Volume 2

Capítulo 121: Florescendo no Jardim da Efemeridade

— E foi assim que a Capital foi dizimada pela explosão... e a deusa Tera não resistiu — contou Celina, a voz carregada de um pesar que era impossível ignorar.

Dante desviou o olhar para o riacho próximo, o brilho tranquilo das águas contrastando com seus pensamentos em mente. Contudo, seu rosto, manteve-se neutro, até apático.

— A promessa que fiz para Tera, de esperar por ela, então... — começou ele, mas se interrompeu com um suspiro profundo que parecia carregar o peso de anos.

Ambos se sentaram à mesa de madeira envelhecida, sob a sombra acolhedora das árvores do jardim da bela casa que Dante tanto se orgulhava de proteger. A brisa suave trazia consigo o murmuro constante da cachoeira próxima com tranquilidade.

Uma bandeja de prata, entre eles sobre à mesa, estava carregada com fatias suculentas de melancia preparadas e cortadas por Dante com virtude.

Celina, com o olhar firme e aflito, retomou:

— E, assim como eu havia dito, agora estão tentando se utilizar da magia de Lux para unificarem o poder, em uma só mão no mundo de Finn, mas seria questão de tempo até essa dominação atingir os outros mundos que sobraram.

Dante pegou uma fatia da melancia e a mordeu sem pressa. Mastigou em silêncio antes de responder com um tom simples distante:

— Passou tanto tempo, mas não parece que a situação mudou muito.

Ele permaneceu calmo, e isso incomodou Celina. Depois de tudo o que ela havia contado, sobre a destruição de Tera e a guerra em Finn, Dante parecia alheio, como se aquela realidade não o tocasse mais. Como se já tivesse enterrado esse assunto há muito tempo.

Celina estranhou a leveza dele, mas não quis se aprofundar nisso, tinha problemas maiores agora.

— E é por isso que tenho que voltar. — Começou ela, com a voz mais determinada. — E já que o senhor me disse que posso trazer o Koza de volta, então ele...

— Calma lá, garota. — Dante a interrompeu, levantando mais uma fatia da melancia. — Seu tom era relaxado, beirando o indiferente. — Não é tão simples dominar a magia de Tera. São anos de treinamento. Se você se dedicar muito, talvez em alguns meses consiga trazer o Koza de volta. Além disso, antes de qualquer coisa, precisa despertar a sua consciência e encontrar a forma do seu familiar dentro da sua própria alma. Só assim vai conseguir trazer a salamandra falante para a realidade.

— Meses? — Celina franziu a testa com inquietação. — Eu não tenho esse tempo. Tenho que voltar agora. Tem gente que depende de mim e...

— Esquece. — Dante a cortou de maneira brusca, sem qualquer hesitação. — Pelo que você me contou, meu conselho é: aceite que seus amigos já estão mortos. Assim, vai ser mais rápido.

O ar entre eles ficou mais denso. O ruído da cachoeira ao fundo já não parecia tão sereno.

Celina não acreditou no que ouviu:

— O quê?

— Você entendeu. — Dante esticou a mão para pegar outra fatia de melancia, como se o assunto estivesse encerrado. — Agora coma um pouco. Está fresca e doce.

Celina não tocou na fruta. Em vez disso, inclinou o corpo para frente, os olhos perfurando Dante com seriedade.

— Então é por isso que está escondido aqui? — disse ela, impiedosa. — Se conformou, não foi?

Dante largou a melancia de vota na bandeja.

— Ah, garota... Não fale como se você soubesse o que...

— Não me venha com essa. — Ela o interrompeu, sem paciência. — O senhor desistiu, não foi? Estava sentado naquela pedra à beira da estrada esperando por Tera, mas nem você acreditava mais nisso.

Dante cerrou o punho sobre a mesa.

— Eu sou fiel à minha deusa e...

— Eu acabei de te contar que sua deusa morreu, e o senhor nem pestanejou. Você já sabia. — Celina afirmou inclinando a cabeça levemente, seus olhos lhe julgando. — Sabia, desde que ela deixou este lugar. Desde que você perdeu sua magia. Desde que perdeu seu braço. E ainda assim, ficou esperando...

Dante desviou o olhar, mas a guardiã não recuou. Ela avançou:

— O senhor não estava esperando por Tera. Estava esperando alguém vir até aqui e confirmar que sua deusa realmente se foi. Para que essa sua promessa de esperar morresse junto com ela. — A voz de Celina era firme. — E depois? O que planejava? Ficar escondido aqui pelo resto da vida?

