Volume 2

Capítulo 101: Índigo

— Eu coloquei um fim no meu mundo. Eu, que deveria protegê-lo com minha vida, simplesmente deixei o mundo de Véu queimar.

Lashir permanecia sentada na poltrona do quarto refinado, a luz do amanhecer penetrando pela janela e lançando um brilho dourado sobre seus olhos resolutos e intensos como rubis.

— Não foi culpa sua, Índigo — respondeu ela com serenidade.

O vento frio entrou pela janela, movendo as cortinas bordadas em fios de ouro até acariciar o rosto do guardião de Véu, que contemplava a cidade desconhecida do alto daquele cômodo majestoso.

— Eu deveria ter previsto que os meus irmãos estavam insatisfeitos. Deveria ter notado que Véu estava preocupado — Índigo pensou em voz alta, seus olhos varrendo os telhados dos prédios da região central e das modestas residências ao redor.

— Não foi culpa sua, eu já disse — repetiu a guardiã de Rubrum.

Índigo respirou fundo antes de se virar para Lashir com um desejo derradeiro. Seus lábios trêmulos:

— Eu quero que você absorva a magia de Véu. Quero que você consuma toda a minha alma e que ponha um fim na minha vida, Lashir.

A mulher desviou os olhos insatisfeitos, como se esperasse por aquele pedido. Pensou por alguns momentos, observando o cadáver do nobre, dono daquele quarto, sobre o luxuoso carpete manchado por sangue.

Índigo se adiantou com um passo em direção a poltrona e a mulher:

— Eu me decidi, Lashir. Será melhor para nós dois. Você terá mais poder para governar esse império e seguir com seus planos, e eu serei grato por acabar com esta vida miserável.

Lashir ergueu o olhar para o homem desolado, a luz da manhã derramando-se sobre ela enquanto ela se erguia com uma aura de autoridade.

Índigo acenou levemente com a cabeça em consentimento, então ajoelhou-se diante dela, observando os seus pés se aproximarem e o tecido de seu vestido vermelho brasa se derramando ao seu redor.

— Obrigado — murmurou ele, desalento.

Lashir parou frente ao guardião cabisbaixo e levou a palma de sua mão até sobre a cabeça do homem.

— Quer mesmo isso? — perguntou ela em definitivo.

— Sim — respondeu ele, fechando os olhos com força em espera ao fim.

Lashir não hesitou em rebater as palavras com a definição e rigidez de Rubrum:

— Então faça você mesmo.

— O quê? — Índigo ergueu a cabeça, surpreso com a resposta, e viu o descontentamento no rosto superior.

A mulher fixou os seus olhos nos dele, intensa:

— Pule da janela, corte os pulsos ou use uma corda. Eu não me importo, mas se quer mesmo acabar com a sua vida, faça você mesmo. Não vou matar ou trair uma única pessoa que confia, ou confiou, em mim.

— Não vai mat...

— Eu também vou precisar de você, preciso de alguém em quem eu confio para estar ao meu lado e me ajudar — interrompeu Lashir, mas logo percebeu que disse algo sentimental, além do que devia, e desviou o olhar para a janela disfarçando em tom acirrado: — Além disso, a sua magia é completamente inútil a meu ver. Invocar alguns animais grotescos parece coisa de criança para um guardião. Não trouxe você aqui pela sua magia, trouxe você pela pessoa que você é.

Índigo se levantou com os olhos admirados sobre a mulher poderosa e suas palavras verdadeiras. Ele parou, como se comtemplasse a guardiã de Rubrum e sua sinceridade.

Lashir retornou a visão com o canto dos olhos para ele:

— O que foi? — perguntou ela, com uma leve hesitação tímida, algo comum para qualquer outra pessoa que passaria despercebido, mas que era notável quando vinham dos lábios resolutos da guardiã de Rubrum.

— Lashir, eu...

Ela, mais uma vez, interrompeu as palavras sentimentais do guardião. Manteve-se firme e inabalável:

— “E se as coisas fossem diferentes?” Você me perguntou isso uma vez, lembra? Eu vou te mostrar a minha resposta, Índigo. — Lashir avançou até a janela e respirou fundo o ar de fora. Cobriu o horizonte urbano com os olhos e concluiu: — Eu vou caçar todos os deuses, acabar com eles, um por um, enquanto roubo suas magias. E então, quando não houver mais deuses ou magia para consumir, tudo será como deve ser. Todos estarão livres.

