Volume 1
Capítulo 12: Não Convidados
— Eu vou na frente. Traga o seu convidado também, Garta. — disse o Gerente determinado com o tom exigente. —Teremos um jantar muito farto.
— Sim, claro, Gerente — respondeu ela baixando a cabeça.
O homem experiente e intimidador virou as costas e saiu tranquilamente do cômodo.
Colth se incomodou imediatamente com a mudança de postura repentina da guardiã. Aldren e Celina também perceberam.
— O que foi isso?
— O quê? — A mulher disfarçou precariamente.
— Ele não sabe, não é? O Gerente não sabia que eu estava aqui. Você estava me mantendo escondido. — Colth tentou ser sútil, mas o tom em cobrança era inevitável.
— Bertha! — Garta cerrou os dentes e demonstrou um olhar enfurecido para a garota no canto da sala.
— Desculpa. — O arrependimento dela era minúsculo. — Eu deveria ter te avisado, mas eu acabei ficando entretida com a criação do...
— Ah! Tanto faz — interrompeu Garta, minimamente mais calma. — Agora já é tarde.
— Pode me dizer pelo menos quem é esse cara? — Colth deixou claro a sua falta de paciência.
— O Gerente é quem dá as cartas por aqui — Bertha se intrometia sem notar. — É ele quem manda em toda região Norte. Como posso dizer... Ele controla as coisas por debaixo dos panos.
— O quê? — Aldren se surpreendeu, assim como Colth. — Espera aí. Você quer dizer que nós estamos prestes a jantar com o chefe das sombras do Norte?
— Sombras do Norte? — Colth se manifestou esperando respostas.
— Sim. — Aldren arregalou os olhos e, em um tom apavorado enquanto agarrava os braços de Colth, continuou. — Um velho criminoso que nunca foi achado. Ele liderou um pequeno grupo de assassinos que cometeu diversos crimes. Hoje, vive escondido... E se, o jantar for a gente? E se...
Colth não evitou que o medo do colega lhe atingisse, em meio ao desespero exacerbado de Aldren, procurou respostas em Garta.
— Não é, exatamente, isso — a guardiã respondeu oscilante.
— Não é? — Colth esperava pacientemente pelas respostas.
— Não acredita nela, Colth. Essas pessoas não são confiáveis. — Aldren continuava com o seu tom covarde, ninguém deu ouvidos.
— Bom. Você já conheceu boa parte desse grupo, Colth... Pode tirar as suas próprias conclusões.
— Já conheci?
— Sim. Runa e Oskar.
— Inclusive. O Gerente não sabe que você está ajudando-os também, né? — disse Bertha ao guardar suas ferramentas.
— Bertha! — Novamente a postura raivosa de Garta era emanada.
— Qual é o seu problema? Precisa mesmo guardar segredo de todos, sobre tudo? — Aldren demonstrou o seu olhar mais julgador.
— Ah! — Garta fechou os olhos enfurecidamente para se acalmar. — Escutem, vocês. O Gerente é complicado. Ele é bem rígido e tem um jeito único de fazer as coisas. Então, nada de fazer perguntas ou contraria-lo. É melhor irmos, ele não gosta de esperar.
O restaurante permaneceu fechado ao público, apenas uma grande mesa era ocupada no salão de tantas outras. Garta, Colth, Aldren, e Celina, acompanhavam o homem sentado a cabeceira da mesa como um verdadeiro anfitrião.
O Gerente saciava a sua fome com os pratos chiques que os garçons traziam incorporando todas as etiquetas necessárias. Despreocupado e confortável em seu lugar, o homem era constantemente alvo de olhares curiosos e, ao mesmo tempo, receosos dos outros a mesa.
Colth tentava ao máximo apreciar a ótima comida ou, pelo menos, passar a impressão de que estava apreciando. As trocas de olhares nervosos com os outros colegas era inevitável. A tensão chegou a outro patamar, quando o Gerente colocou os seus talheres sobre o prato, mostrando a sua satisfação, de imediato, os garçons retiraram, não só o prato vazio do homem, mas todos os outros.