O olhar de Dante se tornou perigoso.

— Cala a boca, garota. Você não sabe do que está falando...

— Ou planejava fugir sem rumo, senhor Dante?

— Cala a boca!

— Ou então... planejava acabar com a própria vida?

Dante se levantou e deu um murro contra a superfície da mesa fazendo a madeira ranger.

— Eu mandei você calar a boca! — Ele explodiu, sua voz reverberando pelo jardim, espantando os pássaros nas árvores próximas. Seus olhos, antes distantes, agora queimavam em fúria. — Você não sabe nada!

Celina não recuou. Nem piscou. Apenas o encarou, firme e inabalável.

— Me desculpe, senhor Dante. Mas eu não posso simplesmente me calar e esperar, enquanto as pessoas com quem eu me importo sofrem. Por isso eu preciso da sua ajuda, agora. Preciso da ajuda do guardião de Tera.

Dante arregalou os olhos, surpreso com a intensidade e escolha das palavras por parte da garota. Em seguida, ele baixou a cabeça lentamente.

— Eu não sou mais o guardião de Tera, esqueceu? — murmurou ele.

— Então é isso? Você cumpriu a sua promessa, e acabou? — perguntou Celina. Mesmo que, com alguma esperança de que ele pudesse ajudá-la, a garota se compadeceu com a reação dele.

— ... — Dante manteve a os olhos distantes dela.

Celina respirou fundo, reconsiderando.

— Eu entendo. Também não pedi para ser uma guardiã — disse com alguma desistência na voz. Finalizou com sinceridade e um gosto amargo nos lábios: — Que bom para você, tirar esse peso das costas.

O vento soprou mais forte, agitando as folhas das árvores, quase como se suplicasse atenção. O som da cachoeira preencheu o silêncio entre eles, um ruído constante e que sempre esteve ali, durante anos, inalterado.

Dante desviou os olhos, cerrando os punhos com força, queria poder destruir todo o passado e fugir do futuro.

Dante ainda podia ouvi-la rindo de felicidade entre aquelas árvores. Podia ver a luz do sol refletindo em cada fio castanho de seus cabelos. Podia lembrar do calor do olhar que o acalmava. E, ao mesmo tempo, podia sentir o peso esmagador da ausência, e a sombra que tomou aquele jardim quando ela partiu.

Ele esperou.

Esperou por tanto tempo que esqueceu de como o mundo podia ser fora dali. O mundo que Tera cuidou e deixou, não só para ele, mas para todos que amava, ainda existia.

Dia após dia, noite após noite, Dante permaneceu ali, fiel à sua promessa. No começo era esperança, mas logo se tornou um castigo que ele mesmo se prestou a receber, como se fosse um lembrete cruel de sua impotência como guardião.

Suportou cada instante, cada estação que passou. Suportou as noites em que se deitava com esperança e as manhãs em que acordava sem ela. Os dias intermináveis em que o tempo apenas passou sem trazer a ele um significado.

Mas agora, era o fim.

O fim da promessa. O fim da espera. O fim da punição.

E se Celina estivesse certa? Se, no fundo, ele sentisse um alívio cruel por finalmente ser libertado da promessa que o acorrentou por tantos anos?

Só de pensar nisso, o lanceiro sentia enjoo.

Dante respirou fundo, os dentes rangendo em ódio. Um ódio sem alvo, mas que veio com sua ponderação. Quando finalmente falou, sua resposta foi um sussurro:

— Você está errada.

Celina calou-se surpreendida.

— ...

Antes que ela pudesse sequer pensar em responder, Dante continuou:

— Mas isso não me faz mais certo — ele respirou fundo mais uma vez, seus músculos relaxando. Olhou para cima e sussurrou sereno em direção as folhas esmeraldas da árvore que o sombreava: — Se esse é o seu desejo, eu estarei ao seu lado.

Celina, ainda sem entender a mudança repentina de Dante, amenizou o seu tom:

— Obrigada... — Sua voz saiu hesitante, com um alívio confuso pela concordância do homem.

Mas então Dante voltou os olhos para ela, de uma forma séria e um pouco ríspida:

— Eu não estava falando com você, garota.

Celina se viu ainda mais surpresa, e confusa, mas antes que pudesse responder, Dante já se afastava. Seus passos pressionando a grama verde do jardim em direção à casa.

— Venha — ordenou ele, sem hesitação enquanto caminhava. — Vou te mostrar como trazer o familiar de volta.

A guardiã ficou parada por um instante, tentando processar o que acabara de acontecer. Não teve sucesso. Ela não entendia completamente o que se passava dentro de Dante, mas algo pareceu convencê-lo, mesmo que a contragosto.

