Volume 1 – Arco 8

Capítulo 62: Estava Com Raiva

Assim que subiu o ringue, ouviu o seu nome, sua estatura e seu peso. Não achou que aquela informação fosse grande coisa, era um pouco mais alto que Leo, apenas. Entretanto, estava muito abaixo do gigante a sua frente.

— E DO LADO AZUL, PESANDO 54 QUILOS E MEDINDO 1 METRO E 55 CENTÍMETROS, GOLIAS FILISTUS!

Quando Golias entrou no ringue pareceu fazer o chão tremer. Quando o rapaz se deu conta, viu que na realidade era seus joelhos que estavam lhe fraquejando. Mais uma vez os seus instintos estavam lhe pregando uma peça, dizendo que aquele sujeito com fuça de porco deveria ser evitado a qualquer custo.

Ora, da última vez em que lutaram o rapaz fora completamente nocauteado com apenas um único golpe. Tudo bem que a maioria desse trabalho devia ao fato de ter caído com a cabeça no chão. Porém, mesmo assim, não queria levar outro soco daqueles.

Sem nem mesmo o professor dar a ordem, Diego já estava com a guarda alta, a coluna encurvada para frente, defendendo seu peito. Sem tempo para pensar ou raciocinar melhor, foi para o meio do ringue. Golias também o fez.

— Não vai desistir?! — zombou Golias. — É um burro.

— Quem devia desistir era você! — trovejou o rapaz. Embora sua voz estivesse altiva, seu corpo continuava encolhido em posição de defesa. — Não perdi para seus amiguinhos e também não vou perder para você.

— Sonha, cachorro.

— SE CUMPRIMENTEM! 

Ninguém fez nenhum movimento. Os dois continuavam a se encarar. A única diferença era a posição que Golias estava, completamente aberto, o tórax e a pança expostas.

— Eu sou mais forte do que você pensa, porcão.

Golias apenas bufou, fazendo uma careta irritada. 

— BOM… NÃO VÃO SE CUMPRIMENTAR? ENTÃO… NESSE CASO… HM!… PODEM COMEÇAR!

Imediatamente o rapaz se lançou em direção ao grandalhão, desferindo um soco direto em seu peito, o lançando alguns passos para trás. Aquilo irritou profundamente Golias, que bufou mais uma vez.

Diego, demasiadamente confiante, tentou desferir outro soco em seu peito, porém foi barrado pelas mãos enormes de Golias que o segurou, puxou em sua direção e lhe acertou um gancho de direita no queixo, o lançando a metros de distância, até bater de cabeça em um dos cantos do ringue.

Estava zonzo, via tudo piscando e brilhando. Os holofotes que iluminavam o ringue se transformaram em vários, inúmeros, como estrelas formosas que dançavam em um ritmo único e gracioso. Não, estava desmaiando. Não podia, tinha de fazer alguma coisa. É, ele se lembrava de alguma coisa.

Se levantou com dificuldade, se segurando no tronco de madeira que foi jogado. Espera, uma arvore? Aquele não era o ringue que estava anteriormente. Quando olhou para frente, viu uma criatura estranha, grande, forte e com garras negras nas mãos. E os diabólicos chifres ondulados projetados para fora do crânio.

Subitamente, aquilo lhe irritou. Uma raiva que não era dele. Com toda ferocidade que tinha acumulada dentro de si, se lançou em direção a criatura. Um enorme golpe no peito lhe fez acordar de seu devaneio.

Estava mais uma vez no ringue, caído, cuspindo sangue. Não sabia de onde vinha todo aquele sangue, certamente não podia ser seu, ao menos era o que pensava. Quando se levantou, sentindo uma forte dor no estômago, colocou a mão no rosto e sentiu a umidade. Estava sangrando pelo nariz.

Olhou para frente e viu Golias, surpreso e um tanto assustado. Talvez estivesse assustado com Diego? Não, estava assustado com o fato do garoto não ter caído. Não levou apenas dois simples golpes. Deve ter apanhado mais que aquilo. Apanhado mais do que ninguém foi capaz de aguentar. Ao menos não de Golias.

Tiago tinha razão, o garoto era resistente. Isso certamente lhe dava alguma vantagem. Porém, tinha de ser uma vantagem tão dolorida assim?

Sem pensar muito, o garoto se lançou em direção ao oponente mais uma vez e lhe lançou diversos golpes. Nenhum parecia ter efeito. Parecia estar batendo em uma parede. Seus punhos estavam machucados, sua força estava se esvaindo. O que era aquilo? Por qual motivo estava se sentindo fraco?

Mais um golpe no nariz lhe fez cair no chão. Isso o fez ver apenas o breu por breves instantes. Quando se levantou, estava novamente no meio de uma floresta. A criatura estava a sua frente, escura como a noite.

