Volume 2
Capítulo 123: Passado, Sombras de Ontem
— O quê? Isso é loucura — rebateu o jovem Hikki. Sua voz cortou o silêncio da biblioteca. Ele balançou a cabeça, tentando reorganizar os próprios pensamentos. Virou-se para os outros dois à mesa, buscando apoio, e então retornou o olhar a Aldren. — Está dizendo que a deusa Lux pretende retornar a Finn e terminar o que começou anos atrás?
Aldren sustentava o olhar sério, a luz das velas marcando sua preocupação no rosto e iluminando todo o ambiente. A biblioteca da fortaleza Última era uma arca de conhecimento ainda a ser redescoberto.
Prateleiras de madeira escura erguiam-se até o teto adornado, abarrotadas de livros envelhecidos, rolos de pergaminho e mapas amarelados pelo tempo. O cheiro de papel antigo e tinta desbotada assumia o ar, misturado ao aroma amadeirado dos móveis robustos e do tapete espesso que cobria o chão de pedra fria, abafando os passos dos quatro líderes reunidos ali.
Sentados à grande mesa central, Hikki exalou um suspiro pesado, enquanto seus olhos cor de mel aparentavam incredulidade. Seu cabelo negro e liso caía de maneira desleixada sobre a testa, mas ele não se importava em arrumá-lo, apenas se focava na reação que viria dos outros.
— Por favor, Aldren — interveio Liz, sempre reservada e serena, embora a preocupação se estampasse em seu rosto delicado, margeado por longos cabelos violetas. — O que está dizendo é muito sério.
— Ele não parece estar mentindo. — Bertha estreitou os olhos âmbar em direção ao homem. — Mas isso é absurdo. E você se recusa a dizer de onde tirou essa informação. Como quer que levemos isso a sério?
Aldren franziu a testa.
— Não é absurdo!
— Calma, Aldren. — Hikki ergueu a mão em um gesto apaziguador, mas sua expressão permanecia cética. — O que Bertha quer dizer é que não podemos colocar a vida das pessoas da vila em risco simplesmente porque você acredita nisso.
Aldren inclinou-se para frente, a frustração pesando em sua voz:
— Mas é isso que eu estou tentando evitar! Se não trouxermos Lux e capturá-la agora, ela virá sem misericórdia para destruir o que restou desse mundo! — rebateu ele.
Hikki apertou os olhos. Sua voz saiu mais firme, impressionante, para o mais novo entre eles.
— Você quer realizar um ritual desconhecido e perigoso para trazê-la e aprisioná-la — começou o garoto, esclarecido. — Já pensou no que pode acontecer se algo der errado? Se as pessoas se machucarem? Se Lux conseguir se libertar no meio do processo?
A biblioteca mergulhou em um silêncio espesso.
— Ela virá de qualquer jeito… — murmurou Aldren.
— Você não sabe disso! — Bertha interrompeu, batendo com uma das mãos manchadas de graxa na superfície da mesa, impaciente.
— Vai acontecer — insistiu Aldren, sustentando o olhar. — Mais cedo ou mais tarde. E quanto mais tempo passarmos sem fazer nada, mais riscos corremos.
Hikki suspirou e relaxou a postura observando os dois. Em seguida, endureceu o olhar mirando Aldren e disse em exigência:
— Se o que você diz é verdadeiro e tão urgente, então nos diga de onde tirou essa informação. Como soube do ritual de convocação? Como sabe dos planos de Lux?
Aldren virou o rosto, se negando a responder de imediato. Bertha levantou a voz. Impaciente:
— Se quer que levemos a sério essa suposição absurda, então é melhor começar a falar!
— Já disse que não posso — respondeu Aldren.
Hikki apertou os lábios.
— Você convocou essa reunião, Aldren. Despejou um monte de teorias na mesa e se recusa a dizer onde conseguiu tudo isso?! — Insatisfeito Hikki. — Quando concordamos em comandar a vila e fortaleza Última e liderar os esforços para contatar o mundo de Tera, dividimos a confiança. Acha mesmo que o povo da vila aceitaria isso que você está propondo sem um motivo justificado?
Aldren calou-se, contrariado. Ele sabia que não seria fácil convencê-los, mas o tempo o apressava a agir. Lux era de fato uma ameaça ao que havia restado do mundo de Finn.
Após quase um ano naquele mundo, buscando possibilidades do retorno à Tera, eles não haviam avançado muito nessa tarefa. O melhor que conseguiram eram algumas traduções das antigas tecnologias de Finn que a equipe de Bertha decifrou, mas nada que verdadeiramente mudasse a realidade deles.
A sensação de abandono, de estar sozinho em um lugar desconhecido aumentava, mas então, sua mão se aqueceu.