Celina balançou a cabeça se desapegando da curiosidade a respeito da mudança de atitude dele e se forçando a não pensar sobre. Apressou os passos para segui-lo, focada apenas no objetivo maior, se contentando com isso.

Ela seguiu o caminho do velho e deixou o jardim para trás. Atravessou o corredor ao ar livre da entrada da casa e adentrou a porta de correr de um dos cômodos. Se impressionou com uma grande sala vazia.

O chão de madeira polida refletia a luz fraca das lanternas suspensas, e as paredes distantes com grandes janelas davam a sensação de imensidão. Era um espaço para prática e disciplina, sem dúvidas.

Enquanto Celina observava o lugar, e se impressionava com a limpeza e arrumação impecável, Dante se sentou ao chão com as pernas cruzadas e uma postura perfeita.

— Sente-se na minha frente, assim como estou — disse o lanceiro sério. Sua voz era direta, calma, mas inquestionável. Ele então fechou os olhos.

Celina hesitou. Não entendia o propósito daquilo, mas obedeceu. Espelhou a postura dele, sentada ao chão, e permaneceu ali, observando. Seu olhar pousou no rosto velho e marcado do homem à sua frente, os olhos dele fechados.

Apenas o barulho do vento invadindo a sala, e o ruído da cachoeira ao fundo, com alguns cantos esparsos dos pássaros, eram notados.

A guardiã quebrou essa serenidade com alguma impaciência:

— Já estou sentada. E agor...

— Silêncio — Dante, seco. — Se concentre.

— Certo.

Ela calou-se e esperou pela próxima orientação.

— O que você vê? — perguntou Dante.

— Eu vejo o senhor — respondeu ela, direta.

Dante estranhou e abriu apenas um dos olhos. Se surpreendeu ao notar os olhos azuis da garota fixados nele.

— O que está fazendo? — questionou o lanceiro, em bronca. — Feche os olhos e se concentre.

— Ah... o senhor não tinha falado nada sobre fechar os olhos — rebateu Celina, se sentindo injustiçada.

Dante suspirou pesadamente.

— Inacreditável — murmurou, balançando a cabeça negativamente, já com os olhos fechados novamente. — Concentre-se no som do mundo de Tera.

Celina finamente fechou os olhos, ainda um pouco irritada, e deixou seus ouvidos lhe guiarem o pensamento.

— Ouça — disse Dante, a voz dele veio mais serena, guiando. — O som da água correndo pelo riacho. O vento brincando entre as folhas. O fogo tremulando nas lanternas. A terra se movendo sob as raízes das árvores.

De início, Celina desconfiou que não funcionaria, afinal, ouvir o som da terra de baixo das raízes das árvores parecia ridículo, mas então ela sentiu. Não era exatamente como sons, mas ela podia ouvir, como se o mundo ao seu redor sussurrasse energia. E então, quando ouvir já parecia algo estranho demais, ela começou a observar. Observar a sua própria mente.

— O que você vê, garota? — perguntou Dante.

Celina franziu a testa. Sua respiração ficou mais lenta. As pálpebras se apertaram levemente.

— Eu vejo... livros. Uma prateleira repleta de livros.

— Onde?

— No meu quarto, ou melhor, na minha cela — Celina narrava.

— Você precisa buscar. Encontrar a magia de Tera em você — Dante orientava.

Ela pareceu se concentrar mais, disposta.

— As grades estão trancadas. Eu não consigo sair — resumiu Celina.

Dante abriu os olhos e a viu se esforçando com a face evidente em concentração.

— Eu disse que não seria fácil — comentou ele. — Demora meses até que você se acostume com a meditação e consiga lidar com o seu interior.  E então, despertar a sua consciência para, finalmente, encontrar a presença de Tera e...

— Pronto — disse ela, interrompendo-o, ainda com os olhos fechados. — A cela está aberta. O que o senhor dizia?

Dante arregalou os olhos.

— O quê? — se surpreendeu. Atordoado. — Como?

— Com a chave, não é óbvio? — A voz dela soava tranquila, sem preocupações. — Foi só lembrar de uma certa pessoa. Afinal, eu já estive aqui nesse lugar... quer dizer, na minha consciência.

— ... — O homem ficou sem palavras, observando a guardiã que mantinha os olhos fechados e a concentração fácil.

