Volume 1

Capítulo 44: Dissociação

— Vamos todos, o chefe da cidade tem um pronunciamento! — gritou um jovem correndo pela rua junto dos amigos para um objetivo em comum.

Colth reconheceu aquele grupo de crianças, reconheceu o centro da cidade, na verdade, reconheceu aquele exato momento. Em meio a rua principal de Toesane, em um dia belo ensolarado, ele se lembrou de já ter vivido aquilo.

— Esse dia... — sussurrou para si mesmo como se tentando convencer a fazer algo.

Quando estava prestes a tomar a atitude necessária, percebeu uma carroça movida por dois cavalos em alta velocidade em sua direção. Óbvio, ele estava no meio do cruzamento de duas ruas que, mesmo sendo a pacata Toesane, ainda eram movimentadas.

Vinda da rua que era conhecida pela ladeira que levava até os túneis da entrada da cidade, a carroça se chocaria a lateral do corpo de Colth em cheio. O rapaz não teve tempo de pensar, apenas fechou os olhos e esperou pelo impacto protegendo o rosto. Passou.

Sim, simplesmente passou.

A carroça passou intangível ao corpo do rapaz, continuou o seu caminho em linha reta para a rua comercial sem nem ao menos tomar conhecimento da existência do rapaz. Colth ficou intacto, abriu os olhos com temor, mas era desnecessário, nada ali era de fato real.

— É um sonho. — Lembrou-se da aula rápida que teve com Koza sobre o funcionamento da magia de Anima. — É claro que é um sonho. Ufa...

Respirou fundo agradecendo por não morrer atropelado por uma dupla de cavalos magros de um comerciante bêbado. Seria uma morte pífia para um guardião.

— Se isso é um sonho, eu não posso tocar em nada, nada pode me tocar e tudo aqui parece tão real, então só pode ser um sonho do tipo lembrança. — destacou os seus pensamentos revisando os ensinamentos. — Esse é um dos três tipos de sonhos existentes. Ah Koza, eu prestei muito bem atenção na sua explicação viu, seu sapo fedido — falou ao vento se vangloriando.

Colth superou os pensamentos e notou que as poucas pessoas na rua caminhavam para apenas uma direção. Ele sabia exatamente onde elas estavam indo. Seguiu-os com um sentimento saudoso.

Não precisou andar muito. Percorreu exatamente um quarteirão onde os prédios simples de dois andares eram os que mais se destacavam. Virou a esquina e se deparou com o esperado.

Uma praça tomada por algumas dezenas de pessoas que assistiam ao discurso de um trio de pessoas na sacada do prédio branco antigo ao fundo.

A construção era simplista, mas envolto de árvores douradas e bandeiras coloridas com ramos de algodão estampados sobre o brasão da cidade, se fazia bela.

A multidão escutava o anúncio que vinha da sacada de forma atenta. Colth não fez diferente.

— Não se preocupem, abriremos a passagem dos túneis por uma boa causa — proferiu o líder da cidade no alto de seu discurso.

— E como vamos confiar neles? — perguntou um velho no meio da multidão de camponeses e fez todos se agitarem com a mesma pergunta.

O líder respirou fundo sobre a sacada antes de responder:

— Acalmem-se. Calma, calma — solicitou e foi prontamente atendido.

— Pai... — sussurrou Colth ao fundo da aglomeração. Saudades e orgulho se misturavam.

— Eu vou ser sincero com todos vocês — continuou o chefe da cidade —, Não temos muitas garantias além da palavra deles. Mas também não temos muitas escolhas, a colheita desse ano foi prejudicada pela praga das criaturas sombrias. Se não abrimos a passagem, teremos centenas morrendo de fome. Além disso, estamos em conversa com outras cidades para fazermos uma aliança que garantirá a defesa entre nós.

Alguns da multidão ainda não haviam se convencido, um deles gritou na tentativa de se impor:

— Mas e se...

— Se acontecer, lutaremos. — decretou o líder. — Não há mosquete de Sathsai capaz de parar o povo de Toesane!

O silêncio respeitoso e pouco receoso se estabeleceu na praça. O chefe continuou:

— Eu deixarei que vocês decidam, mas saibam que morrer lutando por sua cidade é infinitamente mais honroso e menos doloroso do que ser apagado pela fome implacável.

A concordância entre os cidadãos vinha com o balançar positivo de cabeça entre eles. Ainda receosos, mas tocados pelas palavras.

— Esperem! — gritou energeticamente um rapaz no canto da multidão. — Não façam isso!

Ninguém lhe deu ouvidos.

