Volume 2

Capítulo 120: Marionetes Não Podem Controlá-lo

Aldren avançou rápido, aproveitando a curta brecha, seu corpo movido pela força das trevas que pulsavam sobre seus músculos. Em um único movimento brutal, ele fechou o punho e o lançou adiante com força descomunal.

Colth, ainda recuperando o fôlego após sua concentração intensa sobre o escudo de Agnes, não teve tempo de reagir. O golpe atingiu em cheio a maçã de seu rosto, um impacto seco e esmagador que o arrancou do chão e o arremessou.

— Colth! — gritou Garta, ao fundo, sem poder se mover.

Devido a força sobre-humana do soco do imperador, o guardião de Anima foi lançado ao chão com violência, seu corpo girando várias vezes antes de colidir com o piso de mármore frio.

Aldren o encarou de cima, o nariz erguido.

— Você vai continuar fraco? — a voz do imperador ecoou fria e absoluta. — Vamos, me mostre o seu sacrifício!

Estirado ao chão, próximo à parede com uma das luminárias de Sathsai de luzes azuladas sobre sua cabeça, Colth sentiu o gosto metálico do sangue preencher sua boca, enquanto a dor latejava em seu crânio.

— Argh — reclamou ele. Tentou se erguer, mas Aldren já caminhava para perto, sua sombra crescendo em direção ao teto do salão.

— Levante-se! — exigiu Aldren em um rugido.

Colth pareceu congelar, os joelhos pressionando o chão e o rosto escondido do inimigo recuperando o fôlego. O imperador mostrou impaciência ao não ter a sua demanda atendida, sentenciou:

— Você é uma vergonha.

O guardião de Anima tentava controlar a dor do último golpe recebido e manter a calma ao mesmo tempo. Seus olhos refletiam a chama azul tremulante da luminária presa à parede, enquanto suas costas ficavam completamente expostas ao ataque do imperador.

Com o corpo um tanto encolhido ao chão, sem resposta imediata, Colth parecia beirar à desistência, o que não surpreendeu Aldren, afinal, o guardião de Anima não conseguia ver as trevas.

Com isso em vantagem, Aldren estabeleceu um novo ataque, talvez o último. Gritou ao mesmo tempo que sua sombra avançou:

— Uma vergonha!

As trevas de Aldren desceram de uma só vez, brutais, mortais, em direção ao guardião abatido.

— Cuidado, Colth! — gritou Garta, o tom coberto de desespero, sendo a única que conseguia ver as trevas de Aldren.

Colth imediatamente empurrou a sola do sapato contra o mármore e saltou para o lado. As sombras acertaram o chão com uma violência desproporcional, abrindo um buraco no piso e levantando poeira até o teto.

Aldren rosnou, enquanto Colth se levantava e corria paralelo à parede, tomando distância do perigo. O imperador se virou acompanhando a corrida dele com os olhos e com as sombras. Deixou evidente o seu descontentamento:

— Vocês são uma piada... — sussurrou ele.

Colth corria o mais rápido que podia, seus passos ecoando determinação pelo salão, misturando-se ao zunido das sombras que se agitavam atrás dele e destruíam o chão por onde passava, tentando alcançá-lo. Sabia que não poderia vacilar ou permitir qualquer oportunidade. Aldren não lhe daria trégua enquanto estivesse próximo, e aquela energia invisível perseguidora também não.

— Não corra de mim, Colth — a voz do imperador soou neutra, mas a provocação ameaçadora era clara. — Isso não é coisa digna de um sacrifício.

Colth se afastou o suficiente para perceber que a destruição causada pela energia em perseguição parou. Então se colocou atrás de uma das colunas à parede do salão, pressionando as costas contra a pedra gelada e levando as mãos para o peito. Sentiu sua própria respiração ofegante levando ar aos pulmões, enquanto o coração mantinha-se acelerado em resposta ao perigo. Seus olhos foram atraídos novamente por uma das luminárias azulada, a luz tremulante refletida nas paredes de mármore rachado aguçava os seus pensamentos.

