Volume 2

Capítulo 71: Coração de Flor

À noite, mais escura do que qualquer outra, passou rápida, se adiantando a qualquer despedida que estava por vir.

Em meio aos amigos que faziam parte dos mesmos objetivos perigosos, Garta e Colth se forçaram a fingir que nada havia acontecido.

Foi difícil estar reunido na mesma fogueira com a mulher surpreendente, mas o rapaz escondeu qualquer sentimento confuso que sentia, foram mascarados por risadas e felicidade verdadeira compartilhada com todos os outros ao redor do fogo.

Além de tomar conhecimento de mais histórias do passado que para eles não existiu, mais planos foram traçados em meio à noite escura apenas interrompida pelas chamas que ali ainda se recusavam a apagar.

Na manhã seguinte, o sol pareceu se atrasar e o ar, mais frio do que o do dia anterior, se destacou junto a leve neblina que assumiu a cidade em ruínas.

— Tem certeza de que isso vai funcionar? — perguntou Colth em direção a Koza.

Sobre o ombro de Goro, a criatura respondeu:

— É possível. Não esqueça que ela já salvou a sua vida, duas vezes.

— Tem razão. — Concordou Colth e voltou a observar a guardiã de Tera.

— Se isso funcionar, ela pode dar um jeito nesse seu olho também, não é? — perguntou Goro em direção à Garta que não se empolgava nenhum pouco.

— Até parece. Esse maldito colar de Sathsai no meu pescoço impede qualquer magia de assumir meu corpo — A guardiã de Finn virou o rosto sem esperança e sussurrou sem que ninguém ouvisse. — E eu nem mereceria.

— Hã? — Goro percebeu o desalento sem se intrometer.

Além deles, Iara também acompanhava a situação, talvez fosse a mais apreensiva de todas, e observava atenta a guardiã de Tera prestes a usar sua magia.

Celina se concentrava sobre a perna enfaixada de Índigo deitado ao chão em uma tentativa de trazer a sua capacidade de andar sem auxílio de uma muleta de volta. Ele só podia rezar para que aquilo viesse a funcionar enquanto os outros se mantinham observantes com a mesma expectativa.

Uma luz esverdeada tingiu as palmas da mão de Celina que as colocou sobre as bandagens da perna do homem. Ela se dedicou ao máximo, usou de sua magia para tentar recuperar Índigo.

— Ahh!!! — O homem gritou em dor.

— Índigo — Iara se preocupou e foi de encontro as mãos do homem deitado esbravejando sua dor.

— Eu tô bem... Ahhh! — resistiu ele apertando os dentes enquanto os tecidos vivos de seu corpo se entrelaçavam para renovar a perna prejudicada.

Passaram-se alguns segundos de concentração por parte da guardiã de Tera e resiliência do guardião de Véu. Os gritos cessaram e a luz das mãos de Celina pararam de emanar.

— E aí? Deu certo? — apressou-se Goro observando.

Celina mostrou seu rosto um tanto decepcionado aos três que acompanhavam mais distantes. Acenou negativamente com a cabeça evidenciando a situação ao Koza.

— Talvez o poder de Bernard esteja em outro patamar — concluiu a criatura em tom desistente enquanto observava a garota e Iara ajudarem Índigo a se levantar.

Aquela havia sido a última tentativa que Celina faria procurando reconstruir a perna prejudicada do guardião de Véu.

— Eu sinto muito, não poder ter ajudado — lamentou Celina.

— Não se preocupe. Isso não é culpa sua — respondeu Índigo voltando à sua muleta com ajuda de Iara. — Mas infelizmente não poderei acompanhar vocês. Nesse estado, eu só atrapalharia.

— Você vai ficar bem? — Novamente Iara se inquietava com as condições do mais velho.

— Tem comida e água para mais de mês no abrigo. Não se preocupe comigo. Se concentre em manter os outros à salvo e use de tudo que falei e ensinei para sobreviver.

— Pode deixar — concluiu Iara em tom de despedida.

Celina se aproximou do resto do seu grupo, continuando decepcionada consigo mesma, disse:

— Eu não entendo o motivo da minha magia não ter funcionado.

— Não desanime, Celina — reagiu Colth.

— O rapaz tem razão. — concordou Koza. — Não há motivos para desânimo. Eu já falei isso para você. Algumas magias são bem mais efetivas contra alguma outra específica. Calhou de que o ferimento de Índigo foi causado por magia de Calis, magia do caos. Justamente o oposto da sua magia, a magia do tempo.

— Magia do caos? — Goro perguntou impressionado e até um pouco assustado.