Colth reconheceu a voz imediatamente, entendeu os seus sentimentos e foi de encontro ao que ainda continuava a gritar incessantemente:

— Me escutem, seremos traídos pelos alborenhos! Não abram a passagem!

Nenhum dos que estavam na multidão pareceu ter ouvido a suplica do jovem.

— Desiste, eles não vão te escutar — disse Colth ao alcançar Goro, o inquieto.

— Mas que droga está acontecendo aqui? — perguntou o rapaz estranhando a presença do velho conhecido.

— Isso é só uma lembrança, nada aqui pode ser mudado.

A multidão começou a dissipar-se aceitando o destino imposto pelo líder da cidade. Goro ignorou as palavras de Colth e voltou a tentar chamar a atenção para as suas petições:

— Não abram a passagem! — ignorado mais uma vez, desesperou-se. Foi de encontro a um casal que já caminhava em direção à saída da praça. — Me escutem, não...

Tentou colocar a mão sobre os ombros do casal na intenção de para-los, mas foi em vão. Sua mão passou intangível pelo corpo de ambos. Assustou-se e, quando parou de mover-se, Goro foi completamente atropelado pelo corpo de um outro homem.

Assim como havia acontecido com a carroça mais cedo, Colth viu o homem simplesmente passar pelo corpo do amigo de forma a desconsiderar a sua existência.

Goro se surpreendeu, mas não desistiu, tentou novamente chamar a atenção de uma outra mulher a caminhar pela praça e, novamente, falhou por completo.

— Mas que...

— Eu já disse, nada aqui pode ser mudado — enfatizou Colth sério e ameno seguindo o rapaz. — Essa história já foi escrita.

— Mas o que é tudo isso? — desistiu momentaneamente. — Por que estou revivendo isso? Isso é algum pesadelo?

— Hum. Sua percepção me dá inveja, Goro.

— Me diga o que está acontecendo, agora! — levantou o tom em ameaça ao encarar o outro.

— Você já sonhou com algum momento passado da sua vida? — perguntou Colth, foi respondido com o levantar de sobrancelhas do amigo — É exatamente isso que está acontecendo agora. Esse é o mundo dos sonhos.

— Então, você é uma lembrança?

— Não, eu não. Eu sou o Colth, sou eu mesmo.

— O quê? — estranhou completamente Goro, não entendeu. — E como é que você está sonhando o meu sonho?

— Eu não estou sonhando, eu estou no mundo dos sonhos conectado ao seu sonho enquanto você e... Ah, é complicado. — desistiu Colth. — Eu queria que o Koza estivesse aqui para te explicar isso de uma forma entendível.

— Koza?

— É, um sapo falante metido a sabichão.

— Uma criatura imaginaria, criada nos sonhos, entendi.

— O quê? Não. Koza é real. Que ideia estranha essa sua — concluiu o rapaz em desdém.

Goro preferiu não persistir, apenas deixou o assunto morrer:

— Que seja. Então, eu só quero sair daqui.

— Concordo com isso. Só precisamos acordar.

— Acordar? E como fazemos isso? Pra mim, eu estou bem acordado.

Ambos em meio a praça já vazia pensavam em conjunto. Aquilo chegava a ser nostálgico no ponto de vista de Colth, podia citar esse fato, mas deixou passar. Teve uma ideia:

— Da última vez que eu estive em um sonho, a Garta foi acordada por alguém do lado de fora, do lado da realidade, e isso nos expulsou do mundo dos sonhos.

— O que aquela garota metida tem a ver com isso? — perguntou Goro continuamente confuso.

— Eu estive nos sonhos dela. Um labirinto tão denso que deixaria até o professor Felix perdido.

— O nosso professor do sexto ano? Por que, ele?

— Eu sei lá. Ele era inteligente.

— Não, não era. — negou prontamente. — Você que era uma criança catarrenta e burra. — Os olhos de Goro se afiaram enquanto cantarolava as suas palavras. — Pensando bem, você só deixou de ser criança, Colth. O resto continua igual.

— Ah, não enche. — Recolheu a provocação. — Precisamos que alguém nos faça acordar. Só é um pouco difícil de lembrar onde é que nós estamos no mundo real.

— Tem razão. Eu não me lembro também.

Em pensamentos, se calaram. O vento tomou conta da praça vazia, as folhas secas das árvores começavam a cair mais e mais.

— Trem, Celina, Koza, estação... — sussurrava Colth.

— O que está fazendo?

— Shhh. Fica quieto. Estou tentando lembrar dos meus últimos passos.

— Não faz “shhh”, pra mim. — Goro repeliu aquilo com todas as forças. — Acha que está falando com quem?