— Eu ainda não acabei... — Aldren tentou contestar, mas o garçom simplesmente não deu ouvidos, levou a deliciosa refeição que ainda estava pela metade. O rapaz desistiu do seu filé quando percebeu o ambiente tenso se tornar ainda mais pesado nos rostos dos colegas.
— Então, essa é a guardiã de Tera? — O homem apontou o seu nariz para as duas garotas do lado esquerdo da mesa.
— Exatamente, senhor — Garta dizia em tom exacerbadamente respeitoso. — Essa é Celina Buregar, ela veio de...
— E você ainda não descobriu a habilidade que ela carrega?
— Nós fizemos algumas tentativas, mas ainda não conseguimos encontrar nenhuma pista do que poderia ser. — respondeu Garta baixando a cabeça humildemente, suava frio.
— Hum. Você sabe que isso é importante, não? — O tom do Gerente era sério ao colocar ambos os cotovelos na mesa e encarar a mulher. — Eu preciso que você consiga descobrir essa habilidade.
— Sim, me desculpe. Nós estamos tentando e...
— Já chega! Pare de se desculpar. — O homem subiu o tom interrompendo as palavras de Garta. Em seguida, respirou fundo de modo a apreciar o odor do salão ao erguer o nariz. Voltou a encarar Garta e continuou com o tom mais sútil, ainda ameaçador. — Nós não precisamos de desculpas, nós precisamos da habilidade da guardiã de Tera.
— Sim, eu sei — respondeu ela baixando a cabeça ainda mais em respeito. — Trabalharei com mais empenho.
— Mais empenho? — O gerente inclinou a cabeça e levantou uma das sobrancelhas. — Garta, querida. Você me traz uma guardiã sem habilidades, desaparece por vários dias, esconde esses dois. — apontou para Colth e Aldren que se mantinham calados — E me diz que vai trabalhar com mais emprenho?
— Desculpe, senhor. Não vai aco...
— Eu já disse para não se desculpar! — As veias do rosto do homem dilataram e sua feição tomou um tom vermelho enfurecido. — Você é uma guardiã. Pare de agir como uma criança.
—...
O Gerente respirou fundo novamente, coçou os olhos com exaustão e então voltou ao tom ameno anterior.
— Você sabe que eu não faria nada com você. Nada. Mas com esses outros dois...
Enquanto o homem com suas palavras pausadas intimidava Garta, Aldren e Colth engoliam seco e seguravam a respiração para não serem notados.
— Não. — Garta se levantou da cadeira aflita. — Por favor, não precisa se preocupar. Tenha essa habilidade como certa.
— Hã? — O Gerente foi surpreendido pela atitude, chacoalhou a cabeça negativamente e continuou em tom mais sereno: — Tanto faz. Só não vá morrer para proteger gente ralé desse tipo.
O homem se levantou e ajeitou o seu terno olhando nos olhos de cada um em silêncio. Em seguida, se virou e caminhou em direção a saída do restaurante.
— Da próxima vez que eu a encontrar, quero ver essa garota com sua habilidade. Até lá, se livre desses aproveitadores — disse o homem deixando o local.
Garta mostrou reverencia em reflexo. Os restantes à mesa ficaram em mudos por mais alguns instantes. Aquele homem tinha uma presença intimidadora que persistia até após a sua retirada.
— É bom vocês dois voltarem para o apartamento. — Garta quebrava o silêncio estabelecido.
Colth deu espaço para o seu estranhamento que o corroía há algum tempo. “A Garta parece até uma outra pessoa perto desse cara.” Pensou antes de realizar a pergunta:
— O que esse homem fez para...
— Só, façam o que eu mando! — respondeu ela irritadiça. Respirou fundo se acalmando. — Eu e a Celina teremos uma noite longa para... Vocês sabem, descobrir essa maldita habilidade.
— Tá. Claro — assentiu Colth receoso.
O mesmo foi feito por Aldren, com um pouco mais de resistência e, após uma troca de olhares tensa entre eles, deixaram o restaurante rumando para o outro lado da praça.
***
— Eu não faço ideia de como fazer as suas habilidades aflorarem — disse Garta em tom preocupado ao sentar no sofá do centro do cômodo acima do restaurante, apenas ela e Celina estavam presentes ali. — Já tentamos de tudo, começo a achar que...
— Que você não é uma boa instrutora?
