Volume 1
Capítulo 41: Guardiões de um Novo Tempo
— Ei, garota. Ah, finalmente acordou.
Quando Garta despertou do seu sonho incomum, foi recebida pela voz arrogante já conhecida.
— Você de novo? — desdenhou ela ao responder Bernard, o guardião soberbo do cabelo chamativo.
— Como você é irritante — respondeu ele segurando os insultos mais ásperos diante da mulher ao chão. — Saiba que eu poderia acabar com você, agora mesmo...
— Já chega, Bernard. — Ordenou a líder no fundo da sala.
— Hum. — O arrogante desistiu de Garta e caminhou para longe, de volta ao seu posto original, ao lado dos outros quatro integrantes misteriosos.
— Seja bem vinda, irmã guardiã, Garta — a líder falou em um tom mais cortês. — Peço desculpas pelo guardião Bernard. Ele não possui a fineza que esperaríamos, eu reconheço.
O guardião alvo daquelas palavras virou o rosto desaprovado e arrogante.
Garta se levantou ainda desorientada, pôde entender um pouco mais de onde estava. A líder que mantinha o diálogo estava sentada em um trono rebuscado em meio a mais cinco figuras, a maioria desconhecida. Às suas costas, Edgar estava estirado ao chão em um estado deplorável, continuava a sofrer após as surras violentas. Tanto ele, como a própria Guardiã de Finn, ainda estavam com as coleiras enfeitadas pela pedra de Sathsai sem cor em meio aquele luxuoso salão.
— Quem são vocês? — perguntou Garta analisando as possibilidades.
— Nós somos o futuro — respondeu a líder confiante. — Meu nome é Lashir. Sou a guardiã de Rubrum. E agora, imperatriz desse decadente reino.
— Imperatriz? — Garta finalmente entendeu o que Edgar havia dito sobre o império de Albores ter sofrido uma queda.
— Se apresentem, irmãos — ordenou Lashir aos subordinados ao seu lado.
— Eu começo — destacou-se a pequena garota de vestido camurça mais ao canto esquerdo da sala, a menor e mais nova dentre todos eles, se pronunciou animada como uma criança era. — Meu nome é Dilin. E esse é meu maninho, Mon.
— Mon? — perguntou o gigante apontado pela garotinha, seu próprio nome lhe gerou dúvidas. Com os olhos amarelos chamando mais atenção do que seus próprios músculos rasgados, se conteve entendendo o nome como seu. — Mon.
— Nós somos os guardiões do mundo de Nox, o mundo sem céu. Prazer em conhece-la, Garta. — Sorriu ela animada e delicada.
Garta recebeu o sorriso da garotinha afável do modo mais desconfiado possível. Suas dúvidas só aumentavam.
— Pode me chamar de Índigo — disse o homem ao lado chamando atenção para si, com várias tatuagens à mostra nos braços e um capuz escuro tapando a parte superior do rosto, ele continuou pleno: — Sou o guardião de Véu, o mundo das almas. É uma honra conhece-la, guardiã de Finn.
Novamente Garta se segurava para não responder com o tom mais petulante e desconfiado que podia exercer.
— Hum?! — grunhiu o primeiro rapaz do lado direito da sala ao ser pressionado pelos olhares concentrados sobre si dos colegas. Revirou os olhos soberbos para, então, se apresentar: — Meu nome é Bernard. Sou o guardião de Calis, o mundo morto. Satisfeitos!? — perguntou raivoso para os outros.
— B-Bernard. Não seja tão arrogante. Desculpa, senhorita Garta — disse mais gentil o último da sala. — Meu nome é Hui. Sou o guardião de Anima, o mundo intangível. Muito prazer — complementou amigável o rapaz de cabelos longos acinzentados bem trajado.
— A-Anima?... — sussurrou Edgar derramado ao chão atrás de Garta.
— Cale a boca, Emissário! — berrou Bernard repentinamente selvagem.
O guardião de Calis foi prontamente rechaçado pelos olhos da líder insatisfeita:
— Quanta gritaria. Você me irrita, Bernard — disse a mulher calmamente a se levantar do trono. Caminhou para frente de Garta a passos lentos tremulando a saia de seu vestido vermelho. — Viu só, Garta? Todos aqui são guardiões como você. Todos perderam algo valioso para algum deus desvanecido.
Garta virou o rosto como se negasse a preconcepção.