Ao seu ombro, Koza respondeu:

— É só um nome legal, podemos chamá-la de magia destrutiva ou magia de alteração, mas ela se se resume a poder físico. Destruição pura causada pela desordem da matéria.

— Então, esse tal de Bernard tem o poder de destruir?

— Mais ou menos isso. A desordem depende da ordem, e vice-versa. Cada um deles tem o seu próprio jeito de lidar com isso.

— Ah... — Goro brandiu as sobrancelhas.

— Você não entendeu nada, não é? — perguntou Colth já conhecendo aquela reação.

— Nadinha.

— Aff. — Koza suspirou sem se impressionar. Tentou resumir a própria explicação de uma forma mais simples:

— Imagine um grande quebra-cabeças. Bernard tem o dom de destacar uma peça e encaixa-la em outro lugar ou de um outro modo, ou ainda, simplesmente arrancá-la e deixar um vazio em meio a tantas outras peças. A Celina tem a capacidade de reconstruir, trazer de volta essa mesma peça e encaixá-la de volta. Ainda assim, seria possível a magia de Tera trazer muito mais peças e provocar uma destruição por sobreposição de peças, ou melhor dizendo, sobreposição de matéria.

—... — Goro ficou boquiaberto. — Acho que entendi, Calis destrói e Tera concerta.

— Não é tão simples — rebateu Koza. — A magia é apenas uma ferramenta, o que será feita com ela, depende do usuário.

— Essa sobreposição, da qual você falou, Koza — prosseguiu Colth. — Foi o que Hueh usou quando estava no controle da magia de Tera, certo?

— Exato.

— Isso explica a destruição que a Celina causou no palácio da Capital — comentou Goro.

A guardiã, escutando atenta a conversa, escondeu o rosto observando as ruínas que um dia já foram a cidade.

— Não. Não foi ela. — Colth ergueu a voz sobre o seu amigo ao perceber a reação da garota. — Ela jamais faria algo assim. Aquilo não foi culpa sua, Celina — realinhou Colth. — Aquilo tudo foi o Hueh.

— É... eu sei — a garota sussurrou sua resposta sem mostrar uma expressão certa no rosto.

— Então, a mesma magia se mostra diferente quando utilizada por pessoas diferentes — Goro chegou a sua própria conclusão. — Eu concordo, seria impossível a Celina ter originado aquela destruição sendo tão meiga.

A garota impressionou-se, acanhou-se com as bochechas vermelhas.

— Que isso? — Surpreendeu-se Colth, um tanto incomodado com a espécie de elogio sem noção vindo de Goro. — Não saia falando esse tipo de coisa assim.

— Esse tipo de coisa?

— Você entendeu, Goro — retrucou o rapaz perturbado pelos olhos apertados de seu amigo.

— Eu não entendi não — cantarolou o outro com um sorriso sarcástico.

— Não se faça de...

— Já chega. — Garta se fez ouvir interrompendo a discussão completamente desprezível: — Está na hora — disse a guardiã de Finn colocando uma mochila às costas e se preparando para partir.

Todos ficaram em silêncio por um segundo melancólico, todos sabiam que a despedida havia chegado.

— Tem razão — Celina concordou enquanto os dois grupos se formavam um frente ao outro.

— Eu espero vê-los logo — disse Índigo em tom de adeus frente ao abrigo e as cinzas da fogueira do dia passado.

Colth estava ao lado de Celina que, como planejado, carregava Koza em seu ombro. Diante deles e daquela partida que se daria em caminhos opostos, Garta, Goro e Iara do outro lado, se reuniam.

A garota mais nova da roupa enfeitada em rosa e o arco nas costas sorria enquanto Goro brindava voz ao tom de separação:

— Nada de se esquecer do objetivo e decidir deixar todo o trabalho pesado para nós.

— Ah. — Colth sorriu em bom humor, respondeu: — E você, nada de ser mais babaca do que você já é.

Goro refletiu o riso da contrapartida e Colth finalizou a sua ironia. Voltou-se mais sério:

— Obrigado. — Esticou a mão amigável.

— Vê se não faz besteira. — Goro alcançou o cumprimento do amigo.

— Pode deixar — finalizou.

— Vamos logo, não podemos ficar perdendo mais tempo — apressou Garta, mas impaciente do que o normal.

— Ah, espera. Eu quero tentar mais uma coisa! — anunciou-se Celina após buscar coragem em seus pensamentos. Deixou Koza saltar para o ombro de Colth e avançou para o outro grupo: — Garta, fica de joelhos.

— Hã? O quê? — a guardiã de Finn surpreendeu-se.

Celina parou frente a ela e sorriu leve. Pediu amigavelmente mais uma vez com uma simpatia não vista antes:

— Eu quero tentar algo. Vamos, se ajoelhe.