— Hã? — A guardiã de Finn não escondia o seu aborrecimento. — Você não economiza palavras, não é mesmo?
— Penso que, escolher palavras, apenas para agradar o meu ouvinte, é uma simples perda de tempo.
Garta não escondeu o seu olhar confuso e julgador sobre as palavras de Celina.
— Ai, garota, como é possível você ser tão sem noção?
— Eu não entendi. O que quer dizer com isso? — perguntou a mais nova, verdadeiramente em dúvida.
— Aff. Esquece isso — chacoalhou a cabeça — Sobre as suas habilidades, definitivamente eu não sou o problema. Sem dúvidas, com tudo o que já tentamos, suas habilidades já teriam se manifestado.
— Então, eu sou uma guardiã inútil? — perguntou Celina em um tom neutro, mesmo que suas palavras fossem um tanto agressivas consigo mesma.
— Não. Por que diz isso? — estranhou.
— Eu não sei. Eu já ouvi isso algumas vezes. — A sinceridade de Celina era tão fria quanto o sentimento de solidão que a noite silenciosa trazia.
— Você não é inútil. — A moral de Garta não deixou ela dizer o contrário. — Escuta, que tal nós deixarmos isso de lado, apenas por hoje?
— O Gerente não ficaria bravo com você? Ele pareceu rígido.
— Sim. Tem razão. — pensou por um segundo, até que esboçou um sorriso conclusivo. — Então, que tal eu te ensinar a atirar?
— Eu não entendo, qual seria a relação disso, com as possíveis habilidades de guardiã?
— Relação? — A mulher desviou o olhar pensando em uma resposta. — Ah, claro. É importante uma guardiã saber se defender bem. Desse modo, é meu dever te ensinar, já que você será minha aliada.
— Entendi. Faz sentido. — Celina calculava os argumentos da mulher que tentava convence-la. — Além disso, você realmente pareceu atirar bem, durante os exames do ministério da Defesa. Com exceção do último disparo.
— Eu já disse. Foi apenas um desvio de atenção. — Garta apontou a palma da mão para Celina e, em questão de um flash de luz, ambas estavam em um local totalmente diferente.
Sobre uma grande laje de pedra, com o Sol raiando quente sobre suas cabeças. A guardião de Finn caminhou até algumas caixas de madeira próximas a parede de ardósia no final do que parecia um mirante em meio a uma bela vista natural cercada por montanhas. De uma das caixas, retirou um velho mosquete de pólvora.
— Que lugar é esse? — perguntou Celina observando o horizonte.
— Aqui é o mundo de Finn. Vem, eu vou te ensinar a atirar.
— Tudo bem. — Celina assentiu e seguiu os passos da sua instrutora.
— Já fez isso alguma vez? — Garta entregou a arma nas mãos da garota.
— Não. Nunca. Eu só vi como faz em um vade-mécum.
— Um, o quê? — estranhou com todas as forças.
— Um livro manual — explicou Celina. — Achei que você gostasse de livros. Estava tão entretida com um, quando te conheci.
— Ah, aquilo? — recordou-se do pequeno livro de capa verde que havia entregue ao irmão. — Não, eu só estava passando o tempo. O meu irmão é quem gosta dessas coisas.
— Entendi.
— Certo. Agora, aqui — Garta chamou a atenção da garota para o mosquete. — Tá vendo aquela garrafa sobre a mesa, próxima àquelas tábuas encostadas na parede? Tente acerta-la. Não se preocupe, eu vou te ajudar. Essa parte chama-se soleira. Coloque-a de leve na região do seu ombro e...
Celina se lembrava perfeitamente da teoria do livro manual do atirador que havia lido em um dos seus infinitos dias de solidão.
Garta se surpreendeu. Antes mesmo de suas instruções, a garota já havia realizado os movimentos de forma exemplar. Ela narrava os seus movimentos como se estivesse seguindo as instruções do livro:
— Alinhar a alça com a massa de mira, respirar lentamente enquanto relaxa os ombros, e então... — Celina puxou o gatilho ao término de sua fala.
A garrafa sobre uma velha mesa, a alguns metros da atiradora, não sofreu danos, ao invés disso, um buraco surgiu nas tábuas de madeira encostadas logo atrás do vidro verde intacto do vasilhame.