— Ah, não precisa fingir que não passou por isso — continuou a líder —, é fácil de ver isso. E não por causa de você, é por causa dos deuses. Tudo que eles sabem fazer é furtar a felicidade, é como eles vivem, é da natureza deles. Veja só — Lashir mirou os outros cinco às suas costas —, por exemplo, Dilin teve o seu mundo completamente destruído pelo próprio deus que prometeu servir.
— É sim — concordou a garotinha em feição triste. — Ainda bem que eu tenho meu maninho.
— Compartilhamos da sua dor. — Conclui a líder. Apontou com os olhos para o encapuzado e prosseguiu com fala em direção a Garta: — Se você soubesse o que a deusa Lux fez com a família de Índigo, provavelmente regurgitaria. E eu não preciso nem dizer o quanto você sofreu...
— Não fale como se soubesse — rebateu Garta de imediato. Não se estarreceu com o discurso.
— Eu sei. Sei muito bem — Lashir não recuou. — Todos nós queremos apenas uma coisa que nos foi devida pelos deuses e pelos habitantes de seus mundos.
— Queremos? — A guardiã de Finn ergueu as sobrancelhas em provocação. — Não me lembro de compartilhar os meus desejos com esses esquisitões.
— Sabe do que eu estou falando. Os deuses brigam entre si, conquistam, destroem, subjugam, se divertem com tudo isso, tudo as custas dos guardiões. — A mulher caminhava de lá para cá mantendo a sua postura hegemonia. — Somos apenas ferramentas para aqueles que brincam com suas criações como crianças brincam com suas bonecas.
— Aí. Se vai ficar me enchendo com esse papinho, me faz um favor e me mata logo, tá bom?
— Ah, Garta — Lashir respirou fundo com um sorriso a meio tom. — Eu jamais mataria você, não nessa situação. Você é especial e precisamos da sua ajuda.
— Especial? — Garta utilizou dos cantos dos olhos para acertar Edgar com rebeldia. — Já me disseram isso, e veja como eu acabei. Presa em uma coleira com um monte de gente bizarra ao meu redor.
— Você confiou em um simples emissário que sofre com mentiras de um deus — disse a mulher do vestido vermelho parando mais perto de Garta. — Não é isso, Hui?
— S-sim, senhora... Digo, alteza. O deus de Anima é um grande manipulador que utiliza de seus guardiões e emissários apenas para o caos.
— É disso que eu estou falando, Garta. — Lashir continuou. Apontou para Edgar. — Veja esse pobre coitado emissário ao chão. Foi vítima dos joguinhos entre deuses. Prendeu você e seus desejos longes uns dos outros para não a machucar e não ter de contrariar o seu deus.
— O que isso quer dizer? — ficou curiosa.
— Ele manipulou os seus desejos, Garta. Os reprimiu com o uso de sua magia Anima para que você não o contrariasse ou discordasse, não havia percebido?
— Sim, eu já havia percebido. Mas o que isso tem a ver com um deus? — perguntou a garota acertando o homem ao chão com olhares enojados.
— ... — Edgar respondeu com o silêncio. Estirado ao piso, apenas desviou o olhar arrependido. Em seguida voltou com os olhos em suplica: —Não escute essa...
Lashir apontou a palma da mão rapidamente para o chão e moveu de volta para frente. O homem gemeu em resposta à dor gerada e não conseguiu completar sua frase. Desmaiou.
— Edgar... — Garta apertou os olhos sem compreender os seus sentimentos divergentes de preocupação.
— Não se aflija, Garta. Ele só está dormindo. Emissários tendem a falar demais — concluiu e se virou com o nariz empinado. — Venha, eu quero lhe mostrar uma coisa.
A líder caminhou para a grande porta dupla no canto da sala. Garta ainda preocupada, verificou o estado de Edgar antes de qualquer coisa, ele estava apenas desacordado, respirou aliviada sem saber lidar com a situação. Afinal, estava se preocupando com alguém que desprezava com todas as forças, tirou isso da cabeça, pelo menos temporariamente.
Com a expectativa das respostas crescentes junto as dúvidas, ela seguiu a mulher de vermelho em busca de esclarecimento. Não podia desobedece-la tendo aquele colar apertando o seu pescoço, ele limitava a sua magia. Além disso, haviam mais cinco guardiões contra ela, seria uma derrota acachapante. Desistiu de qualquer intenção de bater de frente com eles e apenas aceitou a direção imposta.