— Sabe, senhor Dante — começou Celina. Em um tom casual, enquanto mergulhava em sua própria mente. — Acho que nós somos até parecidos. Ficamos esperando alguém especial para nos mover e nos dar um objetivo. E isso não é errado. Mas eu decidi que quero mudar, não quero mais ser essa pessoa. Não quero ser quem simplesmente reage, eu mesma quero agir.

— Hã?

— Eu não quero só esperar esse alguém especial. Mas também não quero ser esperada por ele. Não — Celina balançou a cabeça negativamente. Ela tinha um sorriso sereno no rosto e os olhos delicadamente fechados. — Quero ser uma pessoa que vai andar ao lado dele. Junto. Quero ajudá-lo, assim como ele já me ajudou.

Dante desviou os olhos, pensativo sobre o que a garota dizia de forma tão natural. Inesperadamente, ele entendeu exatamente do que ela falava, mas não podia dizer o mesmo. Já não podia andar ao lado do seu alguém especial.

Celina balançou a cabeça levemente e finalizou ainda concentrada:

— Desculpa, eu só fiquei nostálgica andando por essas minhas lembranças.

— Espera... — Dante, ainda mais impressionado — Você está andando pelas suas lembranças?

— Ah sim, é um lugar bem mais calmo, desde a última vez e... — Celina viu algo já conhecido em sua mente. — Olha só. O lobo da minha consciência.

Dante se inclinou para trás sem esconder o espanto:

— Lobo?!

— Sim. Um lobo branco bem grande, quase do tamanho de uma árvore. Ele me ajudou uma vez quando eu estava em perigo com o Colth na minha própria mente.

O velho guerreiro arregalou os olhos por um instante, e ficou boquiaberto, quase em choque, sussurrou:

— Eu não acredito... Quem é essa garota? Sua consciência já despertou. Então, será que o lobo é...

— O quê? — perguntou Celina, mantendo os olhos fechados.

— Não é nada — Dante se animou. Ele se ajoelhou e continuou a instruir, mais motivado: — Continue a se concentrar, garota. Aponte a palma da mão para frente e repita comigo...

                                               ***

Nada existia ali. Um deserto de pedras estendia-se em todas as direções, coberto por uma fina camada de água sem temperatura, sem som, sem vida. O céu, incolor e imóvel, misturava-se ao horizonte infinito. Para todos os lados, apenas o vazio.

Mas então, repentinamente, Koza ouviu alguém lhe chamando. Uma voz feminina, abafada pela distância, que lhe trouxe o calor de uma doce lembrança.

Antes que pudesse entender o que acontecia, uma luz forte invadiu sua visão, forçando-o a fechar os olhos.

— Pela terra que nutre, pela água que flui, pela chama que arde, pelo vento que guia... — A voz agora soava mais clara, mas ainda parecia distante, como se seus ouvidos estivessem submersos. — Com minha vontade, ofereço um chamado. Com minha alma, ofereço um vínculo.

E então ele ouviu ainda mais claro aquela voz feminina determinada:

— Pela terra que nutre, pela água que flui, pela chama que arde, pelo vento que guia... — Uma pausa se fez. — Será que deu certo?

— Que tipo de pergunta é essa? — disse uma outra voz, dessa vez a de um homem, rouca e madura. — Não está vendo a criatura na sua frente? É claro que deu certo.

Koza recuperava pouco a pouco a visão e a audição. Conseguiu perceber as silhuetas daqueles dois que falavam. Um homem grande e uma mulher de cabelos longos ao seu lado.

— Hum... eu não sei não — a mulher murmurou, hesitante. — Ele parece perdido... desorientado. E é bem menor do que eu imaginava.

— Essa é a forma comum dele, para economizar energia. E não se preocupe, ele sempre foi desorientado assim, um lesado — respondeu o homem sério sem nuances.

Koza reconheceu àquela voz no mesmo instante, e a silhueta grande batia exatamente com a da pessoa de quem suspeitava. A familiaridade despertou nele uma irritação repentina:

— Quem você está chamando de lesado, seu troglodita arrogante?

— Troglodita?! Perdeu o respeito, foi? — O homem mais velho se voltou à mulher que lhe acompanhava e perguntou em sussurro, tentando esconder a voz de Koza: — Garota, o que é um troglodita?

Ela piscou, surpresa com a pergunta, mas antes que pudesse responder, Koza rosnou, a visão lentamente se ajustando.

— Eu estou te ouvindo, Dante — reclamou a criatura. — Você é mesmo um troglodita.

Em resposta, o homem cerrou os dentes levemente ranzinza.

— Como pode falar isso de quem acabou de te trazer de volta? — rebateu Dante. — Eu deveria ter lhe deixado no limbo até se tornar uma alma corrupta.