Ela se virou determinada. Encarou o rosto chocado de Índigo, e pediu com seriedade:

— Me empreste a sua força para que eu traga a paz para esse novo mundo em que viveremos.

Índigo desviou o olhar, contemplando o cadáver ainda quente do homem mais poderoso da cidade, cujas vestes nobres ostentavam o brasão de Albores. Ele permaneceu em silêncio por um momento antes de questionar:

— Você fala em paz, mas acabou de matar cruelmente o líder deste povo.

Lashir sorriu de leve, sem crueldade.

— Por ter vivido apenas em um estado de paz, talvez não saiba. Mas a paz é construída sobre sangue derramado, e do mesmo modo, é destruída pelo mesmo sangue que a ergueu.

— Não sei se isso é o certo.

— Não se preocupe, Índigo. Você não precisará derramar sangue. Deixe que eu me encarregue disso — Lashir afirmou com convicção. — E se isso te deixa menos desconfortável, saiba que este homem forjou seu império intolerante em guerra e opressão. A partir daqui, vamos reunir aqueles que nunca tiveram escolhas, guardiões obrigados a dor e solidão com o destino já traçado por uma deusa que jamais se importou conosco.

Índigo ainda hesitava.

— Escute — continuou Lashir —, me ajude a acabar com os deuses. Me ajude a trazer paz a este e a outros mundos. Apenas confie mais uma vez em mim, assim como você confiou quando eu te tirei daquele mundo em chamas que um dia já foi a sua casa.

Houve um momento de silêncio, durante o qual Índigo ponderou sobre tudo o que fora dito.

Lashir persistiu:

— Ou se preferir, pule da janela, acabe com sua vida e apague qualquer resquício de memória que restou de seus filhos e irmãos, apague-os da história e tenha sua tão desejada paz, Índigo — disse ela, num tom de ultimato. — Escolha. Te ofereço essa oportunidade, ao menos uma vez, já que em seu mundo com seu deus você nunca teve esse benefício. Apenas escolha.

Índigo refletiu por mais alguns segundos, lembrando do rosto de cada um de seus filhos, inclusive de Véu, que realmente nunca lhe perguntou ou lhe deu a oportunidade de escolha. Talvez, de fato, fosse a primeira vez que alguém lhe permitia uma decisão tão crucial desde que se tornara guardião. Não era de se espantar que Lashir tinha conhecimento desse fato, afinal ela também era uma guardiã e, assim como Índigo, viveu apenas as escolhas dos outros. Suas vivencias eram semelhantes, mesmo que em mundos completamente diferentes.

— Então... eu posso mesmo confiar em você?

— Eu já disse. Nunca vou trair alguém que confia em mim, jamais.

Índigo suspirou, seu dilema ainda era visível em sua expressão, mas ele finalmente trouxe sua resposta:

 — Certo. — Acenou com a cabeça em concordância, os olhos carregados de pesar. — Já que você é a única pessoa em quem eu confio, então... Eu quero que saiba do meu nome verdadeiro.

Lashir estranhou ao estreitar as sobrancelhas e iniciou com um tom ácido:

— Pra que isso? É totalmente desnecessário e...

— Yazen. — disse Índigo com uma seriedade convicta nos olhos. — Não quero que me chame assim, mas quero que se lembre desse nome. Mesmo após a minha morte.

Lashir recolheu o seu sarcasmo observando a importância daquilo na voz de Índigo. Perguntou sem segundas intenções, apenas com curiosidade plena:

— Por que está me dizendo isso?

— Porque não estou só confiando minha vida a você, estou confiando o que restou da vida dos meus filhos também.

Lashir consentiu com um leve balançar de cabeça:

— Entendi. Eu já havia ouvido falar que no seu mundo os familiares mais próximos levavam o nome dos pais até se tornarem adultos. Tsc — reclamou a mulher ao perceber algo: — Maldito Véu, agora eu entendo o motivo de mudar o nome de seus guardiões. No final das contas ele era tão cruel como qualquer outro deus.