Deixaram o salão para trás. A mulher caminhou por um largo corredor cheio de flamulas e obras das mais diferentes artes aconchegando o ambiente. Mais uma porta dupla, dessa vez para o exterior, foi aberta por dois guardas para que as duas mulheres atravessassem.
A luz do sol incomodou os olhos de Garta. Quando sua visão voltou a se acostumar com a iluminação, vislumbrou a melhor vista da Capital. Não era à toa, o lugar era o centro da cidade principal do império. Aquele era o palácio do imperador, ou melhor, o palácio da nova imperatriz.
— Está vendo esse reino? — Lashir se apoiou no parapeito da grande varanda real utilizada em discursos das festividades do antigo reinado e iniciou sua resposta: — Todas essas pessoas seriam exterminadas pela deusa de Lux, ela está em busca de uma vingança barata ou algo assim. Você sabe, o seu mundo mesmo, foi completamente destruído por ela. Finn era muito mais desenvolvida e promissora do que Tera, mesmo assim, hoje não passa de ruinas de uma civilização antiga.
— Onde quer chegar? — perguntou Garta sendo acertada pelo vento da manhã sereno ao observar o dia a dia da Capital.
O céu azul sobre a parte mais formosa da cidade abastecia os ânimos dos cidadãos das classes superiores que iniciavam apenas mais um dia como qualquer outro.
— Essas pessoas ainda não sabem. — A guardiã de Rubrum colocou seus olhos sobre a população nas ruas. — Mas o imperador deles foi deposto pelo seu próprio exército. Isso aconteceu, pois um líder deve ser superior, não só nas palavras, mas também no seu poderio e modo de viver.
— E, deixa eu ver onde isso vai chegar. Você é essa líder? — caçoou.
— Não só eu. Nós. Guardiões.
— Foi por isso que atacaram a região Norte? — perguntou Garta desdenhando. — Para mostrar o seu poderio?
— Foi justificável, tá bom? É para o bem de todos desse mundo. Estávamos à procura da guardiã de Tera. Precisamos dela. Só assim poderemos impedir a decadência desse mundo que a deusa Lux tanto quer e colocar um fim nesse ciclo de destruição.
— Destruição? Vocês destruíram uma região inteira da cidade. Colocaram pessoas umas contra as outras. Mataram famílias inteiras. — Garta não conteve o seu tom ácido. Com apenas um olho conseguia demonstrar o seu olhar de desprezo completo. — Acabar com um ciclo de destruição com mais destruição, que ideia estúpida. Você não parece uma líder tão competente assim.
— Não entendeu ainda, não é? — perguntou e respirou fundo a bela mulher de vermelho. — Eu escolhi esse mundo para receber a minha piedade e benevolência. Sem mim, ele ruirá. Comigo, se tornará um local para o início de uma nova era. Simples assim. Ou quer mesmo que tudo isso seja destruído por uma deusa insana?
— Está com tanto medo dessa deusa Lux, para alguém que se diz benevolente e...
Lashir não se segurou após mais palavras carregadas de sarcasmo, perdeu a paciência, atirou suas mãos sobre o pescoço de Garta, interrompendo-a. Agarrou o pescoço da garota com facilidade, a ferocidade em seus olhos carmesim colocaria medo até em um deus.
A guardiã de Finn foi surpreendida pela velocidade e pela repentina atitude da, até então, plácida imperatriz. Sua garganta foi tomada pela mão poderosa da mulher.
Lashir aproximou seu rosto ao da guardiã rendida e, com a íris dos seus olhos avermelhando-se ainda mais, rugiu a sua raiva envolvendo Garta:
— Eu não tenho medo de Lux. Eu não tenho medo de nada! — Manteve seu rosto a centímetros da face surpresa de Garta. — Você não sabe o quão cruel, perversa...
Garta sentia os dedos de Lashir pressionando o seu pescoço enquanto o tom odioso dela pressionava a sua bravura, não se precipitou, respirou fundo tentando manter-se distante. A guardião de Rubrum continuou incessante:
— Não sabe o quão impiedosa e terrível Lux foi, é, e será. — Respirou Lashir, pensou, apertou seus dedos ainda mais firmes sobre o pescoço da guardiã de Finn: — Mas eu posso te mostrar...