— Achas que consegue me vencer, bárbaro? — perguntou a criatura. — Você não passa de um humano!

Um humano? Um simples humano? Foi isso o que essa criatura acabou de dizer? Aquilo deixou irado. Uma ira que não era dele. Foi para cima daquela criatura novamente, queria lhe estraçalhar, quebrar sua espinha no meio.

— Deixa eu te ensinar! — gritou Golias, lhe tirando mais uma vez do devaneio.

O gigante segurou seu braço e com facilidade o jogou no chão como um chicote. Caído no chão, recebeu vários chutes no peito. O peso do corpo do grandalhão esmagava seus pulmões, impedindo de respirar direito. Ele começou a se engasgar com sangue. De onde vinha todo aquele sangue?

O teto começou a ficar escuro, não conseguia respirar de forma alguma. O sangue em sua garganta não saía, já que estava com a cabeça virada para cima. Iria engasgar até a morte. Não iriam parar aquela luta? Ele realmente estava pare morrer. 

 

Não parem. Não podem. Não vão.

 

Aquele não era um pensamento dele, embora viesse de dentro de seu ser. Sentia suas entranhas fervilhando, da mesma maneira que acontecia quando seu tio lhe dava veneno. O que Elizel tinha feito com ele?

Golias cansou de pisar em seu peito. O puxou pelos cabelos até um canto e lhe deu um mata leão. Seu enorme braço estava ao redor do pescoço do garoto. Ele começou a ver o teto ficar preto mais uma vez. Conseguiu cuspir o sangue, ranger os dentes e tentar forçar golpes e contra golpes, nenhum deu certo.

Estava sendo estrangulado. E ele já não via mais nada.

 

 

Na floresta, o bárbaro ficou frente a frente contra a criatura e o que parecia ser seus subordinados. Poderia chamá-los daquela forma? Eram tão estranhos e de formas tão variadas quanto o chefe de sua tropa. Com seu machado em punhos, se lançou em direção as várias criaturas.

Enquanto decapitava, desmembrava e dilacerava a carne dos menores, gritava a todos os pulmões o nome de seu verdadeiro inimigo.

— Ragnar! 

A criatura lhe olhou assombrado. Sim, estava mesmo assustado. Afinal, como ele poderia saber o seu nome? Poucos eram os que sabiam. Então como? Alguém deve ter lhe dito. Alguém lhe deu poder. E isso explicaria o porque ele estava daquele jeito, matando todos os que eram seus.

O bárbaro continuava sua matança com o seu machado. Proclamava inúmeras vezes o nome da criatura, apenas para ter a satisfação de observar o rosto animalesco se contorcer em espanto. Sim, aquilo lhe satisfazia e muito. Estava com raiva.

Três criaturas se puseram em sua frente, porém foram obliteradas com um único golpe lateral que cortou os três ao meio. Ainda permaneceram vivas por um tempo, tentando se arrastar em direção ao seu líder. Entretanto, o bárbaro pisou no cranio da mais avançada, fazendo sua cabeça explodir no chão. 

Mais quatro a esquerda. Elas atacavam como se fossem animais. O bárbaro foi arranhado algumas vezes no flanco antes de conseguir reunir mais ira e decepar a cabeça de um, o peito de outro e retirar o coração de dois com as mãos nuas. Estava com raiva.

Quando se virou para frente, viu novamente a criatura, a que se diferenciava de todas as outras. Ela estava em pé em cima de uma grande rocha, observando tudo com espanto. Estava assustada. 

Em uma linguá da qual não conseguia compreender, a criatura ordenou algo. Imediatamente, centenas de criaturas vieram por de trás do gigante e lhe mordeu a carne. Acabou largando o machado sem querer, um erro. Agora só podia contar com sua força. 

Elas o sufocavam. Estavam lhe impedindo de respirar. Começou a ficar cansado, começou a ver o céu claro do dia enegrecer. Caía na escuridão reconfortante, pois estava cansado. Tudo que tinha como arma era o seu corpo. Seu machado tinha caído de suas mãos. Apenas o seu corpo.

Seu corpo já era mais do que o suficiente, afinal de contas, estava com raiva. Muita raiva.

 

 

Quando Diego abriu os olhos, não sentia nada além de um enorme formigamento em seu corpo. Isso não importava, ainda continuava sendo estrangulado. Isso tinha de acabar, tinha de dar um jeito nisso. 

Seu corpo começou a ficar quente, como se ardesse em febre. Depois, ficou tão quente quanto carvão em brasa. E depois, ficou tão quente, mas tão quente, que sua pele ficou vermelha escarlate e dela saiu fogo de verdade, queimando sua camisa por completo. 