— Olha aí, quem é a criança? — provocou Colth.

— Você que é criança.

— Você que é uma criança chata!

— Tá afim de levar um soco, é? — foi a vez de Goro provocar.

— Você não acertaria um soco em mim, mas nem se eu estivesse vendado.

— Eu acabei de te dar uma surra naquele beco, esqueceu?

— Não, claro que não. Eu me defendi muito bem. Como eu disse, mas nem que eu estivesse vendado você...

— Espera, o quê? — Goro voltou a raciocinar deixando a imaturidade de lado.

— É isso aí, nem que eu estivesse vendado, você me acertaria.

— Não. O beco, estávamos no beco. — Mudou o tom da discussão. — Estávamos brigando por conta de você se negar a lembrar do dia em que...

O vento soprou mais forte. O arredor começou a desmoronar como se as construções fossem feitas de areia.

— Mas o quê?

O dia foi escurecendo, não como se a noite chegasse, e sim como se tudo estivesse deixando de existir. O breu tomou conta.

Quando a luz voltou, estavam novamente um de frente para o outro. Em meio a uma rua tranquila frente a uma casa aconchegante com um pequeno jardim acolhedor e familiar.

— O que aconteceu? — perguntou Goro tentando encontrar respostas ao seu redor.

— Eu não tenho nada a ver com isso. O sonho é seu e...

— Ah, não — Goro ficou pálido, suou frio. — Colth, esse lugar... Essa atmosfera, esse barulho, esse cheiro.

— O que foi? Nos só estamos parados em frente à casa da minha irmã. Ah! Ela está ali! — Notou a sua irmã, Nya, no interior de sua casa. Através da janela da cozinha, ela cantarolava enquanto ocupada preparando o almoço. Colth sentiu um apertar no coração. Sorriu sereno. — Ah, que saudades da comida que a Nya prepara, eu preciso muito voltar para Toesane e encontrar ela e a Agnes para falar sobre tudo isso que aconteceu e...

— Colth. — Goro chamou a atenção para si enquanto observava preocupado o outro lado do horizonte em direção as montanhas.

— O que foi? — estranhou o rapaz ao ver que o amigo estava completamente apreensivo.

— Colth, esse foi o dia que você escolheu esquecer. — Engoliu seco. — Esse é o dia da ofensiva de Albores sobre Toesane.

Assim que Goro finalizou a sua afirmação abalada, uma luz brilhou no céu. Mais claro que o próprio sol, a luz azulada se aproximava pelo céu de forma rápida.

— Eu esqueci? — perguntou Colth enquanto a luz tomava os seus olhos.

Aquela era uma arma de destruição em massa. Originada por um canhão de Sathsai, a esfera grande de energia maciça foi arremessada distante e se aproximou com velocidade de onde os dois rapazes estavam. Quando se chocou com o solo, ergueu uma nuvem de poeira espessa e desmoronou uma porção de construções e casas de todo aquele bairro residencial.

A luz da energia tomou conta e, quando tudo foi ofuscado, a destruição surgiu, a terra estremeceu e todos os sons foram consumidos pelo barulho de um único estrondo.

Caos, foi o que permaneceu por segundos que pareceram horas. O calor consumiu as árvores e as flores dos jardins das simples casas que deixaram de existir no momento seguinte. Resultado da guerra que havia apenas começado e que logo acabaria com a rendição do mais fraco.

Quando Colth restaurou os seus sentidos mais primordiais, viu a casa em que passou boa parte de sua vida completamente desmoronada, resumida a apenas uma grande pilha de destroços.

— Mas o q... Mas... Nya!!! — gritou em desespero pelo nome da irmã ao mesmo tempo em que correu na direção onde ela estava há segundos atrás. — Nya!

Antes mesmo que ele pudesse chegar ao seu destino, naquele monte de entulho, a escuridão voltou a tomar conta enquanto tudo se desfazia como areia.

— Não, Nya! Nya!!!

Não deu tempo. Novamente, tudo escureceu.

— Ahhhh!!! — gritou Colth com toda a força em meio ao beco imundo.

Deitado sobre o concreto, seus olhos só avistavam as nuvens cinzas do céu estático. Lágrimas escorriam e pensamentos não podiam mais ser evitados, lembrou-se do dia que tanto quis esquecer.

— Foi isso? Foi isso o que aconteceu? — perguntou ao vento já sabendo da resposta.

Lembrou-se da dor que tanto lhe corroeu. Entendeu o peso que carregava nas costas. Esmagou os dentes uns contra os outros com a raiva que nem sabia possuir, assimilou.



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