Volume 1
Capítulo 35: Sobrevida
O rapaz abriu os olhos com alguma dificuldade, o sono pesado disputava a atenção com as intensas dores por todo o seu corpo. Ao observar o ao redor, vislumbrou um quarto enorme, o teto sobre a sua cabeça parecia estar quilômetros distantes, na sua superfície uma pintura realista dava forma a um tipo de criatura, um lagarto enorme que se estendia por toda a cobertura do cômodo.
— Onde eu estou? — sussurrou seu pensamento.
Levantou apenas a cabeça do travesseiro plumado e, imediatamente, teve que comprimir os olhos ao serem acertados diretamente pela luz que adentrava da grande janela. Aquele lugar era tão grande que podia ser digno da morada de um monarca.
— Vo-você acordou? — disse uma voz pouco familiar ao lado cama.
Nitidamente a fala vinha de um garoto que, ao notar a reação do combalido, fechou o seu livro e se levantou surpreendido da cadeira em que estava.
— Espera! Não se mexe, eu vou chamar ajuda. — O jovem preocupado correu para a imensa porta do quarto enquanto gritava por ajuda. Sua voz ecoava pelo corredor com força: — Ele acordou! O Aldren acordou!
— O que está acontecendo? — sussurrou os seus pensamentos novamente, dessa vez solitário no quarto
Tentou se ajeitar e ficar sentado na luxuosa cama em que se encontrava. A dor penetrou a sua barriga e o fez gemer pelo esforço, não desistiu, continuou a se esforçar com absoluta dificuldade para um simples ato.
— Espera! Não, não, não... — A mulher em vestes de empregada ordenou preocupada ao cruzar o quarto e se aproximar da cama.
Ela colocou as mãos macias sobre o peito nu do rapaz e o empurrou com delicadeza para de volta a cama.
— Se fizer isso, vai acabar abrindo os seus ferimentos de novo. — Seu tom era tão macio e reconfortante quanto a superfície da cama.
— Ele já acordou!? — Outra voz feminina adentrava ao quarto.
— Eu falei... — respondeu o garoto seguindo as duas.
— O que... O que aconteceu? — Aldren se esforçou para que suas palavras fossem mais do que um sussurro.
— Eu achei que você é quem fosse nos responder isso. — rebateu a segunda mulher. Bertha se mostrava feliz pela recuperação do rapaz, mas era nítido a sua sede pelas respostas.
***
— Está me dizendo que um guardião impediu a fuga da Garta, e o máximo que ela conseguiu fazer, foi te mandar para cá com todos esses ferimentos? — Bertha revisava a história recém contada por Aldren.
Após uma hora do seu despertar, o rapaz já havia se alimentado de algumas frutas frescas colhidas do jardim da fortaleza Última e finalmente estava conseguindo se lembrar das suas últimas memórias.
Ele acenou positivamente, enquanto mantinha as suas costas na cabeceira da cama, para responder à pergunta da inventora curiosa.
— Esse tal guardião realmente devia ser forte... — concluiu ela sentada em meio aos outros dois que acompanharam a história.
A empregada dobrava alguns panos usados nos ferimentos do rapaz, já o garoto Hikki, não perdeu a oportunidade de perguntar sobre a sua irmã:
— Mas ela está bem né, Aldren? A Garta está bem?
— E-eu não sei. — desviou o olhar para os ferimentos enfaixados na sua barriga.
— Se me permite, senhor Hikki — a emprega pediu a palavra ao notar a desesperança tomar conta do rosto do garoto. — Garta foi forte o suficiente para ajudar esse rapaz, tenho certeza que ela foi forte o suficiente para se manter em boas condições.
— Obrigado. — Hikki não pareceu agradecido. — De qualquer forma, ela ainda não voltou e não temos como ir lá, ou mesmo nos comunicarmos com o mundo de Tera. E o Aldren só sobreviveu por um milagre e por conta das suas incríveis habilidades medicinais, Liz.
O baixar de cabeça de Hikki pontuava as suas palavras. O silêncio tornou-se prevalente por um instante antes que Aldren tentasse voltar atrás em suas palavras:
— Também acredito que a Garta esteja bem.
A empregada o olhou gratificada, entendeu o que o rapaz tentará fazer. Ele voltou a se pronunciar, dessa vez com tom mais ameno em direção à empregada:
— Então foi você, Liz? Que cuidou dos meus ferimentos? Eu agradeço os seus cuidados. Se não fosse por sua causa, eu provavelmente estaria morto... Obrigado. — O rapaz sorriu simpático, como só ele sabia fazer, realmente agradecido.
— Ah... — A mulher surpreendida teve suas bochechas coradas e os olhares desviados. — Não precisa agradecer.