— Ah? — Garta novamente se surpreendia, o disparo da garota passou tão próximo ao alvo, que era incrível para uma total iniciante.
— Eu não entendo. Fiz todos os procedimentos do manual. — A garota baixou a arma.
— É óbvio que você não iria acertar de primeira. — A guardiã de Finn disfarçou sua surpresa e estufou o peito orgulhosa. — São muitos anos de treino e dedicação para atingir uma mira como a minha.
— No papel, parece mais simples.
Mesmo que o tom de Celina continuasse neutro, quase sem sentimentos como sempre, Garta notou o descontentamento da garota. Tratou de voltar atrás de suas próprias palavras:
— Não desanime. Você foi bem.
— Sério? — duvidou Celina. — Isso não é apenas uma escolha de palavras para evitar que eu me aborreça, não é?
— O quê? Claro que não. — A mulher sorriu disfarçando. — Escuta, você mandou bem em toda parte teórica, mas há coisas que não é possível colocar em manuais.
— Existem tais coisas?
— Que tipo de pergunta é essa? — Garta se cansava de estranhar as coisas que Celina vivia a perguntar. — Olha, você deve levar em consideração a sua arma. Todas, até as de mesmos modelos, possuem diferenças. Por exemplo, essa aqui tem um pequeno recuo para cima e um leve desviar do projétil para a direita.
— Ah. — Celina ficou ligeiramente impressionada, ela havia sentido essas características em suas mãos, mas não havia entendido até então.
— Além disso, seu alvo está relativamente perto, então você deve se concentrar mais no encontro dos seus movimentos do que na sua respiração. Lembre-se que o seu alvo provavelmente estará em movimento, a essa distância, ele não te daria tempo de respirar desse modo. — Garta explicava enquanto apontava com os dedos a cada ponto de sua instrução. Celina estava realmente interessada e não deixava de prestar atenção. — Mais uma coisa, aqui é um lugar aberto, a direção do projétil pode sofrer interferência em um lugar assim. Porém, isso pode ser desconsiderado para um mosquete de Sathsai, uma arma igual ao do exame da Defesa, não sofre com o vento, isso porque seu projétil é a própria energia do cristal, as interferências do ambiente são outras.
— Impressionante. Você deve ter lido muitos livros para saber de tudo isso.
— Eu não li. Eu não leio. — Garta ficou confusa com a afirmação desqualificada de sua pupila. — Quer dizer, eu sei ler. Eu só não gosto. Isso tudo o que eu te disse, são apenas as minhas experiências.
— Experiências? Eu nunca tive experiências.
— Por que você viveu escondida em uma mansão. Tô sabendo. Aliás... — Garta hesitou. — Como foi estar esse tempo todo trancada? Você não ficou solitária?
— Eu não sei. — Celina respondeu em tom neutro.
— Como, não sabe?
— Nunca parei para pensar nisso. Eu sempre tive bastante livros para ler. Manuais de defesa, biologia, biologia das criaturas sombrias, geologia, botânica...
— Do que você está falando? Eu perguntei se você ficou solitária. Se você não tinha medo de ficar sozinha ou apreensiva por não ter ninguém. Não perguntei se você estava entediada.
— Ah, bom. — Celina continuou com dificuldades de entender. — Eu acho que não tive medo. O Aldren também sempre esteve lá, então eu não precisava me preocupar com isso.
— Entendo. Ter uma pessoa que se preocupa com você, facilita as coisas, não é mesmo? — perguntou com olhar distante.
— Eu devo me preocupar com o Aldren? Acho que eu me preocupo.
Garta teve sua atenção trazida novamente para perto quando percebeu a pergunta fútil desconexa. Segurou o sorriso cômico.
— É tão estranha, que faz a Bertha parecer normal. — caçoou antes de continuar com a pergunta — Bom, você realmente gosta daquele baixinho, não é?
— Gostar? — Celina inclinou a cabeça e mostrou os olhos em interrogação.
— Por que eu fico sempre cercada de gente esquisita? — sussurrou para si mesma. — Esquece isso. Vamos, tente outro disparo. Lembre-se do que eu te disse sobre os mosquetes...
— Tá bom...