— É... talvez fosse — respondeu Índigo, em um sussurro pesado.

                                               ***

— Como... como sabe desse nome? — perguntou o deus Véu no centro do hall de seu belo palácio.

Colth, ainda sentindo as dores de sua perna ensanguentada, ficou boquiaberto sem entender o rumo que aquela conversa perigosa poderia levar.

Lashir não recuou a intensidade de seus olhos. Mesmo cercada e rendida pelas criaturas imperfeitas evocadas por Véu, ela manteve-se convicta de suas palavras. Repetiu-as para mostrar essa certeza frente ao deus impactado:

— Yazen. Esse era o nome de Índigo e seus filhos. Esse era o seu nome, Véu. Ao menos o nome do corpo que você tomou — Lashir pronunciou com uma calma que contrastava com a tensão do momento, seus olhos vermelhos como brasas focados intensamente no pequeno deus.

— Como sabe disso? Índigo te disse ou...

— É claro que foi o Índigo que me disse. Nada mais restou do seu mundinho perfeito, esqueceu?

O garoto deus lamentou cabisbaixo:

— Droga... droga... Eu achei que você fosse... — Enquanto lamentava para si mesmo, Véu fechou o punho suavemente, e as criaturas imperfeitas foram lentamente absorvidas pelo chão sólido de mármore até desaparecerem por completo. Um suspiro pesado escapou dos lábios do jovem deus. O garoto continuou: — Achei que você, guardiã de Rubrum, fosse a causadora do massacre em meu mundo, mas parece que eu estava enganado.

Assim que Lashir se viu livre das garras das criaturas que já não estavam mais presentes, ela caminhou determinada em direção ao pequeno deus.

— Índigo jamais diria o nome verdadeiro de sua família — pensou alto Véu, com desanimo enquanto mantinha os olhos fixos nos seus próprios pés.

Lashir manteve o passo acelerado em direção ao deus. Colth, sem poder se movimentar tão rápido, estranhou a determinação nos passos firmes dela:

— Lashir, espera. O que você vai...

A mulher de vermelho o ignorou e continuou o seu avanço.

— Droga, droga... eu sou um péssimo deus... — sussurrava Véu, desequilibrado em seus próprios pensamentos. — Eu sou um péssimo filho.

— Não, Lashir. Não faz isso... — tentou Colth, sem sucesso.

A guardiã já havia erguido a palma da sua mão em direção ao deus e deu seu último passo ao chegar nele.

— Desapareça daqui — disse ela, ao encostar na testa do garoto.

A presença do deus de Véu evaporou no instante seguinte. Um silêncio penetrante se fez presente até que Colth, espantado, abriu a boca:

— O que você fez?

Lashir respirou fundo com um rancor óbvio:

— Nada que parta de um deus merece atenção. Além disso, essa era só uma projeção dele, o último resquício de sua magia.

Colth ainda estava surpreso com aquela reação e desfecho. Lashir manteve o tom certeiro para encerrar o assunto:

— Vamos, a essência está atrás daquela porta — ela apontou com os olhos para a porta enfeitada no final do hall. Deixou claro o objetivo final.

O rapaz manteve-se relutante, mas se forçou a caminhar, mesmo que mancando, para acompanhar Lashir.

— Não precisava fazer isso. Não precisava acabar com o deus Véu, ele...

— Cala a boca, você não sabe de nada — interrompeu ela, sem intensidade. — Vamos, antes que algo mais apareça.

Colth suspirou, deixando a discussão para um momento mais oportuno. Andou até o final do hall com alguma dificuldade. Junto de Lashir, abriu a grande porta de madeira lapidada e se viu diante de um quarto luxuoso.

O cômodo era o mais interno do palácio. Um quarto luxuoso com uma atmosfera de grandiosidade e opulência que só um rei ou um deus poderia esbanjar. Ao fundo, sob a luz branda de um único lustre, uma mulher repousava sobre a suntuosa cama.

Colth não teve dúvidas, aquela era Iara. Completamente desacordada com uma respiração leve, ela parecia tranquila em uma soneca de uma tarde chuvosa.