— Eu não quero atrapalhar a sua recuperação... — Bertha interrompeu o sorriso do rapaz. — Mas eu preciso que saiba de uma coisa.
— O que foi? Pode me dizer qualquer coisa. — Aldren prestou os seus ouvidos e sua atenção.
— Eu fiz umas pesquisas e... — A garota baixinha se levantou da cadeira antes de se abaixar para alcançar algo debaixo da cama. Quando retornou, colocou um livro de capa dura imenso sobre as cobertas, ao lado do rapaz debilitado, e continuou a sua resposta: — Descobri algo nesse livro que diz respeito a benções de deuses.
— E então? — Aldren levantou uma das sobrancelhas sem entender onde Bertha queria chegar.
Ela abriu o livro de páginas amareladas pelo tempo e encontrou uma com escritas excêntricas.
— Aqui diz que, um guardião está preso a vontade de seu deus, até o final de sua vida. Após selarem um pacto, deus e guardião estão conectados.
Tanto Liz quanto Hikki se levantaram de suas cadeiras para colocar os olhos no livro, ambos se mostravam surpresos e mantiveram o silêncio admirado.
— Conectados? — Aldren demonstrava a sua confusão com o balançar de sua cabeça.
— Estou dizendo que a Celina, provavelmente, está presa a vontade da deusa de Tera. Não esqueça que ela é a guardiã. — A garota inteligente brandia suas palavras afobadas e empolgadas, folheou o livro algumas vezes para chegar até a uma página especifica. Mais escritas singulares e uma única imagem borrada do que parecia um pássaro com grandes asas abertas em voo. — Aqui diz que a deusa de Tera desafiou a deusa Lux. Sabe o que isso significa?
— Não... Eu não faço a mínima ideia.
Os olhos da garota brilharam com a oportunidade de mostrar o seu conhecimento recém obtido.
— A deusa de Tera está viva. Só assim poderia ter selado um pacto com Celina.
— Mas Celina não fez pacto nenhum. Ela teria me dito se... — Aldren finalmente foi atingido pela surpresa e pelo entendimento das palavras. — A não ser que...
— A não ser que alguém tenha feito o pacto por ela — disse Hikki interrompendo, convicto de suas palavras, apertou os olhos. — Foi o que aconteceu com a minha irmã.
— A Garta? — estranhou Aldren, franziu o cenho. — Ela nunca falou disso. Manteve em segredo... não! Mentiu para nós e...
— Ela não sabe — Hikki interrompeu novamente —, eu acho.
— Como assim, você acha?
— Eu não sei. — O garoto desviou os olhos. — Ela parece nunca conseguir falar sobre isso. Sempre fica distante quando entramos nesse assunto. Talvez, seja algum termo do pacto, ou eu sei lá.
— Bertha, isso é possível? — Aldren não escondeu o seu duvidar, se virou para a garota esperando uma resposta resoluta.
— Ah, bom... — A baixinha tentou manter a compostura mesmo após ser repentinamente alvo de todos os olhares. Se estamos falando em pacto, é possível que haja cláusulas e termos que devem ser seguidos, é isso que eu acho.
— Entendi. — Aldren cedeu. Baixou a cabeça e, em seguida, cerrou os seus punhos com raiva e sussurrou rangendo os dentes: — O miserável do Buregar.
— O burguês de Rasuey? O que tem ele? — se interessou Bertha.
— Agora tudo faz sentido. O filho da mãe usou a Celina. Tentou usar o sangue dela para manter viva a sua esposa. Achou que as habilidades da guardiã o ajudariam.
— Não é de todo errado. O sangue de Celina realmente teria algum resquício da magia de Tera. — concluiu Bertha. Foi novamente atingida pelos olhares de todos, dessa vez estavam confusos. Tentou esclarecer, apontou as palavras incompreensíveis do livro: — Bom, aqui no texto eles chamam as habilidades de magia. “Magia de Tera”, esse é um bom nome?
— Calma aí. — Hikki interrompeu o diálogo em averiguação. — Bertha, você consegue ler esse livro?
— Bom, foi um pouco confuso no começo, mas o mendigo preso na masmorra me ajudou com alguns aspectos da tradução.
— Está falando do emissário que atacou a Garta no exame da Defesa? — perguntou desconfiado o garoto.
— Quem foi atacado, fui eu — corrigiu Aldren carregando o seu ego. — Ele me derrubou com apenas um soco, esqueceram?
O rapaz na cama em reclamação foi ignorado por todos.
— Essa língua está morta, ninguém consegue ler. — Liz adicionava a informação ainda surpresa pela capacidade da garota recém chegada conseguir entender aquele idioma.