Imediatamente Golias o soltou e o mandou para longe. Diego cambaleou para frente, porém logo recuperou o ritmo. Estava com raiva. Olhou para trás e não via mais um adversário qualquer, via um inimigo. E assim como foi treinado, inimigos devem ser mortos.

Sua camisa pegou fogo, virando apenas trapos, deixando seu corpo da cintura para cima desnudo. Estava mais forte. Músculos que antes não eram aparentes agora estavam mais definidos. Marcas, que nunca foram vistas, agora estavam tatuadas por todo o seu corpo. 

Não eram como as runas que a maioria dos garotos Feiticeiros tinham no corpo. Eram diferente, era mais desorganizadas, tortas, antinatural. Como se uma criança tivesse desenhado em sua pele com um ferro quente. 

A arquibancada via tudo com a boca aberta. Ninguém estava falando, nem comentando, nem mesmo acreditando no que viam. Não poderiam, Diego estava em chamas. Uma fumaça acinzentada saía de seu corpo, seus olhos estavam pretos, como uma noite escura.

Ele encarava Golias com raiva. Viu que o pobre garoto-porco estava encolhido no canto, balançando as mãos no ar para ver se assim melhorava as queimaduras que adquiriu ao entrar em contato com a pele fervilhante do rapaz da cicatriz.

 

Mate. Apenas mate.

 

— Por que você ainda tá aqui? — gritou para o adversário, com uma voz que não era sua. Era metálica, maligna e potente. Golias, que estava começando a se levantar, apenas paralisou. — Por que você só não… Morre?

Antes de qualquer um poder digerir suas palavras, Diego, que estava muito irritado, se lançou em direção ao seu adversário. O garoto-porco tentou desviar, porém não conseguiu a tempo. Foi acertado precisamente por um golpe em seu peito, o fazendo permanecer no canto. 

— Morre logo! — gritou, dando mais diversos outros golpes em seu peito.

Cada golpe que dava fazia uma fumaça negra subir, juntamente com o cheiro de carne queimada. Golias não conseguia sair, não conseguia se defender. Mais golpes em seu peito, mais golpes em sua barriga e alguns que acertavam sua fuça. E para sua própria surpresa, aqueles golpes doíam muito. Estava sem saída.

Desesperado, agarrou o garoto pelos cabelos. Isso queimou sua mão, porém não se importou. Queria mesmo era acabar com a raça daquele moleque. O erro de Golias era não reconhecer que Diego estava com raiva.

 

Queime.

 

O garoto segurou o pulso de Golias e este ficou em carne viva em poucos segundos.

 

Queime a alma dele.

 

Com isso o grandalhão recuou, voltando a seu canto. Outro erro. Diego lhe esmurrou a cara até que estivesse sem forças. Estava com raiva.

 

Queime a Terra inteira.

 

Golias lhe deu um chute forte o suficiente para queimar a sola de seu sapato, porém potente o suficiente para arremessar o garoto para longe de si. O garoto-porco estava mal. Seu focinho sangrava, sua boca também. Cuspiu um dente no chão. O pior de tudo era que estava enfurecido. Nunca em toda a sua vida fora tão humilhado assim.

Adotando novas estrategias, o grandalhão se lançou em direção a seu oponente, correndo de quatro, e cabeceando o garoto para trás como se fosse um touro. Diego conseguiu se defender com o braço esquerdo cheio de cicatrizes e um pouco do fogo que lhe saia do corpo se apagou. Golias aproveitou para lhe morder.

O braço do garoto sangrou muito. Aquela mordida doeu. A língua do oponente queimou, porém ele não se importava. Queria causar o máximo de dano que conseguisse ao rapaz da cicatriz. Um erro. Ele já sabia que era um erro.

Diego segurou a cabeça redonda do oponente com uma das mãos e puxou sua orelha de porco em sua direção. Assim como fez como garoto do beco no ano que havia se passado, ele mordeu sua orelha. E com um puxão súbito e forte, arrancou ela, a cuspindo para o meio da quadra. Estava irritado.

Golias afrouxou o aperto na mandíbula e soltou o braço esquerdo do rapaz, que estava sangrando muito com aquela nova ferida. Diego não deixou aquilo barato. Uma orelha por um braço? Não lhe parecia justo. Seu corpo se acendeu mais uma vez, com chamas baixas, porém quentes, e se lançou em direção ao oponente.

Sua mão direita aberta se encontrou com o rosto do porcão. E com um simples movimento, Diego afundou o seu polegar no olho do garoto. Golias ficou sem um dos olhos.

Forçava o polegar o mais fundo que podia enquanto ouvia os guinchos de desespero que emanavam da boca nojenta daquele sujeito. Sangue esguichou em sua cara, salpicando seu rosto com gotículas vermelhas. O líquido evaporou em poucos instantes por conta de seu calor.