— Hã? — Aldren se surpreendeu.
Sua mão coberta pelos dedos de Liz. A mulher que havia deixado de ser uma simples serva da fortaleza, para assumir a responsabilidade de administrar a Vila, sorriu serena para ele.
— Aldren, pode confiar em nós — disse Liz, quase em um sussurro.
O rapaz mordeu os lábios. Respirou fundo e, mais uma vez, silenciou-se. Baixou a cabeça escondendo os olhos pesarosos.
Bertha soltou um resmungo e se recostou na cadeira:
— Ótimo. Então isso encerra a reunião. Recusamos acompanhar esse… seu delírio — finalizou a engenheira.
Hikki suspirou, assentindo com a cabeça, mesmo que não aprovasse a dureza das palavras de Bertha.
Liz manteve-se ao lado de Aldren, ainda firme em seu gesto de apoio. Mas ele… ele sentia a frustração crescer e a impotência lhe ganhar mais uma vez.
E então, repentinamente, a porta dupla da biblioteca escancarou-se de uma única vez.
O estrondo ecoou entre as fileiras de prateleiras e reverberou nas paredes de pedra. A luz das velas tremulou com a corrente de ar que invadiu o cômodo.
— Não tão rápido. — disse o homem elegante que adentrava à biblioteca.
A voz arrastada com charme e desenvoltura. Ele sorriu ao observar os rostos atônitos ao redor da mesa. Complementou erguendo o nariz:
— Por favor, me permitam participar dessa reunião.
Todos se surpreenderam, e Hikki expôs:
— Quem é você? — exigiu resposta, levantando a voz. — E como entrou aqui...?
— Eu me chamo Hui. Calma, criança. Eu não sou inimigo — o homem elegante manteve a imponência da voz e da postura. — Podem perguntar ao Aldren, eu sou um bom amigo.
— Aldren, você conhece esse homem? — perguntou Liz, com temor.
O recém-chegado avançou com passos alinhados em suas vestimentas refinadas que destoavam da atmosfera rústica e funcional da fortaleza Última. Seu sorriso afiado permanecia no rosto, como sempre, um passo à frente.
Aldren desviou o olhar, o rosto tenso, claramente desconfortável com a presença dele. Balbuciou:
— Eu... — começou a responder, mas Hui foi mais rápido e o interrompeu.
— Não precisa mais esconder, Aldren. — Sua voz carregava uma estranha leveza, o tipo de tom que provocava qualquer um sem esforço. Ele parou ao redor da mesa, deslizando a ponta dos dedos sobre a madeira polida. — Você já deixou todos aqui cientes das informações sobre o ritual de convocação do qual eu lhe falei?
Hikki cravou os olhos e estudou Hui com atenção. Ajeitando sua postura.
— Então foi você. — A voz dele saiu grave pela desconfiança. — Como soube de tudo isso?
Bertha bateu os dedos na mesa, impaciente.
— Isso não importa — começou ela. — Não vou confiar em nada do que esse homem falar. Invade a fortaleza e age como se estivesse no controle. É o tipo de gente que eu odeio.
Hui soltou uma risada baixa, se divertindo.
— Ah, Bertha, certo? Sinto muito pela intromissão, mas sou apenas um homem preocupado com o futuro da humanidade. Assim como o seu pai.
— O quê?! — Bertha levantou o rosto de forma avassaladora. Levou os olhos até Aldren, com alguma euforia: — Aldren, você falou disso para...
— Não. Eu juro que não, Bertha — O rapaz foi o mais sincero possível — Eu jamais falei disso para alguém...
Bertha se voltou ao estranho à mesa:
— Então, como você...
Hui sorriu, os olhos cintilaram com uma vitória no jogo que os outros nem sabiam que estavam jogando. Ele se inclinou levemente para frente, satisfeito.
— Como eu sei? — repetiu, cantarolando. — As respostas se apresentam como cartas marcadas. Cartas de um baralho repetido incessantemente por novos jogadores à mesa. Porém, o crupiê permanece.
Bertha cerrou os punhos, o maxilar travado. Ela odiou a resposta cheia de superioridade e deixou isso bem claro:
— De que merda você está falando? Isso não responde nada.
— ... — Hui ergueu uma sobrancelha mantendo o silêncio.
Hikki cruzou os braços e o encarou com frieza:
— Você está brincando com a nossa paciência? Diga logo, quem é exatamente você e o que quer?
Hui soltou um suspiro exagerado.
— Tudo bem, tudo bem. Se tanto desejam, eu posso me apresentar de forma mais clara.
Ajeitou o corpo para um cumprimento nobre e os olhos cheios de malicia.
— Meu nome é Hui. O último deus de Anima.
O ar na biblioteca ficou denso, enquanto o impacto das palavras de Hui preenchia a mente de cada um.
