Volume 1
Capítulo 43: Negação
Abriu os olhos e viu o céu azul tracejado por pássaros migratórios. A dor finalmente veio de uma só vez, levou de imediato as mãos para a cabeça e amargou o rosto sofrido. Estava deitado sobre o concreto frio de um beco nas sombras da cidade.
— Finalmente acordou — disse a voz conhecida em tom superior.
— Minha cabeça... — reclamou Colth. Latas de lixo e velhas tralhas compunham o ambiente urbano, ao fundo, carros e pedestres transitavam pela rua principal.
— Tem sorte de ser apenas uma dor de cabeça, se eu não tivesse impedido, você provavelmente teria um buraco nela — disse o outro rapaz do lado oposto do beco sem preocupações fumando um cigarro.
— Merda... — replicou Colth ainda com a dor lhe provocando. Levantou-se devagar escorando-se na parede imunda do beco. — O que aconteceu?
— Eu te tirei da mira dos guardas, é claro. Afinal, eu sou de uma divisão superior à deles.
— É claro que você teria de se vangloriar. — resmungou em sussurros.
— O que você faz aqui, Colth? — perguntou o homem em tom sério.
— Para falar a verdade, eu nem sei ao certo. Acho que devo ter enlouquecido.
— Hum. — Com as costas escorada na parede do outro lado beco, o homem tirou o cigarro da boca e sorriu com o canto da boca. — Todos nós enlouquecemos após aquilo, não é?
— Hã? — Talvez ainda fosse a dor atrapalhando o seu raciocínio, mas Colth de fato não entendeu onde o outro queria chegar. Finalmente levantou a cabeça e encarou de frente o único além dele naquele beco em meio a cidade Capital.
O outro rapaz estava como da última vez, com seu uniforme inteiramente preto e seu rosto completamente convencido, era difícil de ser confundido. Mas algo estava diferente, além da fumaça do cigarro, ele estava com um tom mais ameno, talvez mais pensativo.
— Não me venha com essa de novo. — Olhou para o céu pensativo e expirou a fumaça. Parecia sem ânimo. — Você sabe que isso me irrita.
— O que aconteceu com você, Goro?
— O que aconteceu comigo? — perguntou irritadiço, levou em provocação — O que aconteceu com você? Você simplesmente deixou tudo de lado, e simplesmente continuou a sua vida como se nada tivesse acontecido.
— O quê? Eu não sei do que você está falando...
— Você abandonou Toesane, abandonou a sua própria família, Colth — confrontou o rapaz após jogar o cigarro para longe, deu dois passos em direção ao alvo e encarou o amigo com uma raiva que guardava há algum tempo.
— Eu não abandonei ninguém, eu estou prestes a voltar, mas... — interrompeu-se diminuindo o tom. Poderia terminar a frase com “tive de ajudar alguns amigos”, mas soaria falso, nem mesmo ele acreditaria.
— “Mas” o quê? — Perguntou Goro balançando a cabeça em desaprovação, pior, desacreditando do que ouvira.
— Mas surgiu algo que preciso fazer — desapegou do assunto —, de qualquer forma, retornarei a Toesane o quanto antes, e tudo será como era. — Colocou um sorriso certeiro no rosto.
Goro não conseguia acreditar no que estava escutando. Tentou encontrar alguma justificativa em seus próprios pensamentos, mas não conseguiu nem chegar perto de se convencer:
— Você está fora de si — disse com pesar.
Não foi ouvido por Colth, ele simplesmente continuou com um olhar nostálgico perdido no tempo:
— Não vejo a hora de encontrar a Nya e contar sobre tudo o que passei.
— Colth...
— E ainda tem a Agnes. Ah, como eu quero dizer para ela o quanto os capelobus são assustadores e...
Antes que o rapaz terminasse de dizer os seus planos futuros, foi acertado pelo punho angustiado de Goro. Foi um soco de direita que acertou em cheio o queixo do desavisado.