Koza não perdeu tempo em respondê-lo:

— Não esqueça que minha alma é uma centelha da magia de Tera. A corrupção jamais me atingiria e... Espera aí! Você está tentando tomar os créditos da deusa Tera? Nem foi você quem me trouxe de volta! Só a deusa Tera pode me convocar... — Koza se voltou para a mulher, seus olhos carregando orgulho sem conseguir se focar direito nela. — Minha deusa, sabia que você voltaria! Quanto tempo se passou? Espero que esse cabeça dura do Dante não tenha lhe incomodado com a cara de idiota dele.

A mulher hesitou, quase se esquivando para trás enquanto percebia a confusão do familiar.

— Koza... acho que você está enganado — disse ela, suavemente. — Eu não sou a deusa Tera.

A criatura piscou algumas vezes estranhando o tom e a resposta. Finalmente recuperou a visão por completa e encheu seus olhos com a figura da garota ajoelhada à sua frente.

— Senhorita Celina? Você... Eu não estou entendendo... — balbuciou Koza. Olhou para Dante, procurando respostas: — Onde está a mestra Tera? E por que a minha orelha coça tanto?

O velho guerreiro apenas balançou a cabeça negativamente.

— Espera aí... — murmurou a criatura, a mente começando a conectar as peças. — Se a deusa Tera não voltou... então como...

Dante soltou um suspiro apressado e impaciente:

— Você é mesmo lesado. Quem é o troglodita agora? — perguntou ele, sarcasticamente áspero. — Foi a própria Celina quem te trouxe de volta. Não percebeu?

— M-Mas... mas só uma...

— Pois é. Eu também estou surpreso — Dante o interrompeu.

A criatura ficou impressionada. Levou sua pata traseira até a orelha e então começou a se coçar de forma involuntária.

— O que é isso? Por que eu...— Koza se calou. Seus olhos brilharam com estranheza ao observar as próprias patas. — Minhas patas!!! Minhas patas são peludas.

Moveu-se desajeitadamente, ainda não acostumado ao próprio corpo.

Dante observou analisando-o:

— Um cachorro vira lata. Essa é mesmo a forma ideal para você — comentou o guerreiro.

Koza lançou um olhar ofendido, mas antes que pudesse rebater, Celina se levantou abruptamente.

— Não fale assim dele. — A voz dela era séria. Seus olhos se fixando nos de Dante com uma firmeza protetora. As sobrancelhas arqueadas e as bochechas levemente infladas mostravam sua desaprovação. — Koza é um lobo. E é o meu familiar. O familiar de Tera.

A jovem se virou para Koza e sorriu, estendendo a mão para acariciar seu focinho. O lobo hesitou por um instante, mas logo fechou os olhos e se entregou ao carinho, seu corpo relaxando sob o toque.

Dante, mais uma vez, ficou boquiaberto:

— Caramba... — sussurrou ele admirado. — Vocês duas são tão parecidas.

Celina o encarou em resposta, confusa:

— Disse alguma coisa, senhor Dante?

Ele rapidamente desviou o olhar, tossindo em disfarce.

— Eu? Não... Não disse nada.

Celina então ergueu uma sobrancelha, mas decidiu ignorar a estranha reação do guerreiro. Colocou as mãos na cintura e, com um tom decidido, anunciou:

— Certo. Agora só precisamos dar um jeito de voltar para o mundo de Finn.

— Arff!

— Isso foi um latido? — Dante se virou confuso em direção a Koza.

— Desculpe, saiu sem querer — respondeu o lobo, um pouco constrangido. — Mas eu queria dizer que já tenho a solução para voltar à Finn.

Celina mostrou os olhos curiosos.

— Como assim? — perguntou ela.

Koza explicou:

— Senhorita, você se lembra de como chegou ao mundo de Finn da última vez?

Ela inclinou a cabeça, pensativa.

— O Aldren usou uma pulseira... tinha uma joia ou um cristal nela. Abriu um portal e... Espera, você sabe onde essa pulseira está?!

Koza moveu as orelhas e abanou de leve o rabo.

— Digamos que, durante a minha infiltração pela fortaleza Última, eu tenha achado uma joia peculiar. Infelizmente, eu não podia usá-la. Eu era apenas um pequeno dragão sem asas... e agora eu sou um lobo... que coisa estranha. — Ele suspirou, e logo balançou a cabeça, afastando o pensamento. — Mas isso não é relevante. O importante é que... Argh...

Koza interrompeu a própria fala, seu corpo se contraindo em um espasmo.