— Iara — disse Colth, chamando pela garota ao se aproximar da cama com alguma expressão de dor devido a sua perna.

Lashir acompanhou o rapaz, e também parou ao lado da cama. Diferente dele, ela não esperava uma reação da garota em pleno sono.

— Ei. Iara — insistiu Colth. Chacoalhando o ombro da arqueira deitada sobre a cama.

Iara não reagiu de modo algum. Suas roupas estavam intactas, sem nem ao menos um enrugado no tecido de sua camisa ou saia rosada, muito menos sangue ou qualquer ferimento aparente.

— Ela não vai acordar. Não assim — elucidou Lashir, com o tom assertivo.

— O que quer dizer? — perguntou Colth, preocupado.

— Só tem um jeito de acabar com isso.

Colth observou, com angústia, enquanto Lashir se aproximava da figura imóvel de Iara sobre a cama. Uma sensação de apreensão o envolveu, temendo pelo pior diante da postura estranha da guardiã de Rubrum e do seu recente comportamento diante do deus Véu.

— O que você está fazendo? — questionou Colth, sua voz carregada de preocupação ao notar a mulher levantando a mão em direção a cama.

Lashir permaneceu em silêncio por um momento, seus olhos fixos na figura inerte de Iara. Uma expressão indecifrável cruzou seu rosto antes de responder, com uma serenidade que contrastava com a tensão do momento:

— Confie em mim. Eu sei o que estou fazendo.

Colth sentiu um nó se formar em sua garganta, incapaz de desviar o olhar da cena diante dele. Queria acreditar em Lashir, mas a incerteza o consumia.

— Por favor, não faça nada que possa machucá-la — implorou Colth.

Lashir se aproximou ainda mais da cama, seus dedos pairando sobre a testa pálida de Iara. Um brilho sutil emanou de suas mãos. Colth prendeu a respiração, observando cada movimento.

O corpo de Iara tremeu e, então, um gemido de dor escapou dos seus lábios com uma intensidade inesperada. O brilho das mãos de Lashir se intensificou. A agonia de Iara se transformou em gritos de sofrimento que ecoaram pelo quarto, fazendo com que Colth se movesse instintivamente para impedir a origem daquilo.

— Pare! Você está machucando-a! — gritou Colth, no mesmo instante que agarrou o braço de Lashir com força. Ela resistiu.

Lashir não recuou, sua expressão se mantinha determinada enquanto continuava a se concentrar no brilho constante de suas mãos.

A tensão no quarto aumentou rapidamente, transformando-se em uma confrontação entre o desejo de Colth de proteger Iara e a convicção de Lashir em sua ação.

— Não dá para parar agora — disse Lashir em meio aos dentes rangendo pela concentração.

O brilho aumentou. Iara urrou sua dor mais uma vez enquanto o seu corpo estremecia sobre a cama.

Colth sentiu a fúria borbulhar dentro dele. Não podia simplesmente ficar ali e assistir enquanto Iara sofria daquele modo.

— O que está fazendo, Lashir!?

— É o único jeito...

— Ahhh — Iara persistia nos gritos, mesmo que desacordada.

— Espera. — Colth constatou a situação ao ter a voz de desespero de Iara ecoada para dentro de seu ouvido. Irado, ele vociferou para Lashir com uma intensidade multiplicada: — Você não está tentando salvá-la! Está tentando tomar o seu corpo!

— Só mais um pouco...

— Sua megera! Filha da...

Colth cerrou o punho com firmeza, sentindo a energia fluir através de seus braços. Um brilho intenso começou a irradiar da palma de suas mãos, escapando pelos vãos de seus dedos cerrados. Com determinação, ele lançou um rápido soco em direção a Lashir, buscando confrontá-la e interromper sua ação.

No momento em que seus brilhos intensos se encontraram, uma explosão de magia irrompeu pelo quarto, lançando objetos e móveis para todos os lados. Colth foi arremessado com violência, seu corpo chocando-se contra uma das paredes refinadas do cômodo. Ele caiu de costas sobre o carpete escovado, sentindo a dor irradiar de sua perna para todo o corpo.