Inspirou fundo, sussurrando algo para si mesmo. Tentava, de algum modo, traçar uma estratégia eficaz. Observou Garta e Goro, próximos ao centro do salão, mas notavelmente impossibilitados de agir por conta de algo invisível que os impedia de se mover.

— Você precisa fugir daqui! Fuja antes que ele ataque de novo! — gritou Garta, em direção a ele, urgente.

Colth segurou a sua adaga de Sathsai e fechou os olhos por um breve instante. Podia sentir a energia pulsante da magia de Rubrum em suas veias, quente, exigindo ser usada.

— Não, claro que não vamos fugir — sussurrou ele, para si mesmo.

Aldren se aproximava, caminhando com os olhos frios e convencidos.

— Eu me cansei disso— disse o imperador. Ele ergueu uma das mãos, e a sombra ao seu redor começou a se retorcer, como uma serpente faminta em busca de uma presa.

— Colth! Cuidado! — Garta avisou.

Sem precisar pensar, o guardião de Anima girou o corpo, desviando-se para o lado. No instante seguinte, a parede, onde suas costas estavam apoiadas até então, foi acertada por um violento golpe que abriu um buraco na pedra.

Colth deslizou pelo piso liso, dando o máximo de si em um movimento brusco e se esquivando perfeitamente.

Parou e endireitou a postura, finalmente encarando Aldren de frente. O brilho azul da luminária refletiu no fio da sua adaga em mãos.

— Ah... A lâmina de Sathsai. A lâmina que rasga a magia. Acha que isso vai me deter? — perguntou Aldren, apontando para a adaga com os olhos, parecia zombar, mas a seriedade no tom e no rosto diziam o contrário. — Precisaria me atingir com ela. Não vai acontecer.

O imperador moveu de leve os ombros, como se relaxasse os músculos, e a sombra se ergueu as suas costas.

Colth rangeu os dentes em tensão, enxugou o sangue dos lábios com as costas da mão e se preparou.

— Está pronta? — sussurrou ele, inaudível para qualquer um no salão, com um brilho firme nos olhos.

Aldren o observou com curiosidade em resposta àquela estranha expressão no rosto do oponente.

Colth avançou em corrida na direção do imperador, preparando a adaga de Sathsai, a girando habilmente até empunhá-la firmemente. Seus olhos leram rapidamente o posicionamento de Aldren e o tremular da chama azul na parede atrás dele, para então, ter os seus próximos movimentos em mente.

— Colth, não!!! — Garta suplicou ao fundo, preocupada ao notar a sombra de Aldren se contorcendo em preparação, só podendo assistir.

O imperador ergueu uma sobrancelha, plena confiança estampada em seu rosto. As trevas ao seu redor se atiçaram novamente, pronta para acabar com qualquer resistência.

— Finalmente... — murmurou Aldren, cativado pela expectativa. — Mostre-me o seu sacrifício!

Colth estreitou os olhos, determinados. Com um movimento firme, apontou a palma da mão esquerda para frente.

— Lashir — murmurou ele.

A magia de Rubrum ferveu em seu corpo, pulsando como uma segunda alma dentro dele. O seu próprio sangue que escorria pela pele se acumulou e se solidificou em uma única lâmina brilhante, vermelho intenso como rubi.

Com um gesto rápido da mão, disparou a lâmina de sangue coagulado para frente. O projétil cortou o ar, vibrando com a energia escarlate, em direção a Aldren, em um ataque mortal na altura dos olhos.

Mas, como era de se esperar, o sangue em forma de punhal desapareceu no instante em que estava prestes a atingir o alvo. Sugada, consumida, anulada pela energia invisível que protegia o imperador.

Colth não se surpreendeu. Seu olhar percebeu o tremor sutil das chamas nas luminárias de Sathsai, todas oscilando na mesma direção, no exato momento em que sua lâmina de sangue se desfez.

A defesa de Aldren era impenetrável contra ataques diretos daquele tipo, mas não era um escudo, era algo que se movia e, consequentemente, movia o campo mágico do ambiente, fazendo com que as chamas azuladas das luminárias de Sathsai se agitassem.

No mesmo instante do ataque ineficaz, a coragem surpreendente se fez presente com a verdadeira intenção de Colth.