— Koza? Você está bem? — Celina perguntou, preocupada.

O lobo golfou.

Dante recuou imediatamente:

— Não, espera aí. Não me diga que você vai...

Koza vomitou.

— Ah, que coisa nojenta — reclamou Dante.

Um brilho intenso surgiu em meio ao líquido viscoso que se derramava e manchava o piso de madeira impecável. Dante torceu o rosto em desgosto. Mas Celina percebeu a tal joia de qual havia falado, no chão, em meio ao fluído.

— Desculpe, eu não sabia como explicar melhor — disse o lobo desconfortável.

— Koza, você é incrível — Celina se animou, impressionada.

— Espera aí, lobinho — Dante ficou pensativo. — Você engoliu essa coisa, morreu, foi para o limbo, voltou, e esse negócio ficou no seu... Ah, esquece! É melhor eu nem saber. Já vou avisando que eu não vou usar isso aí para chegar ao mundo de Finn.

Celina trocou olhares com Koza e sorriu genuinamente. Em seguida, percebeu algo.

— Ah... Senhor Dante, então pretende ir ao mundo de Finn? — perguntou a guardiã esperançosa. Aguardando ansiosamente a resposta dele.

— Garota... — Ele a observou com seriedade. — Você ter vindo até a minha casa, me fez lembrar de como eu sempre achei as decisões da deusa Tera horríveis. Ela ter te escolhido como guardiã, é a prova disso.

Celina baixou a cabeça dando-lhe toda a razão, sem resistência. Koza chegou até a rosnar, ultrajado no lugar dela, mas Dante continuou:

— Só que, assim como eu havia me esquecido desse sentimento, eu também havia me esquecido de que no final ela sempre estava certa.

Celina perdeu o ar por um instante, levantou a cabeça com os olhos se enchendo em lágrimas.

Dante moveu os lábios desconfortável:

— Mesmo depois de tanto tempo, ela ainda consegue me surpreender. E como eu senti falta disso... É como se... — a voz dele vacilou — É como se eu ainda pudesse escutá-la dizer: “Viu? Eu tinha razão.”

Os olhos de Dante ganharam contornos de lágrimas, e ele escondeu o rosto, ficando de costas para os outros dois. Continuou:

— Obrigado, garota... por ser a guardiã de Tera. Obrigado por ser minha sucessora — Dante respirou fundo e endireitou a postura, voltando ao seu tom habitual. — Então, sim. Eu vou para o mundo de Finn com vocês. Só me deem um minuto para me preparar.

Com passos firmes, o lanceiro não esperou pela resposta, atravessou a sala e passou pela porta de correr ao fundo, deixando o local.

Koza o acompanhou com o olhar e, assim que Dante saiu, balançou a cabeça, incrédulo.

— Senhorita, não sei o que você fez, mas eu nunca vi essa montanha de pedra tão emotiva assim.

Celina baixou os olhos, um pequeno sorriso surgindo em seu rosto. Enxugou os olhos em felicidade.

— Eu... não sei — murmurou, modestamente. — Mas ele parece uma pessoa legal. Eu entendo como é difícil ser escolhido e se tornar um guardião sem você querer.

Koza balançou a cabeça lentamente, os olhos assistindo as lembranças.

— Ah. O Dante não foi escolhido. Ele foi quem pediu para ser o guardião de Tera.

— Pediu? — Celina impressionou-se. Curiosa. — E então Tera atendeu ao pedido?

— Não foi tão simples. Dante não pediu diretamente para Tera o posto de guardião — respondeu Koza.

— Hã?

— Deixe-me explicar — começou a criatura. — Não era fácil para alguém como a deusa Tera, simplesmente sacrificar seus guardiões. Dadivar aqueles com quem ela tanto se importava, para alimentar a deusa Lux. Então, certa vez, Tera tentou burlar o ritual do dadivar. Ela simplesmente não nomeou um guardião.

— Entendi. Sem guardião, não há o ritual do dadivar. — Celina pensou alto.

— Foi o que ela achou também. Mas não seria tão simples enganar Lux. — Koza respirou fundo, pesaroso. — No dia seguinte ao ritual que não aconteceu, Tera adoeceu severamente. Ela mal conseguia falar, e levantar da cama lhe causa uma dor insuportável. A mais vívida, e bela, das deusas se tornou praticamente um vegetal.

— Que maldade... — sussurrou Celina, sentida.

