Volume 1
Capítulo 40: Vida Passada Intangível
A casa confortável, a lareira quentinha, o pai sorrindo ao lado da mãe enquanto se divertiam com o seu filho mais novo. Garta se sentia muito bem naquele ambiente, não era por um acaso, aquela era sua casa quando pequena, e passou uma infância feliz até ter seus pais tirados a força numa noite sangrenta.
— Mamãe — sussurrou ao vê-la sentada no velho sofá em risos.
A guardiã sorriu só de lembrar do rosto de sua mãe. Não suspeitou de nada, mas também não possuía qualquer certeza.
— Como é bom te ver, mãe — disse Garta com a nostalgia estampada em sua face. — Mãe?
Esperou pela resposta, mas não veio. Desfez o sorriso sem se arrepender dele.
A porta da frente da casa foi aberta sem anúncios.
— Finalmente eu te achei, Garta. — disse o rapaz ao adentrar a sala e encontrar a guardiã admirando a família.
— Colth? O que você está fazendo aqui? — perguntou ela surpresa.
— Eu usei magia de Anima.
— O quê?
— Agora eu sou um guardião, assim como você. — Apontou para si com um sorriso disfarçado.
— Um guardião? O que você pensa que está fazendo...
— Não se preocupa, é só até acharmos você, a Bertha, e o Aldren. — O rapaz desviou os olhos para mais adiante da sala observando as pessoas atrás da mulher. — Quem são essas pessoas?
— São os meus pais — respondeu Garta ainda em dúvidas sobre as afirmações do rapaz.
— Esse menino é...
— Sim, o garotinho é o Hikki.
Aqueles três ao fundo da sala não sentiam a presença de mais ninguém, estavam totalmente à parte da situação.
— Ah, entendi. É um sonho sobre suas lembranças.
— Sonho? — Garta ficou pensativa, mas não tão surpresa. Continuava observando a sua própria família em um dia comum da sua infância — Bom, isso faz sentido. — Se voltou a Colth: — Então, você consegue entrar nos sonhos dos outros, agora?
— Mais ou menos. Tem alguns pré-requisitos, mas basicamente eu preciso de algo que me ligue ao alvo.
— Por que está falando estranho como a Celina faz? — perguntou a guardiã em tom minimamente ácido.
Sem perceber, Colth deixou seus ombros desmontarem, disfarçou ainda sem a resposta para a pergunta, mesmo assim, respondeu com a verdade de que Celina foi quem lhe passou aqueles “pré-requisitos”:
— Foi ela que me disse isso, então...
— Que coisa mais complicada — respondeu Garta da forma mais entediada que só ela sabia demonstrar. Interrompeu propositalmente e esperou pela mudança de ares do rapaz.
— Nem tanto — Colth manteve o seu tom pensativo. — No seu caso eu usei a pedra de Sathsai que saiu daquele colar que lhe impedia de usar a sua magia.
— A pedra que eu te dei? — pensou alto Garta. — Desse modo é melhor — escondeu o seu verdadeiro pensamento: — Falando nisso... Eu estou com uma coleira igual àquela, nesse exato momento. — Ela levou suas mãos ao pescoço, mas não encontrou o objeto. Confundiu-se: — Eu estava com ela, o que...
— Não esqueça que estamos no seu sonho. Provavelmente, sua mente não adicionou essa informação numa lembrança.
— Entendi... — concordou ela colocando os dedos delicadamente sobre o olho esquerdo em plenas condições. Concluiu que realmente era um sonho.
— A propósito, você está bem? — perguntou Colth ao notar a guardiã novamente observando as lembranças de seus familiares do outro lado da sala.
— Mais ou menos. Um guardião chamado Bernard me deu uma boa surra e acabei sendo aprisionada.
— Onde você está?... Fora desse sonho.
— Eu lembro de estar em uma espécie de cela. Talvez um calabouço ou algo parecido.
— Isso não ajuda muito — pensou alto ele. — O Aldren e a Bertha estão com você?
— Não. Eu os mandei para Finn. E a Celina? Ela está com você, certo?
— Sim. Está tudo bem com ela. Estamos em um tipo de casa de entretenimento adulto na cidade de Tekai.
— Ah, que bom. — Notou atrasada. — Espera, o quê?...
— Longa história. Mas depois disso eu conheci o deus de Anima e ele me ajudou a te encontrar através dos sonhos.
— Anima? — sussurrou Garta para si mesma.
— De qualquer forma, vamos para a Capital te achar, então só aguente mais um pouco.
— Não mesmo. Você tem que proteger a Celina, deixá-la longe de qualquer um e...