Com um movimento ágil, o guardião de Anima deslizou os joelhos pelo chão de mármore polido, a lâmina de sua adaga cortando o ar em direção à cintura de Aldren, por de baixo da sua guarda elevada.

— Colth... — sussurrou Garta. Observando aflita.

Ela viu a sombra de Aldren se mover instintivamente, protegendo o imperador contra a lâmina de sangue no alto. Em seguida, a sombra se contorceu em uma recuperação espantosa. Se redirecionou e se lançou em ofensiva sobre Colth, caindo sobre ele em um golpe devastador vindo de cima, tentando pará-lo.

O guardião de Anima, porém, já antecipava a resposta. Colth se utilizou do escudo de Agnes para se proteger.

A magia de Mutha ainda estava fraca, longe de sua força plena. Rachaduras percorriam sua superfície dourada transparente, e o brilho característico mal reluzia no ambiente, resultado do desgaste e do uso excessivo recente. Mesmo assim, o guardião concentrou o que restava da magia em uma área muito menor, cobrindo apenas parte de seu corpo com a proteção reduzida.

Era uma estratégia arriscada. Afinal, a redução da cobertura aumentava muito os riscos de Aldren encontrar brechas para atingi-lo diretamente. Contudo, caso funcionasse, o escudo focalizado proporcionaria uma defesa sólida, mesmo que a magia de Mutha não estivesse em sua integralidade. Seria fundamental para o momento crítico.

E, de fato, foi o suficiente para interromper o ataque das trevas e fazer Colth ganhar tempo para a sua ofensiva.

A sombra de Aldren colidiu com a barreira mágica em um estrondo. O escudo resistiu sobre a cabeça do guardião, foi o bastante para permitir a existência do movimento seguinte dele.

Sem hesitar, Colth manteve a direção do ataque. A lâmina da adaga de Sathsai brilhou em suas mãos enquanto desferia um golpe baixo, um corte horizontal que buscava o abdômen de Aldren.

O imperador se surpreendeu sem poder conter a ofensiva. Mesmo se tentasse parar o ataque com as mãos, seria atingido pela lâmina. Arregalou os olhos ao ver o ataque se aproximar, ao ver sua derrota chegar.

“Imperador idiota. Não percebe que está lutando contra dois de uma vez.” A voz de Lashir ecoou na mente de Colth, entusiasmada, quase celebrando o golpe final que se desenhava.

Porém, repentinamente, no momento antes do corte se fazer limpo, Aldren girou o corpo de uma forma nada natural, como se o seu peso fosse menosprezado, desviando-se da adaga do guardião que passou em branco.

À distância, Garta observava tudo, surpresa. Primeiro, admirada com a coragem e astúcia de Colth. Ele havia compreendido os padrões das trevas de Aldren sem sequer enxergá-las e usou isso a seu favor. Explorando a arrogância do imperador, o distraiu com a lâmina de sangue coagulado em um ataque alto, enquanto a verdadeira investida vinha por baixo, onde nem Aldren nem sua sombra esperavam.

Mas então veio a segunda surpresa. Assim que percebeu o perigo, as trevas reagiram como se fossem uma extensão do próprio corpo do imperador. A sombra pressionou o chão e rodopiou sobre ele, permitindo ao imperador acompanhar seu movimento e conferindo-lhe uma leveza sobrenatural, sustentando-o no ar. Aldren não apenas evitou o golpe como transformou a evasiva em um impulso para o contra-ataque.

— Cuidado! — gritou Garta, em alerta ao perceber o próximo movimento do inimigo em direção ao aliado.

As trevas de Aldren retomaram os movimentos em direção ao guardião e o atacaram em resposta, estendendo-se como uma lança negra em direção a ele.

— Direita! — bradou Garta novamente. Sua voz tornando-se o farol em meio as sombras que o guardião de Anima se encontrava.

Imediatamente, Colth se jogou para o lado previsto, sentindo o vento gelado das trevas roçar sua pele.