— Ah... Tá bom. — Garta não conseguiu recusar, por mais estranho que aquilo parecesse.

Colocou seus joelhos na terra devastada e esperou a garota estranhamente satisfeita diante dela.

Celina sorriu com os olhos e irradiou uma esperança que Garta jamais pensou em ver neles.

“Essa garota, ela realmente, não é a mesma de antes.” Pensou Garta observando com o seu único bom olho castanho escuro a bela garota de rosto decidido que um dia foi tratada como um vaso vazio, uma aberração sem sentimentos.

— Aqui vai. — Celina colocou as mãos no rosto de Garta que se surpreendeu.

Todos estranharam, mas foi Colth que deu voz a isso:

— Celina, o que você...

— Shh. — interrompeu Koza pedindo silêncio.

Celina fechou os olhos concentrada. Dois segundos se passaram, mas nada pareceu acontecer.

— Não vai funcionar — disse Garta sem perspectiva —, esse colar de Sathsai impede qualquer magia de fluir pelo meu corpo.

— Eu tenho que tentar mais uma vez, tentar curar o seu olho. Tenho que me esforçar mais, assim como você fez.

Celina se concentrou mais, com o rosto mostrando o seu anunciado esforço.

Garta ficou boquiaberta enquanto observava a face dedicada da outra. Continuou com seus pensamentos:

“Quando foi que você mudou tanto? O que te fez mudar tanto?”

Ajoelhada frente à guardiã de Tera, Garta se sentiu inferior. Mas, diferentemente do esperado por ela própria, não coibiu, apenas admitiu em suas reflexões:

“Foi ele, não foi? Você se tornou forte assim, por causa dele. Se ao menos eu não tivesse essa merda de coleira no meu pescoço, eu poderia ser mais...”

— Eu queria ser tão forte como você, Garta — sussurrou Celina interrompendo o pensamento perdido dela.

— Hã? O quê?

— Eu queria tanto poder te ajudar, pois você me ajudou tanto — A guardiã de Tera soprou branda retirando as mãos do rosto de Garta. — Me desculpe, eu realmente não consigo fazer nada por enquanto.

— Foi o que eu disse — respondeu Garta áspera disfarçando o seu pensar.

Celina voltou a abrir os olhos mostrando um sorriso solidário:

— Eu sinto muito.

— Não se preocupe, não é culpa sua — Garta virou o rosto deixando em destaque o seu olho inútil, se levantou para de volta ao seu grupo. — De qualquer forma, Celina... Obrigada, eu entendi agora.

A guardiã de Tera estranhou ao se colocar ao lado de Colth e Koza:

— Entendeu? Mas eu não disse nada, Garta.

— Quem sabe... — respondeu ela pensativa com a observação para além do horizonte em ruínas. — É melhor irmos. Temos que aproveitar a luz do dia ao máximo.

Foi o que todos concordaram, os grupos se despediram de vez e, quando estavam prestes a iniciar a caminhada em direções opostas:

— Garta — pronunciou Colth.

A mulher respondeu se atentando o que ele tinha a dizer. Mostrou o seu rosto neutro, evitando ao máximo demonstrar qualquer emoção.

Colth recebeu o olhar dela melindrado. Continuou hesitante:

— Eu queria dizer que...

— Pode deixar, eu vou cuidar bem do Goro e da Iara. Não se preocupe, e quando eu voltar, estarei com a minha magia de volta — Garta se virou rápida, impedindo qualquer resposta. Impedindo de que se arrependesse. Caminhou na direção da distância sussurrando seus pensamentos apenas para si: — Vou mostrar que eu não sou uma inútil.

Colth ficou sem reação e, ao lado de Celina e Koza, permaneceu calado.

— Até mais! — despediu-se Goro.

— Até! — Celina e Koza.

— Tchauzinho! Se cuidem! — gritava energética Iara, se distanciando com o seu grupo.

Passaram-se apenas alguns minutos debaixo do sol ameno. Iara andava a frente reportando o caminho. Mais atrás, Garta ainda estava pensativa, perdida em suas descobertas e, ao seu lado, Goro se preocupava:

— Está tudo bem?

— Acho que sim — Garta respondeu sem atenção.

— Escuta, quando isso acabar... Eu estarei sozinho, então...

— Hã? — estranhou ela.

— Você acabou de admitir a derrota, não foi? — perguntou o rapaz adorando ver o rosto surpreso dela. — Você avançou com tudo e, mesmo assim, não teve o resultado esperado. Se quiser um ombro para chorar...

— Não sei do que você está falando? — disfarçou ela continuando a caminhada.