Bertha e Liz arregalaram levemente os olhos, a boca entreaberta em incredulidade. Hikki, que até então demonstrava confiança, sentiu os braços cruzados tensos.
Aldren foi o único que não reagiu com surpresa. Seu olhar apenas escureceu nas sombras de seu próprio rosto aflito.
***
— O que queria falar comigo, Hui?
A voz de Aldren cortou o silêncio sob o entardecer de Finn. Ele se mantinha imóvel no alto da sacada principal da fortaleza Última, onde o vento gelado soprava sobre suas roupas simples. O céu alaranjado tingia as pedras da fortaleza e, abaixo deles, a floresta dourada estendia-se até aos pés das montanhas distantes. Mais perto, uma pequena cidade ganhava forma, prosperando. As luzes se acendendo uma a uma, como estrelas em um céu breu.
— Ah, eu nunca estive aqui — disse Hui, elegante como de costume. Passou pela porta dupla adentrando à sacada. — É uma bela vista, não?
Ele avançou até o parapeito de pedra maciça e inclinou-se levemente, absorvendo a vista com um olhar minimamente impressionado.
Aldren não respondeu.
— Você deve estar orgulhoso — continuou Hui, os olhos sobrevoando as linhas do horizonte. — Bertha e Caio estão resgatando as tecnologias deste mundo e refinando-as com velocidade surpreendente. Hikki expande os campos e fortalece a mineração, garantindo que a cidade não apenas sobreviva, mas prospere. E Liz mantém o povo unido, por mais que tenha tido um recente contratempo.
Aldren fechou os punhos ao ouvir a última palavra, suspirou exasperado, impaciente. Deixou passar, mas apressou o homem:
— Pare de enrolação. O que veio fazer aqui?
Hui finalmente virou-se para encará-lo. O vento jogou seus cabelos para o lado quando ele apoiou os cotovelos sobre o parapeito, as costas contra a paisagem. Seu sorriso se desenhou presunçoso no rosto.
— Por que está sendo tão frio? Somos aliados... Não. Somos amigos.
— Eu já cumpri minha parte no acordo...
— Sim — Hui interrompeu, erguendo a mão direita em cumprimento. — É por isso que eu estou aqui. Não é óbvio? Parcerias bem sucedidas devem ser repetidas, não acha?
Aldren desviou o olhar, irritado.
— Parceria bem sucedida? Você deixou uma centena de pessoas em estado catatônico no mundo de Tera.
— Ah... Pare de ser dramático — Hui revirou os olhos, entediado. — Nem desse mundo eles são. Achou mesmo que o ritual seria realizado sem sacrifícios? Além disso, eles não morreram, só estão meio lunáticos.
— Você é um babaca.
— E você, um ingrato — retrucou Hui, ainda com um sorriso. — Eu lhe entreguei a Deusa Lux, exatamente como prometido. Ela está aqui, sob nossos pés, acorrentada. E veja só você, Aldren...
Hui inclinou-se ligeiramente para frente, seu olhar colocando o outro contra a parede, em precisão cirúrgica. Continuou dominando:
— Está reconstruindo esse lugar, baseando seu alicerce na pura magia de Lux. Sugando-a aos poucos, como um parasita. E eu sou o babaca?
Aldren rangeu os dentes, calado. Hui avançou:
— Já disse aos outros que sua fonte de magia está prestes a acabar? Vai esconder de Liz e do seu contratempo até quando? — perguntou Hui, sem esconder o sorriso malicioso.
Aldren o encarou com uma preocupação crescente. Tornando-se um temor:
— O que você...
— Athis. É o nome dele, não é? — Hui mantinha o ar manipulador. — Se for esconder o estado de Lux, do mesmo jeito que escondeu a existência de seu filho de mim, então você terá sérios problemas.
O silêncio de Aldren ganhou seus olhos. Aquilo era uma ameaça. Hui continuou:
— Achou mesmo que eu não descobriria? Ainda mais sendo uma criança com uma doença tão grave?
Aldren tentou assumir alguma postura, rebateu:
— Fale logo, Hui. O que você quer?
— Eu quero que mantenha Lux viva. Alimente-a, até que eu encontre um guardião para o dadivar e um substituto para Lux.
— O quê?
— Guardiões são uma raça em extinção. Os que ainda estão vivos, desapareceram ou se esconderam. Então, preciso que ganhe tempo. Agora que vocês avançaram na tecnologia de Finn, e podem viajar até Tera, quero que utilize as pessoas de lá como sacrifícios, mantendo Lux e sua magia viva.
Aldren não recuou.
— Você quer que eu suje minhas mãos...?
— Exatamente.
— Por que não usa aquele tal Bernard, ou a menina da ilha flutuante, que você mencionou da última vez, no dadivar?