Ele aterrissou rolando e ergueu o escudo de Agnes em seguida, bloqueando o impacto da segunda investida da sombra. A barreira mágica brilhou em tons dourados fracos, repelindo o impacto com um estrondo antes de se estilhaçar mais uma vez. O golpe fora contido, mas o escudo estava frágil, assim como a magia de Mutha, que ainda precisava de tempo para se regenerar por completa. Mesmo assim, foi providencial para Colth se afastar do perigo.

Aldren rosnou, seus olhos analisando os movimentos de Colth com uma raiva crescente.

— Pare de resistir de uma vez! — O imperador deu um passo à frente, e as trevas se adensaram ao seu redor.

Colth ofegava, sentindo o cansaço do confronto. Ele mal tinha tempo de respirar entre os ataques, mas não podia recuar. Seus olhos percorreram o salão, notando as chamas azuis das luminárias se movimentarem de forma estranha, inéditas até ali. Algo distinto estava prestes a acontecer.

— O que é isso agora? — se perguntou ele.

— ... — Garta se calou com os olhos arregalados enquanto boquiaberta.

— O que está acontecendo? — perguntou Goro, próximo dela. — Garta, o que está acont...

— Sai daí, Colth!!! — a guardiã gritou com toda a sua força, manifesto desespero, em máximo alerta.

O guardião de Anima sentiu o calor da energia se erguer à sua frente, como se um fogaréu invisível tomasse o salão ao redor de Aldren. Congelou.

— Colth!!! — gritou Garta novamente, a voz cheia de um medo que não disfarçou.

Goro, comovido pelo desespero dela, se debateu inutilmente contra as correntes sombrias que o prendiam ao chão, mas não teve sucesso, não conseguiria fazer nada dali.

Os olhos de Garta tremiam enquanto se espantava com a silhueta de Aldren se expandindo. Não era mais o homem que conheciam, aos seus olhos, ele havia se tornado uma figura colossal, uma criatura coberta por um manto de sombras que fluía e se contorcia como líquido vivo.

Colth não teve tempo para reagir, quando se deu conta já estava imerso na escuridão.

De repente, ele enxergou. Viu as trevas, viu o salão se tornar etéreo, mesmo que a realidade ainda fosse a sua. Tudo ao redor desapareceu, Garta, Goro, os encapuzados e até o altar com Lux acorrentada a ele.

Mas nada disso importava agora. Sua atenção foi voltada totalmente àquele ser de trevas enorme e cheio de energia que emanava ódio.

Colth recuou um passo, sentindo o ar quente e vil. A lâmina de Sathsai pulsava em sua mão, enquanto Lashir em sua mente se preocupava. Ela não conseguia afastar o medo crescente. Disse ao mesmo tempo que Colth sussurrou seus pensamentos:

— Ele é pura corrupção.

                                               ***

Os gritos de desespero se misturavam ao estrondo metálico das armas e o assovio dos mosquetes de Sathsai. As luzes das descargas mágica das armas iluminavam o caos da estrada que cortava o bosque e levava ao portão do campo de trabalho, piscando como relâmpagos e revelando o sangue e a dor do lugar.

Os guerreiros de Nox resistiam ferozmente ao avanço do exército de Última, mas a diferença de posicionamento e armamento pesava contra eles. Soldados inimigos se moviam em formação pela estrada e por entre as árvores, alguns deles com mosquetes de Sathsai que lhe davam muita vantagem a cada disparo. Seria uma derrota inevitável, mas eles não estavam sozinhos.

Mon era imparável. O guardião de Nox avançava com a determinação e confiança plena em suas forças e de sua deusa. Seu martelo colossal girava provocando destruição, esmagando soldados e lançando destroços pelo ar. Com sua magia de gravidade, saltava sem esforço, ignorando o peso de sua arma monumental. O chão tremia sempre que pousava, e cada golpe transformava o campo de batalha em uma carnificina.

Um grupo de homens de Última tentou cercá-lo, mas foi completamente inútil. Mon ergueu o martelo, e, em um único impacto no solo, liberou uma onda de choque que lançou os soldados para o alto, em seguida, foram puxados pela gravidade manipulada, para baixo, com força esmagadora. Ossos se quebraram ao se chocarem com o chão, armas caíram das mãos completamente impotentes, e os soldados foram deixados à mercê da sorte.

