Volume 1 – Arco 8

Capítulo 63: Retirada Estratégica

Tudo ainda se mantinha escuro e confortavelmente apagado. Sentia uma leve e gostosa tontura, que lhe causava a mesma sensação de estar repousado em uma cadeira de balanço. Ouvia vozes ao fundo, embora não conseguisse distinguir direito o que acontecia.

Em determinado momento, a doce tontura começou a lhe enjoar, como se estivesse a tempo de mais em um brinquedo. Foi aí que começou a acordar, recobrando os sentidos. O primeiro deles foi aquilo que mais tinha orgulho: sua audição.

— Ora, pois! Absurdo. Não podes defender o que acabas de acontecer, diretor. — Era o diretor Augusto. — O gajo acabou por causar grandes estragos ao ponto. Isto por si só já deveria ser motivo suficiente para desqualificação.

 — Não há regra alguma que o desqualifique por não controlar seus poderes. Isso não existe, Augusto. Se por um acaso houve mais dano do que conseguimos controlar, a culpa foi inteiramente nossa e não do jovem Diego.

— E como pode ser nossa culpa? — Tinha um tom indignado.

— Não o impedimos a tempo do estrago acontecer, mesmo tendo poder para tal. O que mostra uma ineficácia nossa, não dele. — A discussão pareceu ter um encerramento, mas Nebeque continuou a dizer: — Augusto, seja sensato. Sabemos que eventualmente isso poderia acontecer. Alunos perderem o controle de seus poderes e sobrecarregar por meio da irritação não era tão incomum até algumas décadas atrás. 

— O guri fez o outro perder um olho e uma orelha, diretor! Não existe sobrecarga aqui, apenas violência. E este tipo de comportamento deve ser punido.

— Concordo plenamente no que se refere a violência desnecessária. Mas discordo com a punição. Nós temos os meios necessários para deixar o jovem Golias novinho em folha, embora os efeitos psicológicos devam ser mais complicados de ser trabalhados… De qualquer maneira, vejo isso como uma forma de aprendizagem, senhor Augusto.

— Aprendizagem? O que há para aprender com aquela carnificina acontecendo diante de nós?

— Aprendemos que deveríamos colocar mais regras no torneio.

 

 

Diego abriu os olhos e viu que se encontrava no vestiário. Ao lado dele estava Tiago e mais ao fundo, olhando de esguelha, Margô. Entretanto, assim que começou a se levantar para ficar sentado, a garota virou o rosto. 

— O que foi que aconteceu? — perguntou ele a seu amigo, reparando agora em seu corpo. Não estava mais vermelho, nem com aquelas marcas estranhas no corpo. Embora ainda continuasse sem camisa e com os músculos levemente definidos.

— Você ganhou — disse Tiago, os olhos arregalados e atentos aos de seu amigo. Não era fascínio, nem espanto. Era cautela. Como se estivesse conversando com outra pessoa. — E fez isso estragando praticamente todo o ringue. Os professores tiveram que retirar os alunos das arquibancadas por uns dez minutos para ajeitar tudo de volta.

— O torneio ainda vai continuar? 

— Sim. E você por pouco não foi desqualificado. Ainda vai continuar competindo até a final.

Diego deu de ombros ao constatar aquele fato e sentiu uma enorme pontada no braço esquerdo. Quando olhou, viu que seu membro estava completamente roxo e com uma marca de mordida profunda na carne. Aquilo tinha sido obra de Golias.

— Que bosta — praguejou, e de uma forma bastante misteriosa começou a sentir muita dor no braço e a dor só ia aumentando conforme ele olhava para a situação. — Ninguém quis dar um jeito nisso aqui?

— Esqueceu que não podem? Você ainda tá na competição. Então seus machucados vão continuar acumulados. Mas… Murdock, o que foi aquilo?

— Já disse para parar de me chamar pelo sobrenome — murmurou, começando a ofegar. Seu braço estava feio, muito feio. — Aquilo o quê?

— Aquilo no ringue. Você começou a pegar fogo. Começou a falar com uma voz esquisita. E depois… — O loiro engoliu em seco. — Foi violento.

Diego meramente revirou os olhos.

— Ele teve o que mereceu. Quem mandou ser um porcão? Aí! — Colocou a mão no ombro, porém só piorou sua dor. Tentou deixar o braço imóvel. Se fosse competir com aquele braço, certamente iria perder. — Eu não sei direito o que aconteceu, só sei que eu fiquei com raiva. E lembro do fogo… O fogo… Espera um segundo, eu fiquei pelado?

— Como é?

— O fogo queimou minhas calças? As pessoas me viram?