Garta sentiu seus músculos enrijecerem enquanto Lashir segurava sua gorja com mais ímpeto. A garota sentiu um líquido quente percorrer internamente sua garganta, vindo do fundo do peito, o fluido tomou o interior de sua boca. Sentiu o gosto ferruginoso e teve certeza de que era o seu próprio sangue lhe causando um quase afogamento. Cuspiu o líquido vermelho sem hesitar.
Lashir continuou com olhares furiosos, afrouxou os seus dedos e permitiu Garta respirar, tossir engasgada, e verbalizar o seu espanto:
— O que você... — foi interrompida pela sua própria tosse incansável que não lhe permitia refletir sobre o que estava prestes a acontecer.
Lashir ignorou as palavras, segurou as bochechas da garota com apenas uma mão e aproximou a sua face do rosto ensanguentado dela e, sacando a sua língua para fora da boca ao máximo, pressionou suas papilas gustativas sobre a pele macia da bochecha direita manchada de vermelho.
Vagarosamente, a guardiã de Rubrum lixou parte do rosto da garota com a superfície áspera de sua língua. Limpou o sangue ainda quente da pele carnosa da face de Garta e em seguida fechou a boca degustando o líquido enquanto apontava o seu nariz para o céu.
Garta não teve tempo de estranhar a atitude, muito menos de se enojar com a saliva viscosa que escorria de seu rosto.
A de Rubrum voltou-se aos olhos abismados da guardiã de Finn e, ainda com o restante da ira estampada em seu rosto, se concentrou.
Um flash de luz preencheu a visão do olho solitário de Garta, forçou fecha-lo. Quando tornou a abri-lo, viu um ambiente bem mais escuro do que o anterior. Lashir continuava ali, mas tudo ao redor havia sido substituído.
A mulher bela do longo vestido vermelho se desprendeu de Garta que continuou confusa. Caminhou decidida com os passos leves em meio a sala escura e ergueu as mãos para demonstrar o local:
— Esse aqui é o subterrâneo do palácio.
Garta ainda recuperava o fôlego, mas observou rapidamente o seu arredor para abismar-se. Realmente estavam em uma espécie de porão, uma estrutura completamente construída em grandes arcos de pedras enfileirados que sustentavam o peso da superfície em uma forma de túnel. Iluminado por tochas nas paredes frias da cavidade, o corredor levava até uma porta dupla imensa de metal. Imaginar que um lugar grande como aqueles ainda fazia parte do palácio era difícil, mas não foi isso que causou confusão em Garta:
— Como? Como que...
— Como viemos parar aqui? — interrompeu Lashir. — Ora, magia de Finn. A sua magia de Finn.
—...? — Confusa, Garta se calou tentando compreender.
— Bobinha — foi a vez de Lashir desdenhar —, não reconhece nem o seu próprio poder? Eu explico, usei a magia de Finn que habita o seu sangue.
— Você... roubou o meu deslocamento — concluiu a guardiã em sussurros espantados.
— Não, eu não roubei. Apenas copiei ele, peguei emprestado — complementou a auto intitulada imperatriz, elevou o queixo e se fez pensativa. — Se pudesse de fato roubar a sua magia, não precisaria mantê-la viva e tudo isso seria mais fácil... Argh. — Interrompeu-se rangendo os dentes e levando uma das mãos sobre o peito.
O rosto de Lashir curvando-se diante de uma repentina dor, foi claramente interpretado por Garta. A guardiã de Finn se absteve de perguntar, mas manteve-se observante sobre a mulher do vestido vermelho. Perguntou-se o que causou aquela reação estranha, talvez utilizar a magia de Finn não fosse para qualquer um, acabou por não chegar a uma conclusão plena, a imperatriz já havia se recuperado da dor breve:
— Venha — disfarçou suas dores e se voltou para o fim do corredor. — O que está atrás dessas portas vai fazer você mudar a ideia que possui sobre nós.
— O que tem aí? — perguntou Garta receosa e ao mesmo tempo curiosa.
Lashir colocou suas mãos sobre os puxadores das portas e as empurrou com um sorriso de canto de boca em sua face delineada.
Os olhos de Garta foram preenchidos pela luz azul constante que vinha de dentro daquela sala. Boquiaberta, não conteve:
— Puta merda...
— Isso é o que vai acabar com esse tal ciclo de destruição — continuo com um tom que se mostrava ainda mais altivo e poderoso do que antes. — Essa é a deusa de Tera.