Do outro lado, diante do portão do campo de trabalho, Jorge e um pequeno grupo de guerreiros enfrentavam uma ameaça diferente, mas talvez ainda pior. Tentavam conter as pessoas de Tera, mas que ali se tratavam de lunáticos.

Os lunáticos vinham em ondas, suas expressões vazias raivosas e corpos retorcidos pela influência de Hui. Homens e mulheres comuns, agora reduzidos a marionetes, avançavam sem medo da dor, gritando palavras desconexas e rosnando como animais, com olhos trêmulos sem direção. Eles atacavam como feras descontroladas, ignorando qualquer ferimento.

— Não os matem! Não os matem! — gritou Jorge, bloqueando o ataque de um lunático com seus braceletes de metal. Sua súplica aos próprios aliados, era por esperança de que aquelas pessoas ainda poderiam retornar da insanidade. — Tentem não os machucar.

Mas a multidão era implacável, empurrando-se para através do portão enquanto os guerreiros de Nox e Jorge tentavam pará-los. Era como tentar conter uma avalanche com as próprias mãos.

No interior do campo de trabalho, e completamente invisível à fúria dos lunáticos, Hui apenas assistia com um sorriso pleno no rosto. De pé, bem vestido em seu terno no meio da podridão e do desespero das suas marionetes.

— É isso! É isso! Eles são inocentes! Hahaha! — gargalhou o manipulador. Em seguida cantarolou com uma voz de deboche imitando Jorge: — Não machuquem o meu povo, somos unidos, somos amigáveis. Mentira! São todos animais!

Jorge cerrou os dentes em frustração ao ouvir a voz de Hui. Seu sangue fervendo em raiva, mas não podia ceder a provocação. Precisava manter o foco.

Os lunáticos avançavam sem trégua, agarrando-se a qualquer um que estivesse em seu caminho, arranhando, mordendo, tentando derrubar os guerreiros de Nox com força irracional. Um deles saltou sobre Jorge e tentou cravar as suas unhas sujas nele.

Com um movimento veloz, Jorge girou sobre o próprio eixo e lançou o agressor para o lado, derrubando outros três no impacto. Mas, em instantes, eles se levantaram e voltaram arrastando-se ao combate sem qualquer hesitação.

— Isso não vai dar certo! — um dos guerreiros de Nox gritou, derrubando um lunático com o cabo da sua lança, mas sendo empurrado para trás por outros cinco. — Não dá para pará-los sem feri-los!

Jorge respirou fundo. Ele sabia disso. A cada segundo, o portão ficava mais ameaçado. Mesmo assim precisavam aguentar, precisavam resistir até que Mon e seus guerreiros recuperasse o controle da retaguarda.

Mas, se tudo isso não fosse o bastante, Jorge e os guerreiros ao seu lado se surpreenderam com o pior. Hui levantou uma das mãos e estalou os dedos de forma casual, enquanto um sorriso perturbador enchia o seu rosto.

Os lunáticos congelaram por um instante. Então, em uníssono, soltaram gritos agudos em direção ao céu.

— O que é isso? — murmurou Jorge, sentindo um arrepio na espinha.

Os olhos dos lunáticos tremendo em convulsões intensas aos gritos até o engasgar e ferir as próprias gargantas.

Eles se contorceram, agarrando os próprios rostos, arranhando a própria pele até sangrar. O som das unhas dilacerando a carne preencheu a noite em meio aos gritos roucos. Então, Hui abriu os braços orgulhoso.

— E agora? Não vão protegê-los? — disse com a voz melódica, até carinhosa.

Jorge apertou os punhos em impotência, tristeza e ódio repugnante.

— Você é um monstro — rebateu ele, entre o ranger dos dentes. — É completamente maluco.

Hui balançou a cabeça com uma expressão divertida:

— Não, não, não. Eu não. Mas eles são — corrigiu ele, enquanto abria as mãos em um gesto de apresentação. Sem apego algum.

Os lunáticos pararam de tentar gritar ou se punirem. E então atacaram com o dobro da ferocidade.