Tiago fez um rosto de total incredulidade.

— Você quase mata um Druida na pancada, queima praticamente todo o estádio e a sua preocupação é se alguém te viu pelado?

— Já disse que não faço ideia de como fiz aquilo, o que mais quer que eu me preocupe?

Não soube a resposta, já que o professor Gutierrez logo anunciou:

— E DEPOIS DESSA EMOCIONANTE LUTA, VAMOS CONTINUAR O TORNEIO! SEJAM BEM-VINDOS DE VOLTA. ESPERO QUE TENHAM TRAZIDO SEUS MARSHMALLOWS PARA CASO TENHAMOS MAIS UMA LAREIRA AQUI NO MEIO. EU JÁ TROUXE OS MEUS, INCLUINDO UM CHOCOLATINHO PARA DERRETER POR CIMA! HM! QUE DELICIA!

Ouviram-se alguns alunos rirem, outros conversando. Estava claro que Gutierrez só queria distrair a atenção do que havia acontecido usando de piadas para acalmar o público. Estava funcionando.

Diego se ajeitou melhor no local onde estava deitado, perto de uma parede, de modo a imobilizar sue braço e poder respirar um pouco. Tiago, suspirou, e se sentou ao seu lado, parecendo preocupado. Por sorte não tinha mais aquele olhar de cautela ao encarar se amigo. 

— E agora, hein? — perguntou o loiro.

— Não sei, me diz você. 

— Tô falando do torneio. Qual você acha que vai ser a próxima luta?

Todos os frios já tinham sido eliminados. Tiago venceu a Mini, Leo desistiu na sua luta com a Margô e Golias… Se os professores não tivessem interferido teria possivelmente morrido. Então agora os quentes teriam de lutar entre si para ver quem deles iria conquistar a final.

— A minha contra a da Margô, é óbvio — disse sem pensar muito. — Você lutou muito bem no início. Deve ter ganhado mais pontos que eu. Eu fiz uma bagunça e tanto la fora, duvido muito que me coloquem por último.

— Será?

— Claro. Olha, não tem como você lutar contra a Margô. — Ele fez parecer que se referia ao fato de não lhe escalarem para lutar com ela, mas estava mesmo era se referindo a surra que iria levar caso os dois estivessem no mesmo ringue. — Eu vou com ela agora. E, de algum jeito, vou tentar deixar ela fraca para você. Ou tentar vencer ela. Mas sinceramente, com esse braço aqui eu duvido que consiga fazer muita coisa.

— Acho que isso me dá tempo suficiente de pensar em alguma estratégia. Acho que se ela gastar mais um daqueles teleportes em você, vai acabar ficando sem muita energia para usar em mim…

— Isso, isso — interrompeu. — Pensa em alguma estratégia para vencer ela. Eu vou seguir a minha de bater e apanhar. 

Os dois riram. E isso pareceu incomodar a garota, já que ela os encarou com raiva por um instante e depois voltou a olhar para frente, esperando o chamado do professor. Ele só tinha de parar de fazer as piadinhas sobre lareira, fogo e como Diego era uma fogueira humana. 

Foram dois minutos de comentários humorados, a maioria sem graça, até que ele finalmente começasse a anunciar o que realmente importava.

— E A PRÓXIMA LUTA DO DIA É APENAS DO LADO VERMELHO, TIAGO NEBEQUE CONTRA MARGÔ ROSA!

Palmas, gritos de vivas e comemorações. Isso nas arquibancadas. Dentro do vestiário só se via olhares assustados e risadinhas maliciosas que soavam como um “Tchiá… Tchiá… Tchiá…” reprimido. 

As coisas pareciam estar acontecendo muito rapidamente. Tiago e Margô já tinham subido em cima do ringue. Mas a um instante estava ali, do seu lado. O rapaz acompanhava tudo pela televisão. Via o rosto pálido de seu amigo e o olhar enfurecido de sua, pelo visto, ex-amiga.

Aquilo não era bom. A garota iria descontar toda a sua frustração no loiro. E ela era muito boa em luta, coisa que Tiago nem de longe chegava perto de ser. 

Finalmente os dois começaram a brigar. A menina não parecia mais tão cansada quanto anteriormente, isso graças a grande pausa que teve para descansar. Ela estava a toda velocidade, porém Tiago não ficava atrás. Disparou em sua direção também.

Era apenas uma encenação dele. Quando a garota chegava perto o suficiente para tentar lhe desferir um golpe, o loiro recuava. O problema era que Margô era mais rápida e conseguia prever os movimentos de seu adversário. Em uma das tentativas de desviar-se da investida da garota, ela lhe fintou e conseguiu desferi-lhe um soco direto no queixo.