— Dante ficou responsável por cuidar da deusa e sua casa.  Por mais bruto que ele pareça, Dante era quem limpava, cozinhava, alimentava Tera e cuidava dela. — Koza suspirou uma nostalgia triste. — Mas ele não aguentava mais ver a sua deusa chorar de dor todos os dias. Algum tempo depois, Dante foi até Lux e pediu para se tornar o guardião de Tera.

— Então foi Lux quem aceitou o guardião no lugar de Tera — sussurrou Celina.

— Sim — respondeu o lobo. — Lux riu antes de aceitar o pedido, e disse que ele seria um ótimo dadivar da próxima vez que se encontrassem. No mesmo dia, Tera recuperou a sua saúde, mas não ficou feliz. Ela sabia que era questão de tempo até perder o homem que se propôs a isso.

— Agora eu entendo... A promessa de Dante veio de muito antes — Celina baixou a cabeça, enfim toda aquela situação fazia sentido. Voltou a levantar o rosto e tentou mudar o tom da conversa, para uma mais leve. — Vocês dois parecem se dar bem.

— Eu e ele? — perguntou Koza, minimamente desconcertado.

— Sim. Parecem se conhecer há muito tempo.

— Bom... já lutamos algumas boas batalhas juntos.

Celina assentiu. Então respirou fundo, reunindo coragem para finalmente dizer o que pesava em seus ombros:

— Koza, eu... eu preciso me desculpar por tudo o que aconteceu na fortaleza de Última.

O lobo ergueu a cabeça, surpreso, enquanto ela abaixou o olhar, a humildade evidente em sua postura.

— Senhorita... — Koza tentou intervir. — Senhorita, por favor, não... Você foi manipulada pelo Aldren, e talvez pela magia de Hui...

— Mesmo assim. Eu preciso pedir desculpas. Eu fui uma completa idiota. Deixei que o Aldren me convencesse de coisas absurdas e falei coisas a você que me arrependo completamente, Koza.

O lobo hesitou, seu olhar suavizando.

— Senhorita, por favor. Não há o que perdoar. A senhorita não fez por mal, e...

— Eu achei que nunca o veria de novo, e isso me fez muito triste. Então... me perdoa, Koza — Celina ajoelhou-se diante dele, fechando os punhos sobre as coxas, os olhos marejados de arrependimento. — Me perdoa, Koza. Continue ao meu lado, por favor.

Koza suspirou, comovido.

— Eu nunca nem cogitei não estar ao seu lado, mestra. Mas se isso vai te fazer melhor. Então, é claro que eu te perdoo.

— Obrigada... — finalizou Celina, com a garganta pressionada pelos sentimentos. — De verdade, obrigada.

Koza respirou fundo e sacudiu o corpo canino.

— Agora, levanta a cabeça e fica de pé... — O lobo avançou seus passos e lambeu a bochecha de sua mestra para lhe obrigar a levantar.

— Hihihi — Celina riu com as cocegas e sorriu para o familiar. — Seu bobo.

E então a voz de um guerreiro adentrou à sala e os interrompeu:

— Pronto — anunciou Dante. — Vamos mostrar qual é a verdadeira força de Tera.

Ele vestia um traje de combate imponente, feita de placas metálicas leves, unidas por tiras de couro reforçado. O metal escuro que ficava visível, estava polido e marcado pelo uso, refletindo a luz das lanternas no teto. Sobre a armadura, uma túnica longa de tecido grosso e resistente era tingido de um verde profundo.

Na parte inferior, as calças de tecido reforçado eram presas por diversas faixas ajustáveis, permitindo seus movimentos apesar do peso da armadura. Botas de couro grosso com solas cravejadas de metal completavam sua vestimenta, mas o que mais chamava a atenção era a sua lança carregada pela sua única mão.

A arma elegante tinha o cabo feito de madeira envernizada, com desenhos entalhados delicadamente folheados a ouro e pequenas esmeraldas incrustadas ao longo da empunhadura que brilhavam discretamente. A lâmina única da lança estava perfeitamente afiada, impecável após anos de preparação para aquele momento.

Celina permaneceu imóvel por um instante, os olhos cintilando de fascinação diante de Dante.

— Sabe, garota — ele começou, a voz respeitosa —, você representa Tera. Deveria trocar esses trapos que está vestindo por algo mais ao gosto dela, não acha?

— Arff! — Koza latiu, validando a ideia enquanto lançava um olhar curioso para Celina.

Ela ergueu a cabeça, sentindo uma determinação que iluminou o rosto. Um sorriso confiante surgiu em seus lábios, enquanto acenava positivamente com a cabeça.