Quente como o próprio fogo, o rapaz queimava o rosto de seu oponente enquanto, com satisfação, gritava e urrava de raiva. Estava com raiva, com muita raiva.

E foi nesse instante que o rapaz sentiu seu corpo ficar leve e lhe puxar para trás. Eram muitos. O que seria aquilo? Quando viu, notou que vários professores, incluindo os dois diretores, Kim e Augusto, estavam lhe segurando. Estavam lhe puxando, o arrastando para longe. O levando de volta a escuridão.

 

 

A escuridão não era familiar ao bárbaro. Em toda a sua vida, não havia conhecido a derrota. As encarava como formas de aprendizagem. Falhar nada mais era do que uma forma de aprender, melhorar e crescer. Ao menos era assim que levava a vida, e por isso sempre foi bem-sucedido em suas batalhas.

Ora, desde sempre fora um grande guerreiro. Chegou a ser tão reconhecido que seu próprio nome se tornou uma espécie de mal-agouro para aqueles que não faziam parte de sua tribo. 

“Não se pronuncia o nome dele”, diziam. “Quem evoca esse nome acaba por ter azar em tudo na vida. Não diga o nome dele. Seu nome é amaldiçoado.”

Talvez fosse. Sua força era reconhecida como tal. Porém, o que tinha de mais em seu nome? Quando foi reconhecido por aquele estranho ser, pelo seu nome, não apenas por sua reputação, sabia que poderia confiar nele.

Sabia que Baal não estava falhando com ele quando lhe revelou o nome e localização daquele que matou sua família, sua tribo. Ragnar. Esse era o nome a quem ele deveria caçar. O nome que as pessoas deveriam amaldiçoar. Não o seu.

— Queimem! — gritou.

E as criaturas envolta dele queimaram.

 

 

Queimem.

 

Era uma voz irritante que tinha em sua cabeça. Sentia seu corpo sendo puxado para a escuridão. Não resistira, era tentador de mais. 

 

Não deixe eles te pegarem. Não deixe.

 

Como poderia fazer isso? Já o haviam pego. Não poderia finalizar seu inimigo por culpa daqueles… Idiotas. O que tinham na cabeça? Tinha de matá-lo. Tinha de fazer isso. Não podia morrer ali, ao menos não agora. Afinal, o que era a voz em sua cabeça?

 

Caçador imortal. Torre Forte. Criança Dele.

 

“Essa raiva não é minha”, pensou. “Essa raiva que sinto, ela não é de mim. O que está acontecendo? Eu estou… Infectado? Eu vou morrer?”

 

Do Fim do Mundo.

 

Ele abriu os olhos, saindo da escuridão. Ainda estava sendo arrastado para trás. Estavam tentando prestar ajuda para ele. Por um segundo, apenas por uma fração de segundo, ele não viu Golias, mas sim uma criatura alta e negra, com chifres ondulados na cabeça e patas ao invés de pernas. Aquilo lhe deixou irritado.

— Diego, não se mexa, por favor, você só vai piorar as coisas, fique parado, já acabou — dizia uma voz que ele conhecia, embora não desse importância para ela.

Se iria morrer, então… Iria levar todo mundo com ele.

— Merda! — gritou com a voz que não era sua, assustando alguns professores, embora os diretores continuassem a segura-lo. — Merda! Merda! Eu não aguento mais isso! Só morre! Qual o seu problema?!

Seu calor voltou. Sua chama se acendeu e ficou tão grande quando o ringue, queimando todos que estavam ali perto. Era quente, estava muito quente. Isso porque ele estava com raiva, muita raiva.

Se aproximando de Golias como um raio, lhe desferiu um soco potente o suficiente para afundar o seu focinho e fazer o globo ocular preso em seu cranio saltar para fora. Depois disso continuou socando sem parar, até que muito sangue espirrou em seu rosto, peito e mãos. Estava completamente vermelho, não apenas por conta de seu poder como também pelo líquido escarlate.

Foi aí que sentiu seu corpo enfraquecer. Alguém estava lhe levando. Ele olhou para trás e viu Nebeque lhe lançando algum poder. Estava lhe tranquilizando, lhe apagando. Ele iria morrer. Sim, sabia que iria.

 

Queime a Terra! Queime o mundo! Queime a alma deles!

 

Seu corpo ficou ainda mais quente, sua chama ficou ainda mais poderosa. Todos da arquibancada tiveram que sair correndo para se distanciar do calor excessivo que vinha do garoto. Mas antes de saírem, antes do rapaz apagar e os juízes arrumarem tudo, antes da normalidade, ouviram o garoto e sua voz que não era sua dizer:

— SE EU FOR, SAIBAM QUE VOU LEVAR CADA UM DE VOCÊS COMIGO!



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