Volume 1

Capítulo 6: O Ganancioso Capitão

No meio da madrugada, Sienna abriu os olhos. Observando os arredores, percebeu que Ângela continuava dormindo e Morpheus não estava mais na cabine. Ao encarar sua mãe, percebeu a palidez em sua pele verde, porém, ela parecia muito melhor agora.

Escutando o som das pequenas ondas, saiu da cabine. Ela observou, com atenção, o mar calmo. Uma brisa leve se chocava contra as velas, impulsionando o navio para frente.  As ondas do mar eram tão pequenas que o som que ressoava era calmo como a canção de ninfas.

A lua no céu tornava o convés bem iluminando e as estrelas brilhavam, muito diferente da noite anterior, que era escura e sem vida. Por algum motivo, Sienna tinha certo apego àquele mar, tanto quanto o seu apego por maçãs ou pela biblioteca. 

“Gostaria de ter um bom livro...”, pensou com um pequeno sorriso.

Enquanto se perdia em pensamentos, uma figura surgiu atrás dela e colocou a mão em seu ombro.

— Esse é o Mar do Limbo — disse Morpheus ao sair da escuridão do navio. Ao sentir a mão, Sienna deu um passo para trás e o encarou. — Perdão. Não lhe tocarei outra vez.

Morpheus pensou que a jovem tinha ficado desagradada com o toque, contudo, ela havia apenas tomado um leve susto.

— Eu li sobre. O mar mais calmo do continente, não tem tempestades, ventos fortes ou ondas altas, apenas calmaria como um verdadeiro...

— Limbo — completou ele. — Você sabe a razão?

— Ninguém sabe, existem apenas contos.

— É mesmo? Me conte um. 

Morpheus era sempre frio em sua fala. Depois da cirurgia, ele havia ficado um tanto surpreso com a menina, mas ainda precisava conhecê-la melhor.

— Existem muitos, mas o que eu acredito é no contos dos elfos. Eles subiram pela árvore do mundo e chegaram ao Arquipélago de Ilhas, Gardenheim. Por isso nada ocorre no mar do Limbo, os elfos protegem todos.

“Ela ainda é um pouco infantil, porém... Vejo potencial.”

— Você é um pouco esperta, menina.

— Não me chame de menina. O meu nome é Sienna.

— Ângela deve ter falado meu sobrenome para você, então quero me apresentar formalmente. Meu nome é Morpheus Furlan.

Sienna soltou um pequeno sorriso e estendeu a mão, aproximando-se do homem. A jovem ainda sentia um pouco de medo e agia com cautela, mas sabia que ele não iria lhe ferir, ela tinha confiança nisso.

Após apertar a mão da jovem, os dois apenas continuaram observando o mar por um longo tempo, até que, Morpheus quebrou o silêncio:

— Posso lhe perguntar uma coisa? 

Hã? Pode sim.

— Ângela, algum dia... Algum dia, ela falou algo sobre mim? Ou sobre outras pessoas?

Mesmo não demonstrando no seu rosto, Sienna conseguia ver os fortes sentimentos naquelas palavras.

— Não. — Ela se recostou e encarou o céu. — Até alguns dias atrás, eu nem mesmo sabia onde vivia. Também nunca fiz nenhuma pergunta, conheço minha... Eu conheço a personalidade dela, nunca me responderia.

— Leal até o fim...

— Senhor Furlan, na verdade... Eu acho que você pode me responder algumas coisas, tenho esperança nisso.

— Desculpe. — Ele abaixou a cabeça e se virou para o chão de madeira do navio. — Não posso falar quase nada.

— Eu entendo.

— Mas tem uma coisa.

Sienna continuou encarando o céu limpo, com uma expressão tão fria quando a do homem.

— Que coisa?

— O local para onde estamos indo... — A lua foi coberta por uma nuvem, ocultando o choque que Sienna sentiu.

 A menina olhava para o céu e o homem para o chão, pintando um quadro um tanto interessante.

 

 

Em um canto mais afastado do convés, na parte traseira do navio, dentro de uma cabine, o Capitão contava as moedas que recebeu enquanto conversava com o marujo Truman.

— Capitão, não acho que isso seja uma boa ideia. Por favor, reconsidere. Vamos apenas levar eles até o objetivo final — disse Truman com o rosto preocupado. 

Desde que iniciou a sua jornada pela vida, havia se metido em diversas situações difíceis, isso lhe fez receoso, talvez até um tanto medroso. Essas situações o levaram a trabalhar naquele navio e em outros desde a infância.

— Você tem medo das coisas erradas, Truman. — O Capitão continuou contando o dinheiro com calma, ignorando as palavras que lhe eram ditas. — Já está tudo sobre controle, já não lhe falei isso?

— Mas, Senhor! Você também viu, não viu?! — exclamou o jovem suando um pouco. — Ele carregou o monstro com apenas uma mão. Tem algo de muito errado com aquele homem.

— Ele é um nobre, pode até ter algumas habilidades mágicas, mas é só isso. Já notifiquei eles, acabou e não se preocupe, vão enviar um dos comandantes de Seth, ele vai lidar com aquele nobre. 

— Um comandante? Quem? 

— Você o conhece muito bem, Truman.  — O capitão deu um leve sorriso e bateu com a mão na mesa. — A Enguia, o chefe da Ilha Jaisen! Talvez ele possa até mesmo vencer um ogro frente a frente, então relaxe!

Truman deu um passo para trás ao escutar aquele nome. O rosto do jovem escureceu e o suor aumentou.

— Capitão, você está louco... — Essa frase acabou fugindo da boca de Truman por acidente, no mesmo instante, ele encarou o rosto enfurecido de Willy. — Me desculpe!