                                               ***

A embarcação flutuante cortava os céus noturno como uma nuvem silenciosa, os motores zumbindo baixo sob o rugido distante da batalha no solo. Hikki apoiou-se no parapeito, o vento bagunçando seus cabelos enquanto ele encarava o campo de trabalho dezenas de metros abaixo. Seus olhos se estreitaram ao ver os aliados em desvantagem.

— Temos que ajudá-los — disse ele, firme.

— Ah, claro — respondeu Caio, sem desviar o olhar das alavancas de controle. O tom sarcástico em cada palavra. — Porque nós dois, sozinhos, podemos fazer uma baita diferença.

Ele puxou uma das alavancas, ajustando a trajetória da aeronave. E continuou a falar:

— O melhor que podemos fazer agora é esperar e...

Uma luz intensa explodiu no fundo do convés, interrompendo seus dizeres. Um brilho branco azulado pulsando em ondas e expandindo-se em um círculo.

Hikki se afastou do parapeito, e cravou os olhos na luz.

— Isso é o portal da joia artificial de Finn... — murmurou, sentindo um nó na garganta. — A joia que o imperador usa.

— Merda — Caio expôs sua preocupação. — Se ele está usando o portal pré-determinado da embarcação, significa que...

— Prepare-se para lutar — Hikki se posicionou ao lado de Caio. Ambos com os olhos fixos no portal que se formava.

Então, vozes surgiram do outro lado.

— Então é assim que isso funciona? — perguntou uma voz feminina, curiosa.

— Achei que nos levaria para onde quiséssemos... — outra voz grave resmungou.

— Acho que misturar tecnologia com magia tem suas limitações — comentou um terceiro, impaciente.

— Garota, pode guardar essa coisa? Esse negócio tá fedendo.

— Tem razão.

A luz encolheu de repente, e o portal desapareceu. Três figuras agora estavam sobre o convés.

Hikki reconheceu uma delas imediatamente:

— Celina? — perguntou ele, diminuindo a guarda.

— Olha só se não é o traidor — Koza rosnou, os olhos julgadores fixos em Hikki.

O rapaz respondeu franzindo a testa confuso.

— Por que esse cachorro tá falando como se me conhecesse?

— Esse é o Koza, ele é um lobo agora — disse Celina, apontando para a criatura. Depois, gesticulou para o outro guerreiro ao lado. — E esse é o Dante, o Lanceiro de Tera.

— Lanceiro dos Céus, e esposo de Tera — corrigiu Dante, erguendo o queixo com orgulho.

— Isso não é importante agora, troglodita — cortou Koza, irritado.

Hikki fechou os olhos com força e balançou a cabeça, como se tentasse impedir uma enxaqueca.

— O que está acontecendo? — perguntou ele, completamente perdido na situação. — Eu não entendi nada. Por qual motivo vocês vieram pelo portal do imperador? Por que o Koza virou um cachorro...?

— Lobo — corrigiu Celina.

— E onde estão os outros? — concluiu Hikki.

Antes que alguém pudesse responder, Caio levantou a mão.

— Posso adicionar mais uma pergunta? — ele se intrometeu, chamando a atenção, e esperando pelo silêncio permissivo de todos para então questionar: — Por que o grandão só tem um braço?

Os três se entreolharam de forma impaciente. Celina cruzou os braços. Koza revirou os olhos. Dante apenas bufou.

— O que foi? — Caio tentava se justificar — É uma dúvida sincera e...

— Aaaaahhh! — Um grito distante interrompeu tudo. Vindo de baixo, em desespero.

— O que foi isso? — perguntou Celina, preocupada. Caminhou apressadamente até o parapeito da máquina voadora, e observou o chão distante.

Hikki acompanhou ela e tentou elucidar:

— Estamos sobrevoando o campo de trabalho — explicou ele. — Parece que o guardião de Nox e seus homens estão lutando contra Hui, mas não está sendo fácil...

— Temos que fazer alguma coisa — disse Celina, interrompendo-o. — Koza e Dante, vamos...

Repentinamente, a guardiã também foi interrompida. Alguma coisa balançou a máquina voadora, como se algo pesado tivesse surgido sobre o convés. Celina se segurou no parapeito e olhou rapidamente para a origem daquilo.

— Não precisa dizer mais nada, garota — declarou Dante, no alto de sua montaria.

Ele estava sobre as costas de Koza, que agora parecia muito maior e perigoso. Celina arregalou os olhos, notando a semelhança do familiar com o lobo branco da sua consciência. Assentiu e, determinada, acenou positivamente com a cabeça:

— Vamos lá — finalizou ela.



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