— Como não? Acabou de abrir mão. Mesmo depois de roubar um beijo dele. Eu acho que isso conta como uma derrota.

O rosto de Garta foi corando aos poucos até estar completamente irreconhecível e acanhada:

— O quê? Como...

— Bom, eu só vi você saindo do abrigo com a mão na boca e o rosto envergonhado ontem à noite, do jeitinho que tá nesse momento. Mas essa sua reação de agora, é mais do que uma confirmação da minha suspeita. Então o Colth ganhou um beijo da amedrontadora guardiã de Finn, isso é tão injusto — finalizou em tom de protesto.

— Eu não beijei ninguém...

— Já é tarde para negar — Goro deu como certo.

— O Colth te contou? — contestou ela.

— Não. O Colth jamais contaria isso para alguém. Então, você partiu para o ataque ontem, e hoje recuou. Fico me perguntando o que te fez mudar de ideia — completou com um sorriso de canto de boca, tinha conseguido alcançar o seu objetivo.

Ainda constrangida e atingida por seus sentimentos, Garta não cedeu, mas manteve o seu tom desgostoso:

— Eu não quero falar sobre isso.

— O Colth deve beijar muito mal — supôs Goro. — Ou talvez, você tenha sido rejeitada. Não. O Colth jamais rejeitaria alguém que está tão acima das capacidades dele. Quem sabe, você descobriu uma atração louca por mim, e agora não consegue esconder.

— Cala boca, você não sabe do que está falando.

Garta tentou encerrar o assunto, mas Goro não a deixaria tão fácil:

— Ou então — disse ele com seu sorriso malicioso enquanto cantarolava suas palavras —, a Celina te fez perceber o que já está bem óbvio.

— ... — Garta não respondeu.

— Então, realmente é isso. É uma pena, eu preferia a opção em que você estivesse louca por mim. Mas agora que você desistiu...

— Você é mesmo um babaca — disse ela escondendo o rosto em tom pesado. Remoeu a raiva e a trouxe à tona com o olhar impiedoso: — Eu não desisti.

Ela apressou o passo.

Goro foi estranhamente acertado por aquilo. Geralmente cantaria a vitória e daria uma boa risada de uma situação dessas. Mas dessa vez, sentiu uma força contrária, uma força implacável. Era um sentimento que não estava familiarizado e que o fez pensar de forma descontente:

“Qual é o problema dela?”

Iara continuava à frente na caminhada sem prestar atenção à conversa as suas costas, e sim aos arredores, quando percebeu Garta aflita não deixou de intrometer-se:

— Ei! — gritou a garota parando a caminhada com suas sobrancelhas franzidas. — O que você falou para a Garta?!

— É... — Goro não teve palavras.

— Não foi nada — disse Garta recuperada. Virou a página com o gosto do arrependimento nos lábios. — Só vamos seguir. Fiquem atentos. Daqui para frente, pode ficar mais perigoso.

— Certo — concordou Iara tornando a caminhar.

— ... — Novamente, Goro ficou calado, parou por um segundo seus passos, ficando para trás.

Algo não estava certo. Ele percebeu isso de uma forma nada convencional. Respirou fundo antes de prosseguir, recuperando o fôlego e se decidindo:

— Essa mulher...

Os três continuariam sua viagem pelas ruínas da Capital em direção à Tekai. Foram mais alguns minutos de caminhada sobre o terreno acidentado até que, repentinamente, Iara parou o avanço.

Goro continuou, disfarçou a discussão há pouco e, com o queixo erguido e o orgulho em dia, se impôs:

— O que foi? Está com medo de... — Interrompeu-se ao pisar em falso.

À frente, uma enorme depressão traiu os pés do rapaz. Sem chão, Goro foi seguro por trás, pelo colarinho de seu casaco. Engoliu seco ao ver o precipício diante de seus olhos.

Garta o puxou de volta para a planície, longe do enorme buraco. O rapaz caiu sentado ao chão e disfarçou sua imprudência levantando rapidamente e sacudindo a poeira de suas roupas.

— Vai ser difícil atravessar um lugar assim — disse Garta observando o lugar. — É melhor darmos a volta.

— Podemos dar a volta — respondeu Iara —, mas perderíamos a nossa primeira parada.

— Esse é o lugar?

— Sim. Esse é o centro da Capital. O epicentro da explosão de Tera — esclareceu a garota de rosa, no alto do que era uma cratera imensa no solo devastado que um dia já fora a cidade central.

A beira do abismo, enquanto sua saia tremulava ao vento frio, Iara observou o objetivo no centro da cratera, com Garta determinada ao seu lado e Goro impressionado pelo cenário assolado, estavam diante do resultado do confronto divino.



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