Enquanto o brilho intenso que preenchia o quarto aos poucos se dissipava e a poeira baixava, Colth não hesitou. Apesar da dor e da dificuldade para se mover, ele se esforçou para se levantar, mirando seus olhos na direção de Lashir. A mulher de vermelho ainda estava ajoelhada no mesmo canto que ele, sua postura firme apesar do impacto da explosão.

— O que foi que você fez, sua... — gritou Colth em ódio, antes de se auto interromper ao ver o rosto impactado de Lashir.

Ela tinha uma expressão admirada voltada para o centro do quarto. Quando Colth também mirou os olhos na mesma direção, ficou com uma expressão semelhante.

Ao centro do quarto, Índigo carregava o pequeno corpo de Iara.

O homem parecia completamente saudável, talvez até mais jovem desde a última vez que Colth o viu. A garota também parecia intacta, sem qualquer arranhão mesmo após a explosão.

— Como? De onde você... — Colth iniciou a pergunta.

— Eu estava aqui o tempo todo — disse Índigo com um leve sorriso. Ele colocou delicadamente a garota desacordada que estava em seus braços de volta sobre a cama e então explicou: — Na verdade, sou apenas o que sobrou da minha magia. A última coisa que deixei para Iara. E como a origem dessa magia não existe mais, eu tenho só mais um pouco de tempo de vida aqui.

Lashir se levantou do chão com os olhos intensos, mas com um brilho diferente do habitual:

— Seu... — disse ela, sem completar, enquanto balançava a cabeça negativamente em desavença. Ao invés de finalizar, caminhou em direção a Índigo com passos pesados.

Colth se alertou mais uma vez. Tentou se movimentar, mas todo o seu corpo dolorido não lhe permitiu. Como último recurso, alertou em grito:

— Cuidado, Índigo! A Lashir vai atacar a...

Não conseguiu completar o aviso. Lashir já havia alcançado o homem ao lado da cama. Mas para surpresa de Colth, e até mesmo de Índigo, a mulher o agarrou.

Envolveu seus braços ao redor do corpo de Índigo. No início até pareceu algum golpe desconhecido da guardiã de Rubrum, mas se mostrou totalmente ineficaz no momento em que ela afagou sua testa no peito dele.

A mulher sussurrou em meio a uma ardência em seu âmago:

— Então, você... — Ela interrompeu seus próprios dizeres ao perceber a emoção se alastrando em sua garganta.

Índigo conhecia bem aquele jeito de ser dela. Não esperou calado:

— Sim. Acho que finalmente a paz chegou para mim — respondeu ele, também com seus braços a envolvendo. Sorriu sereno.

— Droga — reclamou ela, com um evidente choro bloqueado enquanto escondendo o rosto sobre o tecido da camisa dele.

Índigo suspirou pacífico, e encontrou a expressão boquiaberta de Colth do outro lado do quarto. Resumiu:

— Não se preocupe, Colth.

— Eu não entendo — rebateu o guardião de Anima. — A Lashir estava tentando tomar o corpo da Iara agora mesmo.

Índigo sorriu mais uma vez. Respondeu com convicção em meio ao tom leve:

— Não. Ela nunca faria isso.

— Como pode ter tanta certeza? — insistiu Colth.

— Por que você disse que confia nela, não foi?

— Disse. Mas o que isso tem a ver...

— Então não tem com o que se preocupar, Colth. Ela jamais vai trair alguém que confie nela — finalizou Índigo sem dar chance de resposta ao rapaz. Voltou-se a Lashir: — Obrigado por ajudar a Iara.

A mulher desfez o abraço e olhou com o canto dos olhos para o homem. Disfarçou os seus sentimentos e explicou:

— Eu só fiz o que tinha que ser feito, para melhorar as chances contra os deuses. Além disso, estancar o sangramento e todas as suas feridas, do corpo real dela, não foi tão difícil.

Índigo soltou um início de gargalhada. A conteve:

— He. Eu sei que sim. Mas continue ao lado dela, tá bom? — pediu enquanto levava os olhos para a garota ainda desacordada na cama. Contemplou a serenidade do sono dela e disse orgulhoso: — Essa garota tem um futuro brilhante pela frente.

— É claro que tem — rebateu Lashir, com o seu tom satírico retornando ao normal.