Jorge mal teve tempo de reagir antes que um deles se jogasse sobre seu corpo com força. Ele bloqueou o golpe com os braceletes, mas sentiu a força da investida nos ossos do braço. O impacto o fez cambalear para trás e retroceder com a linha de defesa.

Hui gargalhava ao fundo, os olhos brilhando em puro prazer. Mas então, quando os lunáticos estavam prestes a romper a defesa dos guerreiros, repentinamente pararam.

Jorge ficou imóvel, os músculos ainda tensionados, esperando o próximo ataque. Mas ele não veio.

Os lunáticos simplesmente caíram. Como marionetes que tiveram seus fios cortados. O peso dos corpos se chocando contra a terra criou um único ruído conjunto sinistro, úmido pela lama.

O silêncio que se seguiu foi completamente inesperado, acompanhado apenas do som das lutas que aconteciam distantes do outro lado da batalha com Mon.

Os guerreiros de Nox e Jorge hesitaram, trocando olhares incertos. Nenhum deles ousou baixar a guarda.

Jorge se ajoelhou ao lado de um dos lunáticos, sentindo sua pulsação fraca, mas estável. Apenas dormindo.

— Ainda bem... estão vivos — Jorge sussurrou o seu alívio.

— O que aconteceu...? — murmurou um guerreiro ao seu lado.

Hui, por sua vez, suspirou, levando uma das mãos ao peito e a outra ao queixo como um ator no palco do teatro.

— Ah... Como pode isso ter acontecido tão rápido? Você é muito displicente, meu imperador — disse com sua voz soando quase decepcionada. Levou seus olhos em direção à fortaleza Última há alguns quilômetros dali. — O que será que está acontecendo lá de tão empolgante, que ele precisou usar os sacrifícios previstos para Lux, hein?

— Sacrifícios? — Jorge perguntou, se levantando preocupado com alguma incredulidade.

— O quê? Achou que seu povo de Tera estava só tirando uma soneca após um longo dia de trabalho? — rebateu Hui, sarcástico. — Não, claro que não. Eles são recursos. Se o imperador precisar, serão sacrificados. E, pelo visto, ele está se divertindo neste exato momento.

— Do que você está falando? — Jorge se segurou para manter a calma.

— Não é nada, não — respondeu Hui, apenas balançando mão. — Só não se surpreenda se toda essa gente tiver a alma levada de repente.

O olhar de Jorge varreu o cenário devastado à sua frente. As dezenas de corpos espalhados pelo lamaçal pareciam estranhamente frágeis, dobrados sobre si mesmos como bonecos descartados. Seus olhos se enfureceram, e ele mordeu o lábio com força, prendendo a raiva crescente.

Hui, por outro lado, abriu um sorriso largo, os olhos brilhando com perversidade.

— Ah, não fique triste — disse ele. Planejando algo. — Que tal, um amigo para te apoiar?

Hui estalou os dedos.

No instante seguinte, algo se moveu diante de Jorge. Rápido. Um borrão de vermelho que obscureceu sua visão. Seu instinto gritou, mas seu corpo hesitou por uma fração de segundo. Só conseguiu reconhecer a figura e nada mais.

Aquele à frente tinha os cabelos bagunçados, a roupa descolada, vermelha, como sempre. Era sem dúvidas uma figura conhecida. Mas não havia nenhum dos antigos traços de arrogância ou mau-humor no rosto dele. Apenas um olhar vazio e frio.

— Bernard... — sussurrou Jorge, estarrecido.

O homem diante dele não hesitou, tentou lhe atingir com a palma da mão embebida em magia de destruição.

O golpe vinha certeiro. Jorge soube que não desviaria. Não porque não pudesse, mas porque não conseguiu reagir. Seu corpo travou diante daquele homem. Seus sentimentos lhe atingindo forte.

E então, quando parecia inevitável, algo colossal surgiu entre ele e o ataque. Acertando o braço erguido de Bernard e interrompendo o seu ataque.

Era o cabo de um martelo.

— Viu um fantasma, foi? — Mon resmungou, a voz grave carregando uma bronca certeira a Jorge.

Com um único movimento, o Guardião de Nox empurrou Bernard para longe como se afastasse um peso morto.