Hui sorriu, um certo orgulho ou satisfação com a forma como as palavras de Aldren saíram.
— Acha mesmo que eu teria condições de enfrentar o cabeça quente do Bernard? Ou então a Dilin e sua fortaleza? Não me faça rir.
Aldren permaneceu em silêncio, esperando a definição de Hui. Era impossível não se ver como uma peça no tabuleiro de um jogo que aquele homem impunha.
Hui elegantemente deu um passo à frente:
— Alimente Lux com o que sobrou de Tera, com o seu povo.
Aldren cerrou os punhos. Sua respiração se tornou pesada.
— Você fala como se fosse fácil. — Ele balançou a cabeça negativamente. — Não dá para trazer o povo de Tera até aqui, para depois simplesmente começarem a sumir, sacrificados. É irreal que ninguém perceba algo tão explícito.
— Então deixem que saibam — retrucou Hui, direto.
Aldren franziu a testa. Desacreditando no que ouviu. Mesmo assim, reduziu o impacto ao pensar a respeito. Talvez a ideia amaciando em seus pensamentos.
— Como que eu vou convencê-los a sacrificar os outros? É óbvio que não daria certo. O povo daqui não é diferente do de Tera. Temos valores que você não entenderia.
Hui respirou fundo, desinteressado. Continuou sem desvios:
— Isso foi uma provocação? Tanto faz — Deu de ombros. — Disse que não há diferença entre eles? Então crie essa diferença.
— Hã?
— Gere ódio entre eles. Plante alguma discórdia após conviverem por algumas semanas. Divida-os, ou aprisione todos, eu sei lá.
— Não vão aceitar isso. Todos são livres aqui...
— Só faça o povo de Tera ter uma vida pior do que os de Finn. Isso fará que os de Finn não queiram cruzar a linha entre eles. Então qualquer fagulha incendiará uma divisão natural. Acha que eles vão ficar se perguntando sobre liberdade? Não enquanto tiverem o que temer.
Aldren silenciou-se, pensativo. Lembrando de algo que um dia já havia dito. Não contrariou a ideia. Hui continuou:
— Fortaleça sua cidade. Construa um exército. Torne-se um imperador e mantenha o controle de tudo aqui. Eu vou lhe apresentar alguém que vai te ajudar muito nisso, alguém que você já conhece e tem experiência em gerenciar isso. — O homem elegante ergueu o nariz levemente. — Mas o mais importante, lembre-se de ser convincente.
— Para que tudo isso? — A voz de Aldren soou grave, mas sem a mesma firmeza de antes.
Hui sorriu com apenas um dos cantos dos lábios.
— Para quando a guardiã de Finn retornar.
Aldren fixou o olhar sério.
— Garta? Mas você disse que ela...
— Foi engolida pela explosão de Tera, sim. — Hui se virou para o horizonte distante. — Mas seria estranho se apenas o tempo não tivesse fim, não acha?
Aldren expressou sua estranheza no tom confuso:
— O que isso significa?
Hui inclinou-se para ele novamente, afiando o olhar.
— Significa que você tem alguns anos para se preparar... até o retorno de alguns de seus amigos.
Aldren não piscou. Sentiu sua respiração lentamente ganhar intensidade.
— Como pode ter certeza disso?
Hui fechou os olhos, suspirou distante, e quando voltou a abri-los, pareceu superior.
— Porque eu sinto o guardião de Anima vivo. Mais cedo ou mais tarde, a magia da explosão de Tera cessará. E então... o retorno se fará. Pode imaginar o que eles vão querer, não é?
Aldren desviou os olhos para o chão, quase em desistência:
— Está bem, eu entendi.
Hui sorriu, mais uma vez satisfeito. Ergueu a mão e encostou a palma no peito esquerdo do rapaz. Se concentrou por um breve momento.
Aldren sentiu algo queimar a sua pele sob a mão do homem. Deu um passo apara trás e o encarou com suspeitas:
— O que é isso? O que você fez?
— Não se preocupe — respondeu Hui. Voltou ao parapeito e continuou calculista, com os lábios arcados em uma expressão convencida: — É um selo. Vai te permitir a usar a magia de Lux. Cuidado para não secar a sua fonte. E também não exagere, ou então, e esse mundo vai ter que se contentar com um imperador corrupto.
***
A grande biblioteca de Última continuava imponente e aconchegante. Mas agora as lanternas azuladas de Sathsai marcavam as sombras das estantes de livros e pergaminhos. O cheiro de papel antigo ainda pairava no ar, misturado ao atual leve odor mágico que ganhou a fortaleza.
No centro do lugar, a mesma mesa maciça de madeira escura mantinha-se, com relatórios, anotações e mapas espalhados sobre ela.