— Sim, por isso pedi ajuda ao emissário com a habilida... magia. — respondeu Bertha desafiada.
— Você estava falando esse tempo todo com um prisioneiro? — Hikki manteve-se incrédulo. — Eu deveria coloca-la atrás daquelas grades com ele, por conspiração.
— Vocês deixaram um homem com magia de aprendizado preso, enquanto possuem uma biblioteca com conhecimento de centenas de anos indecifrável — Bertha expunha a sua indignação como protetora da sabedoria e das descobertas. — Eu não tenho palavras para descrever o quão idiota isso é.
— Magia de aprendizado? — perguntou Aldren, novamente passava despercebido. — Que coisa mais estranha.
— Nenhum conhecimento vale a ajuda de um inimigo — explanou Hikki energético.
—Ah! Vale sim — discordou Bertha.
— Você vai ser presa por me desrespeitar — retrucou ele.
— E quem é que te colocou no comando, para você precisar de todo esse respeito?
— Quem me colocou no comando? Eu sou o irmão da guardiã desse mundo, esqueceu?
— Grande coisa, não passa de uma criança mimada.
— Já chega! Eu dei abrigo a você até agora, e é assim que me agradece?
— Você não me deu nada. Sua irmã e as pessoas que moram por aqui é que me fizeram esse favor.
— Ora, sua...
— Um acordo! — Liz expôs o seu pensamento sufocado de uma só vez.
A empregada se colocou em meio a batalha de egos abruptamente, em seguida, se encolheu no meio de seus próprios ombros já se arrependendo.
— Hã? — Simultâneos, os dois que discutiam se viraram para a empregada temerosa.
— A Liz tem razão. — Aldren interferiu ao notar o desconforto da mulher sob os olhares em chamas dos dois ferozes. — Um acordo que beneficie os dois lados.
— Que tipo de acordo? — Hikki perguntou ao cruzar os braços e dar as costas a Bertha.
Liz engoliu seco, desviou os olhos por todo o cômodo querendo desaparecer. Mas antes que desistisse de sua concepção, achou os olhos de Aldren, foi envolvida por eles. Esperançoso, o rapaz ferido na cama, implorou a encarando.
— O-o e-emissário — gaguejou Liz, mas se manteve firme após achar a força de vontade necessária naquele olhar. Prosseguiu: O emissário ajuda a Bertha com a leitura dos livros. E ela nos ajuda com os seus conhecimentos enquanto estiver por aqui.
— Não mesmo! — Hikki continuava enfurecido.
O garoto deu a volta na mulher com os olhos julgadores sobre ela. A encarou mais de perto e a obrigou dar um passo para trás até encontrar a cama que a impediu de recuar ainda mais — O mundo de Finn não ganharia nada com isso. Além disso, eu não pedi a sua opinião, Liz. Não pedi a opinião de ninguém. — Se virou mirando Bertha com as últimas palavras.
A empregada baixou a cabeça e, por um instante, o silêncio do quarto fez parecer que a discussão havia acabado. Mas antes que isso, de fato acontecesse, Liz sentiu algo lhe empurrando às costas.
A mão de Aldren aqueceu a região dos ombros da empregada de modo a lhe chamar atenção.
— Continua — sussurrou o rapaz ao receber o olhar de Liz surpresa.
Ele a empurrou levemente, fraco ao ponto de ninguém mais notar, mas o suficiente para desprender as palavras da mulher de uma só vez:
— Você está desperdiçando uma oportunidade.
— O que você... — Hikki se surpreendeu com a audácia da empregada.
— Me desculpe, senhor. Mas essa é uma excelente oportunidade para recuperarmos os conhecimentos perdidos pela guerra com Lux. — Liz mantinha a cabeça baixa e usava de toda a sua coragem para não gaguejar. — Temos centenas de livros com conhecimentos, cultura e tecnologia que podem ser usados para o bem do nosso povo. Tanto a Fortaleza Última, como a Vila Última, se beneficiarão do conhecimento que pode ser destrancado com a habilidade do prisioneiro e a experiencia da Bertha como inventora. Podemos até encontrar um jeito de fazermos contato com Tera e a senhorita Garta.
— Liz...
— Por favor, senhor. Aceite essa possibilidade, pela prosperidade do mundo de Finn. — Liz não desviou o seu olhar, nem por um instante, do rosto tenso de seu patriarca.
Os olhos da empregada estavam úmidos e cheios de convicção, finalmente foram desviados após o suspiro pensativo de Hikki.
O silêncio pareceu durar mais do que a realidade, todos no quarto esperavam pela resposta enquanto observavam o garoto reflexivo.
— Que seja — acatou. — Mas esse emissário não sai da biblioteca.