— Acha mesmo que eu conseguiria fazer isso? Ela queria ir para a Capital sozinha, não há como evitar isso...
— Não importa. Eu me viro sozinha. Fique com ela, bem longe daqui. Amarre-a se necessário. — Foi mais energética. — Você não pode correr esse risco, entendeu?
O rapaz baixou a cabeça por um segundo, analisou cada palavra, levantou a cabeça decidido:
— Não, eu não entendi — disse confrontador. Surpreendeu Garta de uma forma que a fez se calar. Manteve-se firme em direção à guardiã: — Você está em uma prisão nas profundezas da Capital, e ainda está obedecendo ordens daquele Gerente? Qual é o seu problema? Por que não pensa por si própria e deixa de...
— Não, não é isso — retrucou a guardiã mirando os seus olhos para longe da luz da lareira. — Você estava certo, Colth. O Gerente... O Edgar — corrigiu-se —, ele realmente estava sobre o controle todo esse tempo. Ele me usou, das piores formas que você pode imaginar...
O rapaz, diante dela, permaneceu atencioso. Sentiu que as palavras pesadas sem jeito eram ditas pela primeira vez. Ela continuou:
— Eu roubei, machuquei... matei pessoas por todo esse tempo, Colth. Eu mantive a região Norte da capital sob o controle do temido Gerente por todo esse tempo. Ele me fez o seu exército, me fez o motivo daquelas pessoas sentirem medo, me fez o seu cão de guarda. — A mulher mantinha o seu rosto nas suas próprias sombras. — Eu sou apenas uma visão de Edgar, apenas uma marionete ou uma arma. Nunca fui eu mesma.
Colth franziu as sobrancelhas em um maiúsculo “V”, não se conteve:
— É mentira! Você é uma mentirosa das mais descaradas, Garta!
A guardiã se surpreendeu com o tom de voz áspero e repentino de seu contraponto, mas aceitou as palavras em silêncio absoluto, apenas baixou a cabeça sem mostrar a sua face para o calor das chamas que iluminavam a sala. Colth respirou fundo antes de continuar:
— Vai me dizer que todo aquele cuidado que você teve com os moradores da região Norte, foi o Edgar que estava no controle? — deu um passo determinado. — Jorge, Runa, Oskar, Iara... Tudo isso, foi o Edgar?
— ...
— Não, o Gerente não teve nada a ver com isso, não é mesmo? — mais um passo. — Vai me dizer que foi o Edgar que quis nos salvar no exame de admissão?!
— Ele queria apenas a Celina como guardiã de Tera e...
— E mesmo assim, você salvou o Aldren... e me protegeu. — Respirou Colth com determinação. — Essas são as suas piores mentiras, por que essas você fez a você mesma, Garta. Mas uma em especial, para mim é ainda pior, aquela em que você disse ter feito uma promessa com o seu irmão.
A guardiã levantou a cabeça ao estranhar o quão Colth foi atencioso sobre aquilo. Mais um passo, e o rapaz continuou com as palavras incessantes:
— Você não fez promessa alguma ao Hikki, não é mesmo? Essa promessa nunca existiu.
— Como você...
— “Não machucar ou matar, mesmo que seja necessário.” Não era uma promessa era um sonho.
As chamas da lareira se atiçaram, a guardiã sentiu o calor da luz envolvendo o ambiente. Virou o rosto de volta ao rapaz. Iluminada, sua face estava machucada. No seu pescoço, o colar com a pedra de Sathsai se fazia presente. E, se não bastassem os hematomas, um de seus olhos estava completamente fechado, com um corte profundo que ainda estava a cicatrizar, o outro, apenas deixava uma lágrima sútil desenhar um risco na pele macia.
— Nada escapa das memórias, dos desejos e das ambições, Garta. Nada escapa dos sonhos, não importa o quanto você minta para si mesma. Eu soube disso tudo no momento em que entrei aqui. Agora, dizer que você nunca foi você mesma? Mentira... é mentira! — Um último passo, estavam a centímetros um do outro. — Se isso fosse verdade, Jorge não estaria seguro. Se fosse verdade, Aldren não estaria vivo. Se fosse verdade, eu não teria me...
Se fez calar enquanto a guardiã demorava para processar cada palavra.
— ...?
— O que eu quero dizer é, se você não é como gostaria de ser, então mude. Apenas seja aquilo que você tanto sonha, Garta.
A garota desviou o olhar novamente, sem qualquer intenção de resposta, mudou o tom completamente:
— O quanto você viu dos meus sonhos? — cobrou uma resposta voltando os olhos acirrados para o rapaz que não se surpreendeu.