Aldren ocupava a cabeceira, o rosto severo parcialmente iluminado. Suas roupas elegantes e imponentes, enfatizando o seu posto de líder. Os olhos varriam os três subordinados diante dele. Edgar de um lado, Hikki e Caio do outro. A tensão era notável, cada um escolhendo as palavras com cautela ao relatar suas preocupações.
— Dito isso, imperador — finalizou Caio, ajeitando o colarinho de sua camisa. — O conversor de magia está quase pronto.
Aldren cruzou os braços, sua expressão permanecendo fria e inalterada.
— A essa altura, já era para estar funcionando. Apresse-se mais. — A voz dele veio como um ultimato.
Caio hesitou, cerrando os punhos sob a mesa.
— Estou fazendo o que posso, mas a Bertha não está mais aqui, e...
— Cale a boca — rebateu Aldren, simples, sem margem para discussão.
Caio engoliu em seco e silenciou no mesmo instante. Aldren voltou-se para Hikki, que pareceu querer se encolher na cadeira.
— Falando nisso, Hikki — continuou, a voz áspera. — Algum sinal da engenheira?
O rapaz mais novo desviou os olhos, recolhendo as mãos sobre a mesa.
— Ah... É... Ainda não, mas...
— Já faz um dia inteiro desde que ela fugiu. — O tom de Aldren era de pura desaprovação. — Mandei você encontrá-la, e até agora nada. Não acha que está sendo displicente?
Hikki mordeu os lábios, hesitou, mas então se encheu de coragem:
— Aldren...
No momento em que o nome foi proferido com tamanha informalidade, o olhar do imperador incendiou-se de fúria. Hikki sentiu o sangue gelar.
— Imperador... — corrigiu-se às pressas. — Não acha que está indo longe demais? A Bertha é uma de nós. E, por mais que estejamos todos revoltados com o que o povo de Tera fez com o Athis, ainda assim...
Aldren apenas endireitou o olhar. Hikki não conseguiu terminar seus dizeres.
Em um instante. Algo invisível agarrou sua garganta, apertando com força. O ar não chegava mais aos seus pulmões. O corpo de Hikki tremia, e as mãos foram ao próprio pescoço, buscando desesperadamente qualquer coisa que pudesse desfazer a pressão sufocante. Arregalou os olhos em pânico, enquanto Edgar e Caio apenas assistiam aflitos, imóveis.
Os segundos pareceram uma eternidade até que, sem aviso, o aperto se desfez. Hikki caiu para frente, respirando acelerado como se tivesse acabado de emergir de um mergulho em águas frias. Sua garganta ainda ardia.
Aldren sequer se preocupou em olhar para ele. Continuou extremamente frio, sem qualquer emoção:
— Espero que não pensem em perdoar o que fizeram com o meu amado filho.
Em seguida, apenas se voltou calmamente para Edgar:
— E você, Gerente?
Edgar endireitou-se às pressas, disfarçando a tensão na voz ao responder:
— Ah, claro, imperador. — Ele pigarreou antes de continuar. — O estado de Lux vem piorando. Não temos outra escolha, se não dobrarmos os sacrifícios.
— Dobrar? — Caio não conseguiu esconder o choque. Sussurrou: — De novo? Isso é loucura...
Aldren virou lentamente o rosto em sua direção, e isso foi o suficiente. Caio se calou, desviando o olhar para a mesa com os ombros rígidos.
— Faça o que for preciso, Edgar — finalizou Aldren, sem espaço para contestações.
Antes que pudessem continuar, um estrondo ecoou pela biblioteca. As portas duplas foram escancaradas com violência, e Liz entrou apressada, segurando uma folha de papel amassada. Seus olhos cheios de indignação, e atrás dela, dois guardas tentavam contê-la.
— O que você está fazendo, Aldren?! — exigiu resposta.
— Senhora, por favor... — Um dos guardas tentou intervir. — A senhora não pode...
— Deixem-na. — Aldren ergueu uma das mãos, a voz controlada.
Os guardas hesitaram por um instante antes de assentirem.
— Sim, meu imperador.
Sem mais interrupções, recuaram e fecharam a porta atrás de si.
Liz atravessou a biblioteca com os passos pesados em desgosto. Bateu a mão na superfície da mesa expondo o papel que carregava consigo.
— Já chega! — exclamou ela. — Bertha me deixou essa carta. Eu já sei de tudo.
Aldren inclinou levemente a cabeça, observando a friamente.
— Minha querida, o que...
— Não me chame assim! — Liz cortou, os olhos marejados de raiva. — Bertha descobriu tudo, antes de fugir. Você não está mandando o povo de Tera de volta ao seu mundo... Você está os matando. Você é doente!