Colth deu dois passos desequilibrado para trás e, por pouco, não caiu com as costas ao chão. Recobrou a firmeza nas pernas se escorando na parede e encarou o outro com surpresa:
— Mas que m...
— Idiota! — berrou Goro, finalmente teve a atenção para si. Manteve-se sério: — Pare de falar como se elas ainda estivessem aqui!
— Hã?
— Para com isso Colth, elas se foram.
O beco silenciou-se. Os olhos do rapaz à parede fixaram-se sem alvo. Sorriu com o canto de boca fingindo ter ouvido uma piada. Goro continuou:
— Elas morreram. Sua família morreu. Todos morreram. E você esquecer disso, não vai trazê-los de volta.
— Não... — Colth desviou o rosto e novamente caçoou como se fosse uma brincadeira de mal gosto.
— Pare de fugir! — Goro colocou suas mãos no ombro do rapaz tentando traze-lo de volta a realidade. — Já está na hora de você encarar isso, Colth.
— Não! Me solta! — empurrou as mãos do amigo para longe, se desvencilhou franzindo a testa ao máximo.
Caminhou sem direção, apenas para sair dali, apenas para sair das sombras encardidas do beco enfadonho.
Goro permaneceu, pensou o quanto deixou de fazer e o quanto de culpa poderia ser atribuído a ele. O mais novo anti-criaturas já estava preste a jogar todas as suas conquistas para o alto depois do que viu na noite passada.
O rapaz planejava pegar um trem sem destino próximo para deixar decididamente qualquer sonho para trás, talvez encontraria algum lugar pacato no interior de Nyasan para passar o resto de sua vida decepcionada, mas então, algo havia lhe chamado atenção naquela plataforma. Um velho amigo com mais problemas e desilusões do que ele próprio. Definitivamente não tinha mais nada a perder.
Poderia dar de ombros, mas a possibilidade do resto da sua vida decepcionada e entediante no interior de Nyasan ser assombrada por algum sentimento de culpa era grande. Decidiu-se:
— Já chega! — Goro não poderia mais aguentar aquilo. Já havia usado todos os tipos de abordagem para encarar a situação, perdeu a paciência. Alcançou os passos de Colth e novamente colocou suas mãos sobre os ombros dele. Dessa vez, não o deixaria escapar.
— Eu disse para me soltar! — esbravejou Colth se esforçando novamente para escapar das lembranças que tentavam lhe alcançar. Sua mão emanou o brilho inoportuno inconscientemente como última saída.
— Eu não vou deixar você fugir mais uma vez. Nem que eu precise te socar para te fazer entender.
— Me solta! — Tentou mais uma vez se desvencilhar.
Colth até conseguiu se afastar do importuno, mas Goro já havia jogado tudo para o alto, fixou seu pé esquerdo ao concreto encardido e ergueu o direito com toda força e velocidade, acertou o ombro do persistente que prontamente sentiu a dor em seus ossos.
Colth não iria deixar por isso mesmo, girou em seu próprio eixo na outra direção e, com a velocidade crescente do movimento, fechou o punho e esticou o braço para transformar aquilo em uma luta, pretendia acertar o rosto de Goro com a parte de fora da mão, não achou nada além de ar.
Goro esquivou-se, agachou-se rapidamente e viu o soco giratório do oponente passar sobre seus cabelos. Persistiu, dessa vez com um chute rasteiro, varreu o chão e levou consigo as pernas de Colth. Uma rasteira perfeita que, por vezes já tê-la usada contra esse mesmo adversário, achou que não funcionaria. Estava enganado, funcionou como se fosse da primeira vez.
Colth, sem chão, caiu protegendo o rosto e projetou o seu próximo movimento. Antes que Goro viesse a concluir o golpe com um soco em direção ao chão sobre suas costas, Colth rolou sobre o chão para longe e levantou-se dele como um animal quadrúpede. Estranhou seus próprios movimentos, pensou rapidamente que aquilo era algum tipo de memória muscular, ou talvez um sexto sentido vindo da magia de Anima, deu de ombros para si mesmo.