— Já estou cansado de você! Eu lhe dei tudo o que tem, me respeite! —esbravejou acertando um soco na mesa. A mesa de madeira ficou intacta, porém o punho do homem não. Com ainda mais raiva, Willy expulsou Truman da sala.

Truman suspirou e saiu da cabine contra a sua vontade. Do lado de dentro, Willy encarou as moedas e o humor dele melhorou.

— Vender aquela ogra me fará rico e nada disso vai importar...

Willy pegou uma moeda de ouro, esquecendo por um segundo de sua mão ferida. Por um segundo, ele acabou soltando a moeda. Nervoso, tentou pegá-la, porém isso criou um efeito dominó. Todas as moedas de Willy caíram no chão e, com um rosto enfurecido, ele buscou recuperar todas.

Truman caminhou, buscava retornar para a cabine dos marujos, mas antes teria que passar pelo convés. 

“Eu tenho um pressentimento ruim, o que farei?, pensou um tanto irritado.

Ao subir as escadas para o convés, escutou algumas vozes. Ele parou no meio das escadarias e escutou tudo.

— O local para onde estamos indo...

“Essa voz... É o homem de preto.”

— Onde é esse lugar? — perguntou Sienna.

Ao subir um pouco mais as escadas, ele conseguiu ver o homem olhando para o convés e a menina encarando o céu.

— Primeiro vamos para os Reinos Médios e depois, nosso objetivo final, o Reino Haber.

Não foi apenas Sienna que ficou boquiaberta com aquelas palavras, Truman entrou em choque. O suor da sua testa descia como um rio e o coração acelerou em um ritmo muito rápido.

“Se esse homem for realmente um nobre, nada pode acontecer com ele ou com a garota. Se alguma coisa acontecer... Toda à costa sudoeste vai sofrer, o que eu faço?” Truman conseguia apenas orar aos deuses.

Ele permaneceu em silêncio, estagnado em uma mesma posição. Esperava que os dois fossem voltar para às cabines, assim, ele mesmo poderia voltar para a sua própria. Após algum tempo, não muito longo, Morpheus e Sienna voltaram e Truman conseguiu respirar tranquilo.

 

 

Ao voltar para cabine, Sienna sentou ao lado de Ângela. Morpheus sentou em uma cadeira e começou a desenhar nos papéis que tinham ali.

Ele estava concentrado na tarefa. Aproximando-se devagar, a jovem tentou espiar. Logo, percebeu que o desenho tratava-se de um coração humano.

Era muito bem feito. Havia informações resumidas de cada parte e o desenho era tão realista que até a assustou um pouco. Com curiosidade, chegou mais perto, porém foi interceptada pelo homem.

— O que você está fazendo, menina? — Morpheus virou a cabeça e encarou o rosto da menina que nervosa voltou alguns passos para trás.

Ele então voltou à trabalhar, mas foi outra vez interrompido pela jovem.

— Uau! Como é bem feito! — Desta vez ela já havia chegado ao lado dele.

Morpheus agarrou a menina pela gola do vestido e a pós na cama. Ela resmungou um pouco e voltou a ficar em silêncio.

Encarando o papel, Morpheus soltou um suspiro. Havia reparado no elogio dela, então decidiu testa-la.

— Aproxime-se, menina. 

“Talvez ler minhas anotações não seja impossível para ela.” Ler era uma coisa, entender era algo completamente diferente.

— O que é isso, Senhor Furlan? — perguntou ao receber um dos desenhos.

— Um pulmão, quero que leia tudo e me diga o que acha.

Morpheus entregou a folha e voltou ao seu trabalho. Alguns minutos depois, achou que a garota demorava demais para terminar e se virou. Ele então viu algo que o surpreendeu. 

Os grandes olhos vermelhos de Sienna reluziam pelo fogo. Ela captava cada palavra e cada letra, pura e imaculada concentração, um nível de concentração que ele apenas viu em si mesmo.

— Você não entendeu algo? — perguntou ele.

— Não, entendi tudo, mas tem algo incompleto. Não consigo achar o que falta, isso está me deixando confusa. — A garota coçou a cabeça.

“Ela tem talento.”

Aquele desenho realmente está incompleto. O rascunho de Morpheus mostrava como funcionava a distribuição de oxigênio e a retirada de dióxido de carbono do corpo humano por meio da respiração. No entanto, ainda faltava várias partes, inclusive o mais importante, a forma com que o oxigênio alcançava as demais células do corpo.

O rascunho de Morpheus estava incompleto de verdade, ele mostrava como funcionava a distribuição de oxigênio e a retirada de dióxido de carbono do corpo humano por meio da respiração, mas ainda faltava várias partes, inclusive o mais importante depois do pulmão. A forma com que o oxigênio alcançava todas as células do corpo estava faltando.

— Me diga o que você entendeu do desenho? — Morpheus não esperava muito, mas teve uma resposta satisfatória.

— O oxigênio entra pelas vias respiratórias, mas e depois? Aqui não diz como ele é levado para o  restante do corpo. Acredito que seja por apenas um método.

— E qual séria esse? — Ele aguardava pela resposta, na verdade, ansiava por ela.

— A única opção é o sangue.

O homem, naquele pequeno instante, encarou a garota com outros olhos. Pegando outros desenhos, decidiu ensinar e, até mesmo, aprender com ela. Os dois passaram o resto da madrugada nesse mesmo processo, ele entregava um desenho e ela fazia uma análise. Quando estava amanhecendo, Sienna caiu no sono.

— Ângela, entendo o motivo para se apegar tanto a essa menina — falou encarando a sua antiga companheira. — Mesmo assim, eu tenho um trabalho a fazer.

Ele voltou a escrever.



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