Aldren respirou fundo, sua expressão inalterada. Então, lentamente, levantou-se da cadeira.
— Não se aproxime! — Liz recuou um passo, defensivamente.
Aldren ignorou o pedido dela.
— Calma, meu amor. — Sua voz agora era suave, perigosa. — Por favor, confie em mim, e me deixe explicar o mal entendido.
— Mal entendido?
Aldren sorriu de canto, inclinando a cabeça.
— Sim. Que tal eu mostrar?
Liz piscou algumas vezes, hesitante, os olhos fixos em Aldren, tentando discernir qualquer traço em seu rosto.
— Vai me mostrar o salão?
— Sim. O Hikki e o Caio também nunca foram ao alto da torre, após a criação do portal para Tera. Eles também acabaram de me dizer que queriam ver, pois suspeitavam de mim — mentiu com a simplicidade que invejava o deus de Anima.
Hikki se apressou em tentar se afastar daquela acusação, a voz ligeiramente trêmula:
— Não, meu senhor, eu jamais...
Antes que pudesse continuar, Aldren desviou-lhe um olhar seco. Os cantos dos olhos dele em advertência, foram o suficiente para fazer com que Hikki se silenciasse, desviando o olhar para o chão.
— Então? Que tal me acompanharem até o alto da torre? — perguntou o Imperador, o tom bem mais leve fabricado. Em seguida, se aproximou de Liz e disse mais baixo, íntimo: — Confie em mim, tá bom?
Liz não sabia se acreditava. Mas algo dentro dela gritava por respostas e, ao fim dessa visita à torre, não haveria mais espaço para dúvidas.
Ela balançou a cabeça levemente de forma positiva. Arrancou um sorriso forçado de Aldren.
Então foram todos.
Os quatro mantinham-se calados enquanto acompanhavam o Imperador pelo último lance de escadas em espiral, tensos. Apenas seus passos ecoando pelo ambiente que parecia cada vez mais sombrio e profundo.
Por fim, chegaram ao topo. Um curto corredor de pedras escuras se estendia à frente deles, culminando em um imponente conjunto de portas duplas. Aldren parou diante delas e, sem precisar de mais do que uma palavra, ordenou:
— Edgar.
O Gerente avançou, retirou uma chave prateada do bolso e a inseriu na fechadura. Um clique ecoou, seguido pelo ranger pesado das portas se abrindo.
O salão além dali era amplo, com um teto arqueado decorado com desenhos nas pedras que se destacavam pelas luzes das lanternas de Sathsai penduradas pelas paredes e colunas. O ar estava impregnado com um cheiro metálico e acre, e o som de murmúrios baixos enchia o espaço.
Liz, Hikki, e até o contido Caio, estranharam a movimentação no lugar.
Uma dúzia de homens encapuzados cercavam um pequeno altar de pedra coberto por manchas escuras secas. Sobre ele, a Deusa Lux, ajoelhada, tinha os olhos fechados e a cabeça inclinada para trás. Seus braços estavam estendidos, presos pelas correntes ao chão que a puxava em direções opostas. Seu rosto, antes belo, agora era sujo pelos sinais de exaustão e sofrimento.
Hikki engoliu em seco e expôs as perguntas que os outros também se faziam:
— Por que Lux parece estar sofrendo? E quem é toda essa gente?
Aldren sequer hesitou antes de responder:
— São alguns seguidores de Lux. — disse transparente.
Caio, mais duvidoso, franziu a testa ao observar os encapuzados mais de perto.
— O que eles estão fazendo aqui? — sua voz com uma suspeita crescente.
— Hui os trouxe para cá — Aldren, novamente franco.
— Então é assim que...
— Hui?! — interrompeu Liz. Esbravejou com os olhos furiosos sobre o Imperador: — Você falou com o Hui, de novo? Eu não vou aprovar isso, Aldren. Sério, você passou dos limites.
Aldren permaneceu inexpressivo.
— Faço isso pelo nosso filho e...
— Não — negou Liz. — Athis jamais iria querer algo assim. Ele era uma criança que...
— Está dizendo que aprova a morte do nosso filho por esses...
— Eu não disse isso — interrompeu ela. — A saúde de Athis era frágil e...
— Já basta! — Aldren esbravejou. — Você não sabe como é o povo de Tera! Eu sou de lá, e sei que só assim vão se comportar e entenderem o nosso novo mundo.
— Já chega, Aldren! Eu não sei o que aconteceu com você, ou o que Hui te fez para ficar assim. Mas vamos libertar o povo de Tera agora mesmo, e a decisão de ficar ou voltar para o seu mundo será deles. Me mostre o portal e vamos acabar com isso.
— Eu sabia que você não aprovaria os planos de Hui e os sacrifícios.
