhos esperançosos: — Só pode ser o destino.

Ela parecia contemplativa, mas não estava pronta para ceder. Olhou para o horizonte, pensando nas palavras deles. A tensão pairava no ar enquanto os soldados aguardavam suas ordens, prontos para agir.

— Eu vou considerar sua proposta — retornou finalmente, surpreendendo a todos com sua resposta. — Mas vou fazer isso com uma condição. Se realmente querem minha ajuda, terão que provar que merecem. Venham comigo.

Os outros três se surpreenderam com a repentina mudança de rumo da conversa. A garota mudou sua perspectiva tão rápido que foi difícil de acompanhar.

Ela se afastou alguns passos, conduzindo-os através do telhado em direção ao interior da fortaleza voadora. Apesar do ceticismo inicial, havia um brilho de esperança nos olhos de Dilin. O trio a seguiu, ansioso para descobrir o que ela tinha em mente.

Antes de adentrarem ao prédio, Colth olhou uma última vez para o alto e viu a cidade Capital distante, onde geralmente vislumbraria o céu, estava a cidade devastada de ponta cabeça: — Isso é loucura.

 Dilin os guiou através dos corredores da fortaleza, passando por diversos quartos e espaços imponentes.

O interior da fortaleza era tão impressionante quanto o exterior. Salões amplos e ricamente decorados se espalhavam por toda parte, adornados com tapeçarias, estátuas e móveis luxuosos. Grandes lustres de cristal pendiam dos tetos, espalhando uma luz brilhante e acolhedora por todo o ambiente.

Colth se impressionou com a quantidade de pessoas que haviam por ali, alguns faziam simples trabalhos domésticos enquanto outros apenas se divertiam conversando nos corredores, mas todas elas abriam caminho com simpatia e admiração pela mulher que os lideravam.

Dilin seguia com confiança pelos corredores, cumprimentando todos com sorrisos e palavras gentis, e recebendo deles um respeito genuíno e uma gratidão notável. Era evidente que, apesar de sua fachada de poder e indiferença de uma garota mimada, ela era uma líder que se preocupava profundamente com aqueles sob sua proteção.

— Porque tem tanta gente aqui? — se perguntou Colth, sem ter uma resposta certa.

— São servos — sussurrou Koza sobre o ombro de Celina.

— É bem impressionante — respondeu ele.

Enquanto percorriam os corredores, Colth, Celina e Koza observavam os servos de Dilin em suas atividades cotidianas. Pessoas de diversas origens, todas compartilhando um vínculo comum que era a gratidão pela guardiã de Nox.

Os três eram o centro das atenções dos olhares curiosos daquelas pessoas. Sussurros por toda a fortaleza se perguntavam quem eram os desconhecidos que acompanhavam a líder.

Algumas das salas pelos corredores eram oficinas, onde artesãos trabalhavam em suas criações, enquanto outras eram salas de treinamento, onde guerreiros se preparavam em treinamento.

— Dilin, vejo que continua seguindo os passos de Nox — comentou Koza.

A baixinha que os guiavam manteve-se em silêncio e apenas continuou avançando.

Finalmente, eles chegaram ao último quarto do grande corredor, o lugar era mais modesto do que o resto da fortaleza e o mais afastado de todos. Servo nenhum parecia se atrever a chegar perto dali, nem mesmo os guardas que, até então, acompanharam a mulher, permaneceram.

Dilin abriu a porta e os conduziu para dentro. O interior era sombrio, com apenas uma luz fraca vinda de uma pequena janela ao fundo. No centro do quarto inteiramente de pedra rústica, havia um homem imenso sentado ao chão, a figura encurvada e monstruosa estava cercada por correntes que o mantinham contido.

O coração de Dilin se apertou ao olhar para aquela pessoa, que mais se assemelhava a uma fera selvagem do que a um ser humano. Ele rosnou e grunhiu ao sentir a presença dos visitantes.

— Mon... — sussurrou Dilin, com a voz carregada de tristeza. — Você ainda está aí, não está?

Colth, Celina e Koza observaram com cautela, enquanto a garota se aproximava receosa com passos curtos, compreendendo a gravidade da situação.

— O que aconteceu com ele? — perguntou Colth em um sussurro.

O gigante levantou o rosto e mostrou os seus olhos infestados por ódio diante da garota. Rugiu de imediato, como um animal, e tentou agarra-la, mas seus braços cobertos por correntes presas ao chão e paredes lhe interromperam.

Dilin não recuou perante o ataque furioso, não vacilou enquanto o observava impotente. Contudo, uma onda de melancolia passou por seu corpo, como um vento gélido soprando através da pequena janela. Ela baixou a cabeça por um momento, tomada pela tristeza, mas logo a ergueu, fixando seus olhos cheios de esperança em Colth:

— Não importa o que aconteceu com ele. O fato é, Mon ainda está dentro dessa coisa, eu posso sentir. — Convicta, continuou: — Sua consciência está mergulhada em uma magia cruel. Submersa em uma maldição que o consumiu até chegar a esse estado. Eu quero que você, guardião de Anima, o traga de volta.

— O quê? — surpreendeu-se o rapaz, quase não acreditou no que ouviu. — Como eu...

— Se fizer isso — Dilin interrompeu com determinação no rosto. — Se trazer o meu irmão de volta, eu me junto a vocês.



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