Jorge sentiu o ar voltar aos pulmões, mas suas mãos ainda tremiam:

— Aquele homem... foi ele quem... — balbuciou, sem conseguir completar a frase.

Mon não lhe deu tempo para se perder no passado.

— Agora não é hora para isso, meu aliado de batalha — sua voz soou como a de um verdadeiro líder, enquanto se posicionava com o seu martelo. — É hora de se manter firme.

Do outro lado, Bernard recuou e ficou imóvel ao lado de Hui. Nenhuma palavra. Nenhuma expressão. Apenas um silêncio inquietante.

Em contrapartida, Hui riu mais uma vez:

— Hahaha. Chegou bem na hora, bárbaro — disse ele, com o sorriso exagerado até mostrar os dentes. — Já que você acabou a lição de casa, e colocou o exército de Última para correr... merece uma recompensa.

Hui estalou os dedos mais uma vez. E então, alguém as suas costas caminhou até estar ombro a ombro com ele. Uma pequena garota, com os cabelos brancos longos, e com o rosto belo beirando a perfeição, mas sem qualquer expressão.

Mon arregalou os olhos e apertou firme o cabo de seu martelo. Sussurrou o nome da garota, o nome da irmã:

— Dilin...

Hui apreciou a cena, o sorriso satisfeito estampado no rosto.

— Vejam só — murmurou, apertando as mãos contra o peito. — Todos esses reencontros emocionantes. Assim vão me fazer derramar lágrimas.

Dilin deu um passo à frente, apenas o som de seus pés afundando na lama ecoavam. Bernard fez o mesmo, um movimento sincronizado.

Jorge recuou instintivamente, mas Mon não se moveu. Ele sabia o que estava prestes a acontecer, do que se tratava tudo aquilo.

— Que tal mais alguns amigos para a nossa reunião? — sugeriu Hui. — Que comecem os jogos.

Ele ergueu a mão, pronto para estalar os dedos mais uma vez, mas então foi interrompido.

Um estrondo desceu dos céus.

Não era um trovão, embora tivesse a mesma imponência. Era um uivo. Um som profundo de um animal, que ressoou pelo campo de trabalho acompanhado de um corte. O vento que o acompanhava varreu a poeira e chacoalhou as folhas das árvores distantes.

A risada de Hui morreu no mesmo instante.

Seu sorriso se desfez em uma expressão de pura dor quando algo cortou o ar com velocidade absurda e passou sobre sua cabeça. Sua mão erguida simplesmente caiu. Para longe. Cortada fora.

— Ahhh!!! — Gritou ele em dor.

Hui cambaleou para trás, levando o braço mutilado ao peito. O sangue quente jorrava do corte limpo onde antes estava sua mão, manchando toda a sua roupa e lhe causando dor extrema. Seu olhar frenético saltava entre sua própria carne perdida e o causador daquilo.

Os outros, igualmente surpresos, também levaram os seus olhos para quem havia desferido o corte. O que passou sobre a cabeça de Hui, aterrissou pesadamente ao lado de Jorge e Mon.

Era uma fera imensa. Um lobo maior do que qualquer animal.

O vento agitou seus pelos brancos, e suas garras, como lâminas naturais, afundaram na terra encharcada. Um monstro de carne e osso, de pura presença e poder, parado ali, imóvel, mas pronto para avançar a qualquer sinal.

Montados sobre seu dorso, estavam Celina e Dante.

Dante segurava firmemente uma bela lança, e da ponta afiada da lâmina, uma gota escura vermelha caiu no solo. O sangue de Hui.

Celina, sentada à frente, tinha os olhos fixos no inimigo. Ela mostrava uma expressão séria e corajosa com seus cabelos tremulando ao vento e as mãos pousadas sobre o pelo branco como a neve do lobo.

A presença deles era predominante e impactante.

Por um instante, ninguém falou. Ninguém se moveu. Apenas os gemidos de dor de Hui, por entre os dentes, é que limitavam o silêncio. Mas até mesmo ele ficou paralisado diante do trio improvável que emanava um poder notável.

Então Celina declarou, enquanto Dante apontava a lança para o inimigo, sem perderem mais tempo:

— Chega de joguinhos, Hui.



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