— Sacrifícios? — A voz dela saiu frágil, como se tivesse sido acertada por um certeiro golpe.
— Você é igual eles. Igual a Bertha, ou qualquer um de Tera.
Liz perdeu a fúria nos olhos, substituída por uma decepção. Um completo sentimento de desapontamento.
— Então, a Bertha estava certa... — sua garganta doeu ao falar. — Você mentiu… Como pôde mentir para mim?
Aldren não respondeu imediatamente. Apenas a olhou nos olhos. Indecifrável. Seus olhos vazios, sem qualquer resquício do homem que Liz conhecera.
Aquele que antes lhe segurava a mão quando ela estava aflita, que beijava sua testa quando se preocupava demais, que sorria para ela de um jeito que a fazia acreditar em um futuro belo.
Ela revisitou tudo em sua mente em um instante. Cada momento compartilhado, cada promessa feita. Quebrada. Se Aldren tinha escondido algo tão perverso assim, o que mais teria sido mentira?
— Agradeço por confiar em mim, Liz. Você sempre estará comigo.
Ela não sentiu o coração acelerar. Ela não perdeu o ar. Ela não tremeu suas pernas. Seus olhos se prenderam aos dele, buscando qualquer traço da verdade que queria desesperadamente encontrar. Mas tudo o que viu foi um rosto inabalável. Cruel.
— Se faça o sacrifício! — os homens encapuzados gritaram em conjunto. — Se faça o sacrifício!
Hikki estranhou. Sua atenção foi levada aos encapuzados.
— Do que eles estão falando, em? — ele se perguntou. Ao virar-se novamente para obter uma resposta, se surpreendeu.
Viu um vulto.
Reduziu.
Desapareceu.
Seus olhos se arregalaram.
Liz já não estava mais lá. No seu lugar, no chão de mármore, sangue.
— O... qu... — tentou Hikki.
O Imperador já caminhava em direção à porta, sua postura ereta, seus passos firmes, como se nada tivesse acontecido. Ao passar por Edgar, instruiu, com a mesma calma de sempre:
— Mantenha Lux alimentada. Não importa quantas vezes terá de dobrar os sacrifícios.
— Sim, senhor — Assentiu Edgar. Em seguida, Aldren deixou o salão para trás.
Hikki perdeu o chão. Uma ânsia subiu de seu estômago, e ele precisou apertar os lábios para não vomitar ali mesmo.
Ao seu lado, Caio permaneceu imóvel. Apenas seus olhos piscavam em direção aos restos de Liz escorrendo pelo chão, tentando processar o que haviam acabado de presenciar.
Tudo parou.
...
— Ele é pura corrupção. — sussurrou Colth
Colth estava lá, observando tudo, observando Aldren no passado e agora no presente.
Seu olhar queimava em decepção enquanto o salão envolto em sombras vivas obedecia ao Imperador. O passado sussurrava em conexão com as memórias deles. O efeito do encontro da magia de Anima e o sofrimento de Lux.
Aldren ergueu o rosto, sua expressão fria na penumbra. Colth se mantinha de pé com dificuldade. A batalha longa até ali começava a cobrar o seu preço. Ainda assim, seus olhos estavam firmes, com a fúria que lhe corroía.
— Então, era tudo verdade. — disse ele. A voz saiu mais pesada do que esperava. — Você matou a sua esposa. Usou a morte do seu próprio filho para dividir o povo de Tera, para declarar uma guerra. Sem contar a Celina. Todos aqueles que mais confiaram em você. Você se tornou um monstro, Aldren.
O oponente o encarou, e um silêncio se estabeleceu entre eles antes da resposta.
— Um monstro — repetiu o imperador, sem emoção.
— Você não tem mais desculpas. — Colth cerrou os punhos. — Você diz que tudo foi necessário, mas não há justificativa para isso. Você arruinou tudo. Se tornou aquilo que dizia combater.
Aldren permaneceu imóvel. Sua silhueta imponente pela magia que lhe alimentava. As sombras se remexiam inquietas, e então ele roubou o silêncio:
— Sacrifícios são necessários.
A resposta veio sem hesitação.
Colth sentiu o ar escapar de seus lábios.
— "Sacrifícios"?! — Não conteve o grito. Um passo à frente involuntário, enquanto tentava entender como Aldren conseguia dizer isso sem sequer piscar. Continuou com a incredulidade se transformando em raiva: — Você sacrificou a própria esposa, Aldren! Liz confiava em você! Ela acreditava que ainda existia algo de bom em você, até o fim!
— E agora ela faz parte de algo maior. Assim como você, quando terminarmos isso.
Ele ergueu uma das mãos e ordenou as sombras.