Tentou segurar os braços da menina, porém ela conseguiu se livrar, indo para a sua traseira. Ela chutou seu joelho, fazendo o garoto cair. Com um pulo muito alto para o tamanho dela, a garota deu um soco que iria finalizar o garoto. Entretanto, Tiago levantou as mãos, parecendo uma forma de clemência. Não foi o que aconteceu.

A menina foi jogada para trás, atingindo o chão e sendo arrastado por conta do impulso que recebera do absoluto nada. Agora Tiago estava em pé e a menina no chão. Estava irritada, podia notar isso por conta da cor escarlate em suas mechas. 

Com um rápido movimento de pernas, a garota se levantou e disparou em direção a seu adversário. Tiago, por sua vez, fez o mesmo. Os dois pularam em simultâneo, e se chocaram um com o outro, porém quem conseguiu sair por cima foi o loiro, deixando a garota embaixo de seu corpo.

Ela estava prensada, não conseguia sair. Ele mantinha o peso de seu corpo em cima do dela, a deixando sem ar. Isso era incomum, o rapaz não era pesado de forma alguma. Isso significava que estava usando o seu poder de levitação para se pregar no chão, lhe deixando mais pesado. Estava prensando sua inimiga.

A garota conseguiu colocar seus dedos no rosto de Tiago, o que fez o rapaz imediatamente se soltar e deixar que a menina respirasse. Ela o fez como se nunca antes tivesse respirado na vida.

Irritada, a garota investiu velozmente em direção ao rapaz. Mas parou subitamente, quando de repente, ele levantou os dois braços, apenas um mindinho para cima.

“Droga, essa era para desclassificar ela… Mas não deu! Agora o Tiago perdeu por… Espera aí, o que ele tá fazendo?”

Tiago se desfez de sua posição e desferiu um golpe no rosto da garota. Ela ficou confusa, o que lhe deu oportunidade para atingir com mais outro, sempre a jogando para trás. Depois do segundo golpe ele teve de abanar sua própria mão, não estava acostumado a socar ninguém.

— ELE NÃO FOI DESCLASSIFICADO, MINHA GENTE — comentou Gutierrez, para conter as vaias dos alunos. — NÃO SEI SE VOCÊS NOTARAM, MAS ELE LEVANTOU APENAS UM DEDINHO MINDINHO. ISSO NÃO É SINAL DE DESISTÊNCIA. TEM QUE LEVANTAR OS DOIS.

Então tinha sido isso. Tiago era esperto e sabia que a garota iria parar quando visse seu sinal de rendição. Dessa forma fingiu que iria se render para pegá-la de surpresa. O loiro podia ser muita coisa, mas burro certamente não.

A garota ficou furiosa e brigou com Tiago por um tempo. Ele tentando desviar de seus golpes e a lançando para longe com seus poderes, e ela quase sempre o alcançando.

Isso não duraria por muito mais tempo. O loiro já estava sangrando bastante pelo nariz, o que significava que estava em seu limite. A menina poderia investir com tudo para cima dele. Sim, ela iria usar aquele teleporte e assim dar um golpe suficientemente forte na cara de seu oponente, o deixando inconsciente.

Diego viu quando ela tomou distância. Também viu quando ela começou a correr, pulou no ar e… Tiago, que podia ser muita coisa menos burro, deu um passo para trás, passou uma perna por entre a corda, depois o corpo e por fim a cabeça, simplesmente saiu do ringue, evitando o golpe com teleporte da menina. 

Ele saiu com tanta simplicidade, que quase ninguém havia notado que ele tinha se desclassificado com aquilo. Diego ficou de boca aberta. Tinha entregue o jogo, desistido. E o vencedor era…

— MARGÔ ROSA É A VENCEDORA! — anunciou Gutierrez. — E QUE LUTA, MEUS AMIGOS, REALMENTE, QUE LUTA!

Margô ficou furiosa. Não tinha conseguido dar um golpe final em Tiago. Na verdade, não tinha quase acertado nenhum golpe em seu oponente.

Quando os dois chegaram no vestiário, Diego foi direto ao amigo e o puxou para um canto, ignorando completamente a dor em seu braço esquerdo.

— O que foi aquilo? Por que você só saiu? Não tinha como vencer? Tinha acabado as suas estratégias?

Tiago, que podia ser muita coisa, menos burro, sorriu e respondeu:

— Mas, Murdock, isso fazia parte da estratégia.

— Saber se retirar no momento certo de fato é uma das melhores habilidades em um Assistente Social — comentou o diretor Nebeque, quando Gutierrez passava a palavra para os jurados.



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