Goro socou o chão após a rasteira perfeita. Reconheceu que aquela luta não era como a primeira que tiveram há anos. Não poderia ser diferente, após tantos dias de convívio, treinamentos, e histórias juntos, não seria um golpe tão batido e simples desse que encerraria o embate.
— Parece que aprendeu um pouco, depois de tanto tempo — disse Goro com um sorriso de canto de boca se reposicionando frente ao oponente.
Colth deu um passo para trás temerário, por algum motivo, pressentiu não conseguir vencer. “Mas por quê?” Ele pensou.
— Mesmo assim, continua o mesmo fujão de sempre. — Acirrou os olhos. — Não é, Colth? Você só está fazendo o que sabe fazer de melhor. Fugir! Foi assim em Toesane, foi assim no exame, foi assim comigo. Mas agora vai ser diferente. Não dessa vez.
Colth estranhou e se perguntou do que o outro falava, mas não teve mais tempo de pensar a respeito.
Goro avançou dois passos curtos e, com o punho esquerdo ligeiro apontou seu soco a meio altura em direção à Colth. O alvo, por sua vez, fez a guarda e deu passos para trás desviando.
Colth pressentiu mais uma vez, atormentou-se procurando uma brecha para contra-atacar. Goro não deu oportunidade, punho direito encontrou mais uma esquiva e o esquerdo, em seguida, encontrou a guarda do oponente sem abatê-lo. Era como reviver, Colth sabia como se esquivar daqueles golpes perfeitamente, sabia como nenhum outro.
O anti-criaturas não deixou se abalar pelos sucessivos golpes desviados com tamanha excelência pelo adversário, pelo contrário, aumentou o ritmo pressionando-os em avançar com passos curtos em direção ao alvo.
Direita e esquerda, um golpe seguido do outro, todos continuamente desviados ou defendidos com maestria por Colth que era obrigado a manter passos recolhidos para trás.
Goro persistiu, mais uma meia dúzia de socos no vazio ou perfeitamente guardados, Colth estava para achar a sua brecha, percebeu o oponente reduzindo a velocidade de seus ataques e, quando teve a certeza de que estava no momento certo do embate para o seu esperado contra-ataque, sentiu algo às suas costas. Estava encurralado.
Goro afiou ainda mais os olhos, teve a oportunidade que buscou, colocou o adversário contra a parede de tijolos e, com golpe repentino de baixo para cima procurou o estômago do companheiro de treino.
No momento em que o guardião de Anima tocou a parede de tijolos com as suas costas, sentiu a sua derrota. Arregalou os olhos arrependendo-se de deixar o inimigo levar a luta como quisera. Tentou a guarda baixa, mas não conseguiu evitar. Levou um belo soco no abdômen que misturou o seu café da manhã de tal maneira que o faria perder a fome pelo restante do dia.
— Eu disse que não te deixaria fugir! — concluiu Goro levantando o seu golpe. Ergueu seu cotovelo em direção ao pescoço de Colth e o pressionou contra parede encerrando o embate.
Colth colocou uma de suas mãos sobre o braço afiado em rendimento e a outra sobre o colarinho de Goro e o empurrou sem sucesso.
— Já chega! Você vai me ouvir...
— Não! — respirou com raiva.
— Sua irmã, Colth. Sua irmã está...
— Não!!! — gritou utilizando-se da única saída que ainda lhe restava.
A luz, com origem entre o corpo de Goro e a palma da mão do guardião, brilhou forte, o barulho característico ressoou pelo beco. A escuridão tomou conta de tudo. A magia de Anima havia sido investida. A realidade virou sonho.
Quando Colth abriu os olhos, entendeu de imediato o local em que estava. No meio de uma rua pouco movimentada sozinho, não teve dúvidas, reconheceu a avenida principal de Toesane. Arregalou os olhos temendo pelo o que viria.