De imediato, as criaturas sem forma se agitaram. Como tentáculos, deslizaram pelo chão de mármore, retorcendo-se, multiplicando-se, crescendo e engolindo a luz.
Vieram rápidas em ofensiva a Colth, agora podendo vê-las. Ele mal teve tempo de desviar, saltou para trás com velocidade e escapou por pouco, mas os golpes das sombras continuavam. Não havia espaço, não havia escapatória. As sombras formavam espirais e se fechavam ao seu redor como um redemoinho.
Colth se concentrou em seu escudo de Mutha, mas ele não veio.
— Tsc.
A frustração de Colth foi imediata.
— Lashir — solicitou ele. Qualquer tipo de defesa seria fundamental nesse momento. Mas ela também não respondeu em sua mente.
Foi nesse momento que Colth finalmente percebeu.
O ar vibrava. A luz tremulava. O som abafava. O próprio espaço se curvava à presença do Imperador.
Aldren não estava mais preso às limitações de um mortal. Seu corpo se ergueu alguns centímetros acima do chão, levitando. A aura ao seu redor oscilava entre a luz e as trevas, entre Lux e Anima.
Ele era um deus naquele momento.
Aldren afirmou, se impondo friamente:
— Seu sacrifício foi aceito por mim, meu amigo.
Colth tentou recuar, sair daquele furacão de sombras, mas foi jogado para trás por uma força invisível. Seu corpo colidiu contra uma parede de sombras, e ele reclamou ao sentir a dor rasgando seus músculos.
Aldren nem precisou se mover.
Ele simplesmente era o poder.
— Ahhh — Colth era esmagado pelas sombras.
As sombras apertaram-se ao redor dele. Seu corpo foi comprimido, pressionado até que seus ossos rangeram sob a força esmagadora.
Mas então, parou.
Aldren hesitou.
Seus olhos se arregalaram levemente, e por um instante, um olhar confuso preencheu o espaço entre eles.
Aldren ergueu a mão, como se tentasse puxar as sombras de volta, mas... algo estava errado.
Sentiu a magia de Lux, recebida diretamente do campo de trabalho, diminuir.
A fonte de sua magia foi cortada. Como se seus sacrifícios não lhe alcançassem mais.
As sombras estremeceram, hesitantes. Os pés de Aldren tocaram o chão novamente enquanto Colth era liberto.
“O que aconteceu?” A voz familiar ecoou na cabeça de Colth.
— Lashir?
“Quem mais poderia ser? Escuta, você simplesmente abandonou o seu corpo por vários minutos. Tem sorte de eu tê-lo protegido.”
— Você me protegeu? Eu não entendo... — tentou Colth. Olhando ao redor, as paredes de sombras se dispersando.
“Parece que essas sombras visíveis eram energia pura dos sacrifícios que vinham do campo de trabalho. Como a magia de Lux é um conjunto de todas as outras magias, podemos dizer que a magia de Anima conectou você ao Aldren.”
— Mas qual o motivo do Aldren fazer isso?
“Não foi ele. Foi Lux quem os conectou. Afinal, ainda é magia dela, não? Vocês dois ficaram inconscientes. Eu não consegui me aproximar dele por conta das sombras, mas protegi o seu corpo quando elas tentaram te atacar indefeso.”
— Sério? — Colth impressionado. Não escondeu o esboçar de um sorriso. — Você é mesmo impressionante, Lashir.
“Huh. Cala a boca... Não acabou ainda. Vê se não apaga de novo.”
A voz dela pareceu desconcertada.
O salão se fez visível por inteiro novamente.
As lanternas de Sathsai presas as paredes frias de pedra, o cheiro de magia misturado à umidade, o calor cada vez mais notável.
Lux ainda estava lá, acorrentada, completamente inconsciente. Os encapuzados permaneciam imóveis, aguardando uma ordem silenciosa. E Garta e Goro ainda estavam presos, suas pernas fundidas ao chão pelas sombras vivas.
— Olha lá, Garta! É o Colth! — Goro exclamou, sem esconder a empolgação.
Os olhos de Garta brilharam ao ver o rapaz. Mais do que simples surpresa, havia um reconhecimento.
Goro pensou, confuso, e então uma dúvida o atingiu:
— Espera aí... — murmurou. — Você disse que Colth desapareceu por causa de uma sombra poderosa vinda dos sacrifícios do campo de trabalho... Isso significa que...
— Significa que Hui foi derrotado — Garta firmou as palavras como um veredito.
— Hahah — Goro sorriu, gargalhou com a esperança lhe iluminando. — Eu sabia que eles conseguiriam.
— Não comemore ainda — interrompeu Garta. Mirou os olhos bravios ao outro lado do salão.
Lá, Aldren encarava Colth. O ódio transbordava dele. Fervido por dentro, lhe corroendo.
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