— Não, é sério — perseverou ele. — Ela conseguiu invocar criaturas imperfeitas no primeiro dia após eu passar a magia de Véu e torná-la guardiã.

— Então fez dela uma guardiã, como eu imaginei. Mas eu não consigo entender o motivo disso.

— Acho que você nunca entenderia, Lashir.

— Que seja — disse Lashir, sem dar muita atenção.

— Eu não duvidaria que ela consiga, algum dia, evocar criaturas de outras realidade que não sejam as da criação de Véu.

— Até parece. Nem mesmo você conseguiu isso. — Lashir prosseguiu com sua arrogância ácida. — Só conseguia chamar aqueles cachorrinhos e pombos. No máximo um capelobus idiota.

Índigo sorriu. Com uma sensação de nostalgia acariciando o seu coração. Rebateu:

— Então, espere e verá. Além disso, ela é a melhor que eu já vi com um arco.

Lashir calou-se. Lembrou-se. Não se permitiu responder. Já havia escutado aquelas mesmas palavras daquele mesmo homem. Um silêncio se formou em meio a eles.

— Elas seriam ótimas amigas — disse Índigo, interrompendo a estranheza com um pesar nos olhos enquanto observava Iara sobre a cama.

— Elas — iniciou Lashir. Mas pareceu ser travada pela sua própria reclusão. Engoliu seco e insistiu frente aos olhos surpresos de Índigo sobre ela. Pareceu batalhar consigo mesma em seus pensamentos. Finalmente conseguiu: — Elas seriam, mesmo. Seriam ótimas amigas.

— He. — Sorriu Índigo.

Um sorriso pleno, pacífico e sublime.

Lashir desviou os olhos. Talvez com vergonha de seus sentimentos entregues. Índigo não pôde contemplar aquele momento por mais tempo. Resumiu tranquilo, satisfeito:

— Está na hora de ir.

Lashir mirou os olhos para ele, já recomposta, para um último adeus inevitável. Direta em tom de despedida:

— Eu jamais vou esquecer o seu nome, Yazen.

Índigo foi surpreendido mais uma vez. Mas logo se desfez desse sentimento, afinal, era o esperado vindo da guardiã de Rubrum, a pessoa mais firme e convicta que ele já conheceu. Não seria uma despedida entre amigos que a impactaria a ponto de lhe fazer se emocionar e chorar. Ele se deu conta disso e retornou mais um sorriso com palavras resignas em paz:

— Eu sei que não. Mas vocês — incluiu Colth e Iara na despedida —, carregam algo muito maior que meu nome. Eu demorei para perceber, mas agora entendo.

— Maior do que seu nome? — sussurrou Lashir.

O corpo de Índigo emitiu um brilho intenso. Seu último brilho. Ele concluiu antes do fim:

— Lashir, Colth, Iara. Vocês carregam o sonho do mundo de Véu. O sonho dos Yazen — Ele fixou os olhos em Lashir e finalizou: — Obrigado.

Se desfez em luz.

O silêncio percorreu todo o quarto com o apagar do brilho intenso. Lashir permaneceu em silêncio, observando Iara deitada sobre a cama. Seus olhos vermelhos refletiam um pesar na contemplação. Ela compreendia a importância do sacrifício de Índigo e o significado do que ele havia dito, mas ainda assim, doía. Por um momento, sua expressão dura se suavizou, mas logo voltou ao seu semblante habitual, impassível e determinada.

Colth se aproximou dela, tentando encontrar as palavras certas para confortá-la. Sabia que Lashir tinha agido pelo bem de todos, mesmo que de uma maneira difícil de compreender. Ele ergueu o braço e abriu a boca para comentar, no entanto, antes que pudesse dizer qualquer coisa, Lashir o interrompeu com um gesto brusco se virando em direção a parede:

— Não há tempo para isso. Vamos sair daqui — disse ela, sua voz carregada de uma tristeza contida pela sua sólida determinação.

Colth assentiu em silêncio, compreendendo que não havia mais nada a ser dito naquele momento. Ele lançou um último olhar para Iara, sentindo uma sensação de paz, a mesma que Índigo deixou para trás. Agradeceu em seu interior, e então se concentrou em sua magia.

Despertou.



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