— O bastante para me convencer de que eu vou até a capital tirar você de... sabe-se lá onde você está, mas eu vou achar e te tirar de lá.
— Eu nunca ouvi tanta bobagem — disse ela forçando uma feição reprovadora, logo voltou a seriedade: — Por que está fazendo tudo isso?
— Para ser sincero, eu acho que...
“Ei garota.” Foi pronunciado em eco. Interrompeu o dialogo gerando estranheza por ambas as partes. Não era uma voz no exterior da casa onde estavam, era uma voz no exterior daquele sonho. Continuou ecoando: “Levanta garota.”
— Acho que alguém está tentando te acordar — constatou Colth.
— É. É o que parece — concluiu Garta com o observar sem direção.
— Certo... Então, está na hora de eu ir.
— Não faça nenhuma besteira — respondeu ela desistente da ordem que proferiu anteriormente.
— Pode deixar e — Colth percebeu o tom de despedida que não queria —, Garta... Toma cuidado.
— Hum.
— He. — Sorriu espontaneamente e em seguida se despediu uma última vez. O ambiente em que estavam simplesmente dissipou-se.
Colth abriu os olhos com os objetivos certos. Levantou e sentou-se na cama em que estava, logo foi encarado por Celina de perto, centímetros à frente de seu rosto a garota não perdeu tempo:
— E então? — perguntou ela ansiosa, mesmo que sua feição não mostrasse isso. — O Aldren? Ele está com a Garta?
— Não, não está — respondeu Colth, logo notou a garota cabisbaixa. — Ele está no mundo de Finn com a Bertha, então não precisa se preocupar.
— Em Finn? — pronunciou-se o anfíbio saltando para sobre a cama. — Isso explica o porquê de não conseguir encontrar esse rapaz. Não é possível encontrar os sonhos ou pensamentos de pessoas que estão em outro mundo.
— Por isso não consegui encontrar o Aldren? — sussurrou Colth. — Entendi.
— Bom, você ainda tem muito o que aprender sobre os conceitos da magia do invasor de sonhos, mas já consegue fazê-lo bem. Impressionante, para um tolo como você.
— Eu não sei se isso foi um elogio — disse levantando uma das sobrancelhas Colth —, mas o aprendizado vai ter que ficar para outro dia. Agora eu preciso pegar o próximo trem para a Capital.
— Finalmente — exclamou aos céus Koza.
— Mas e o Aldren? — perguntou Celina.
— Tiramos a Garta da capital e ela nos leva até Finn — Convincente Colth.
— Tem certeza?
— Sim. Até lá, é possível que o Aldren volte por meios próprios, volte diretamente para a Capital.
— Tá, claro — concordou ela.
***
— Não dá para voltar?!
— Você é surdo, Aldren?
— Você tem que dar algum jeito, Bertha. Não podemos ficar aqui para sempre.
Ambos forasteiros daquelas terras de Finn colocavam as informações conseguidas por Bertha em análise. Ela estava rodeada de livros sentada à mesa espaçosa da biblioteca.
Aldren, ainda se aproveitava de uma muleta para conseguir andar, mas o progresso de sua recuperação estava indo de vento em popa. E junto a eles, na biblioteca revirada da fortaleza Última, o emissário com as pernas acorrentadas os acompanhava e folheava uma das milhares de páginas dos incontáveis livros empoeirados na tentação de acumular conhecimentos.
— Aldren, esse tipo de magia se utiliza de uma energia muito especifica que só a guardiã de Finn, ou o seu deus, conseguem reproduzir. — Bertha explicava em tom superior.
— Ótimo. Estamos em Finn, vamos atrás desse deus.
— Idiota! O deus de Finn está desaparecido, esqueceu? Acha mesmo que esse mundo está nessa situação lastimável com um deus o protegendo?
— Está me dizendo para simplesmente esquecer Tera!? — Aldren exprimiu sua frustação em gritos.
— Ou isso, ou esperar pela Garta.
— Só pode estar brincando. E você está tranquila com isso? — Se demonstrou insatisfeito.
— Não há muito o que eu fazer. — respondeu ela sem grande emoção. — Não há nada o que nós possamos fazer.
— Diz isso por que não tem ninguém te esperando em Tera.
Bertha, de imediato, mostrou os olhos enraivecidos em resposta. Era possível ver o fogo ardendo em suas grandes pupilas. Aldren se calou e ela simplesmente se virou rancorosa para deixar a mesa. Caminhou a passos acelerados para deixar a biblioteca.
O rapaz até pensou ter ido longe demais com as palavras, mas se recusou a voltar atrás. A garota bateu a porta forte assim que passou por ela.