Após a condicionante do garoto, todos se olharam sem grandes comoções. Liz e Aldren pareciam os mais contentes.
— Hum! — Bertha concordou apenas dando de ombros e, em seguida, caminhou em direção a saída do quarto. Seu sentimento era nebuloso, mas com certeza, era de seu agrado o fim das negociações.
— Obrigado, senhor Hikki — agradeceu Liz, exausta como se tivesse participado de uma briga.
— Espero que isso seja realmente o melhor para nós — esquivou-se dos olhos cheios de sonho da empregada. Se voltou ao rapaz na cama: — E você, Aldren. Se recupere logo, quero meu quarto de volta o quanto antes.
Hikki concluiu ranzinza a sua despedida e caminhou para fora do quarto de forma pomposa.
Assim que o garoto deixou o cômodo, Liz desabou os seus ombros e respirou fundo antes de se voltar ao rapaz na cama:
— Obrigada.
— Não precisa agradecer, foi você quem fez tudo. — Aldren ficou pensativo. — Mesmo assim, é um pouco estranho...
— O que é estranho? — perguntou ela.
— Apoiar alguém. Sinto que fiz isso várias vezes, mas essa foi a primeira que realmente deu resultado. Bom, de qualquer maneira, fico feliz que tenha dado certo. Você foi muito bem. — Aldren sorriu brilhante.
— Obrigada... — A mulher desviou o olhar novamente deixando o seu rosto corar-se. Caminhou de costas para a porta em despedida: — Eu preciso ir... Quer dizer, não ir embora, pois eu vou estar aqui se precisar de mim — ficou ainda mais vermelha percebendo que o que havia dito podia ter sido mal interpretado — Ah! Eu não quis dizer isso de uma forma tão indecente. Só disse isso, porque eu trabalho aqui, então eu vou ficar por aqui... Ah, o que eu estou falando? Com licença... — se despediu em tropeços.
— Garota engraçada — sussurrou Aldren em riso discreto ao bater da porta. Voltou a estar solitário no quarto.
Antes de voltar a se deitar, para continuar com sua recuperação, observou o livro aberto ao seu lado deixado por Bertha.
— Hã? Um pássaro em uma gaiola? O que isso tem a ver com a deusa Tera? — se perguntou analisando a imagem desbotada.
***
— Não. Nada — disse Colth abrindo os olhos após se concentrar ao máximo e ter seu objetivo de encontrar o amigo frustrado. — Eu consigo encontrar o caminho dos sonhos, mas, por mais que eu tente encontrar o Aldren, não consigo.
— ... — Celina levou os seus olhos ao chão do quarto que servira como pousada sem se pronunciar.
— Não esmoreça, minha guardiã. — disse Koza alentador. — Aposto que isso é culpa do fedelho de Anima. — conclui evocando seus olhos negros à Colth.
— Ah, não coloca a culpa em mim, não — esquivou-se o guardião de Anima. — Eu fiz o mesmo que me ensinou, senhor sapo. Me concentrei, encontrei o caminho dos sonhos, mas quando procurei pela ligação de Aldren, não estava lá.
— Hum? — Celina manteve sua cabeça baixa, mas dessa vez tinha o seu polegar sobre os lábios como de costume.
— Não se preocupe, minha guardiã. — Koza manteve-se cativo da superior. — Eu tenho certeza que deve ter uma explicação para isso e...
— E se Aldren não estiver em Tera? — Celina voltou a levantar a cabeça com os olhos resolutos. Surpreendeu o emissário, mas não Colth, o rapaz sorriu sereno conhecendo aquela garota teimosa. — Garta possui a habilidade... ou melhor, a magia do espaço, não foi isso que você disse, Koza?
— Sim, minha excelência.
— Então, é possível que Aldren esteja em outro mundo. Por exemplo, o mundo de Finn. Afinal, é um mundo que ela já conhece. Penso que, com todos esses ataques na capital, Garta deve ter o deslocado para outro mundo. Aposto que está com a Bertha e com os outros da Fortaleza Última.
“Como esperado de Celina. Persistente e brilhante.” Pensou Colth ao aceitar a conclusão da garota como verdade. Virou seus olhos para Koza, ao seu lado, para então interromper a admiração do animal:
— Você é um emissário de sorte, sapo. Possui uma guardiã única.
— Hã? — A criatura fechou a boca ao voltar a realidade. Disfarçou sua comoção. — Eu já disse para não me chamar assim. Eu nem sou um sapo!
— Claro, claro... — Colth deu de ombros. — Já que Aldren está de férias em outro mundo, talvez possamos tentar os sonhos de Garta.
— É o que eu iria sugerir. — Celina assentiu a proposta.