— Pegou pesado — comentou o emissário acorrentado aos livros.
— Não enche, barbudo. — Aldren sentou-se à mesa cheia de papeis.
— Meu nome é Caio, sabia? E eu só estou com essa barba graças a minha estadia aqui. Não me emprestam nem uma navalha para diminuir essa coisa grudada na minha cara.
— Fu. — Suspirou fundo o rapaz de muleta tentando esquecer a situação anterior. — Me diz, Caio. Acha mesmo que não há outra forma de fazer isso?
— Eu poderia usar uma faca com um bom corte, mas deve ficar horrível, além disso é perigoso.
— ... — Aldren apenas balançou a cabeça e o reprovou com os olhos.
— Tá falando de voltar para Tera, né? Foi mal. — O emissário finalmente se dispôs a responder à pergunta. — Esses livros possuem muita coisa, Aldren. Mas nenhum deles cita qualquer possibilidade de deslocamento entre mundos sem possuir as energias do deus de Finn, ou melhor, a magia de espaço.
— Entendi... — desistiu momentaneamente cabisbaixo. — Você não parece se importar muito.
— Bom, eu perdi tudo há algum tempo atrás, fruto da minha ambição. Quando você aposta alto não tem volta, sabe? Fiquei preso tempo o suficiente para entender que estou melhor aqui, do que estaria em Tera.
— Você está acorrentado e obrigado a ler um monte de livros. O que poderia ser pior do que isso?
— Bom, eu gosto de livros. E há muito tempo que eu não fico tão livre, quanto agora.
— ... — Estranhou Aldren apenas com olhares.
— Acha mesmo que eu queria ataca-los? Lá no exame de admissão da Defesa, eu estava apenas cumprindo ordens. Se não o fizesse, eu sofreria pelas amarras de um pacto que fiz com um deus. Acredite, essas correntes aqui em meus calcanhares são confortáveis, quando comparadas as correntes de um pacto divino.
— Estava só cumprindo ordens?
— Exatamente. Eu nunca quis machucar ninguém. Eu não tenho motivo algum para isso. Mas enfim, não preciso mais me preocupar com isso. Desde que a Garta me trouxe para cá, as amarras do meu pacto não estão mais me apertando. É como se o pacto não tivesse validade aqui, ou o deus não possui poderes que atravessem os mundos, vai saber.
— Entendi. Mas então?
— Eu estou em um lugar ótimo, tem boa comida e pessoas gentis. Sinceramente, não reclamaria se tivesse que passar o restante da minha vida por aqui. Só a cama que tinha que dar uma melhorada. — Caio esticou a coluna e se alongou ainda na cadeira com os pés acorrentados. — Aquele colchão de palha vai me dar um baita problema nas costas. E uma navalha. Eu realmente preciso de uma navalha.
— Então, o seu plano é passar o restante da vida preso aqui? — Aldren perguntou franco.
— Eu não disse isso. — O homem com a barba por dias a fazer negou com a cabeça antes de mostrar um olhar determinado. — Eu quero recomeçar aqui. Quero ganhar a confiança das pessoas e mostrar que estou disposto a cooperar com elas. Uma nova vida em um novo mundo. Qual fracassado não sonharia com isso?
— Recomeçar?... Realmente, não parece tão ruim.
— E não é. Você já deve saber que existe um vilarejo nas redondezas da fortaleza. Esse é o último vestígio de civilização desse mundo após a guerra com a tal Lux. Sabe o que isso significa?
— Muita floresta e ruinas por aí a fora?
— Exatamente. O que significa uma possibilidade quase que infinita de expansão e descobrimentos. Você não fica animado com isso, sério?
— Bom... — hesitou Aldren. — Eu não tinha pensado dessa forma ainda. É bem promissor, se comparar com a barbárie e a crueldade de Tera.
— É disso que eu estou falando. Pode parecer que nós perdemos o nosso mundo, mas não. Nós ganhamos um mundo inteiramente novinho e que ainda não foi estragado por essa crueldade.
— Hum. — Aldren realmente estava se convencendo daquilo, mas fez questão de tirar o pensamento da cabeça se esquivando. — De qualquer maneira, continue procurando alguma possibilidade para voltarmos até Tera. Se conseguir isso, eu te arrumo uma navalha.
— O que é isso? Você é algum deus com pactos inúteis? — caçoou o emissário.
— Só faz o seu trabalho, tá legal?
— Sim senhor, chefe.
— Aff.
O rapaz, com auxílio da muleta, deixou a biblioteca. Solitário, Caio voltou os olhos aos livros e continuou com a sua investigação.