Volume 1 – Arco 8

Capítulo 56: Cabum!

Diego estava novamente no banheiro masculino, matando aula, nos dutos escondidos, com sua amiga Rafaela. Ali dentro, no cantinho dela, haviam diversas luzinhas de natal piscando sem parar, servindo como a única fonte de iluminação.

Embora fosse fechado, o ambiente não era abafado, já que ali havia uma passagem de ar. Uma para frente, que daria em direção aquela espécie de “tobogã” que vinha da biblioteca até aqui, e para trás que dava para algum lugar do qual nem mesmo Rafaela saberia responder.

Ele fora até aquele lugar em busca de alguns concelhos, porém acabou recebendo bombas e mais bombas de perguntas por parte da ruiva.

— E então, ninguém mais vai participar dos torneios? — quis saber ela, os olhos arregalados.

— Tu, que sabe de um bocado de coisa, não sabe disso? Claro que não vamos. Não depois do que o Dani e o Lauro aprontaram no refeitório. Bando de idiotas. Ainda falaram que era para dar boas-vindas para os Executivos.

— Eu queria tá lá para ter visto o que eles fizeram. Você viu?

— Não.

— Nadica de nada?

— Não, garota! Não vi. Só sei que eles soltaram fogos dentro do refeitório e explodiu tudo, incluindo o vestido de uma Executiva-não-sei-das-quantas lá. 

Rafaela começou a rir baixinho, com a mão na boca para que sua voz não se propagasse até os cantos mais distantes e chamasse atenção desnecessária para seu esconderijo. Até ali ela tinha de se conter um pouco.

— Pare com isso, não foi nada engraçado — resmungou Diego. — Acabou sobrando para mim!

— Ah, sim. Você contou. — Ela passou a mão pelos olhos. — E o que vai fazer a respeito disso? Quer dizer, acho que você não querer lutar com seus amigos seja um ato bem nobre e tudo mais, mas é impossível mudar essa decisão. Vocês três foram os únicos que estavam fora dessa história.

— Eu nem tinha pontos suficiente para ir para a final! A Margô com toda certeza tinha. Agora, o Tiago? O Tiago não entraria na final nem se quisesse. Só teve uma luta o ano inteiro.

Rafaela se ajeitou, colocando sua cabeça no colo do rapaz, o encarando com aqueles enormes olhos amarelos de baixo para cima. Ela tinha um enorme sorriso em seu rosto; e se não fosse aquela cara de deslumbrada, certamente o rapaz a acharia muito linda.

— E o que quer que eu faça, Diego?

— Queria saber se tinha como reverter essa situação. 

Ele passou a mão pela juba desembaraçada da menina. Pensou que seus dedos iriam se prender no meio daquela tempestade de fios enrolados, porém se surpreendeu ao sentir que seus cabelos cor de fogo eram leves, causando uma boa sensação. Isso o motivou a continuar acariciando sua cabeleira. 

— A Margô tá furiosa comigo e com o Tiago depois do que a gente fez. Acho que ela odeia a gente. Quer dizer, tenho certeza. E, como se isso não fosse suficiente, vamos ter que lutar os três na final. Lá ela vai poder descarregar toda a raiva dela nas nossa fuças.

— Pois é só perder para os frios — concluiu a menina. — Se você perder e o Tiago também, é impossível que lutem juntos. 

— O problema é que não posso perder, ou se não a turma inteira vai querer me matar. E eu mesmo não quero perder. Quero que nossa turma ganhe a taça esse ano. Acho que assim a gente vai tirar o sorrisinho besta da cara daqueles frios nojentos.

— Nem todos os frios são nojentos, sabia?

Diego deu uma leve risada enquanto continuava a acariciar os cabelos da menina. Olhava atentamente para frente, de onde vinha o caminho escorregadio. Se lembrou da vez em que os dois se conheceram e que ficaram no telhado conversando enquanto ela arrombava a tranca de uma porta.

Então lhe veio a lembrança de que ela nunca lhe dissera sua cor. Na verdade, de todas as pessoas, ela era a única que ele nunca viu a cor da Hagar Selar. Isso lhe despertou certo interesse, principalmente por conta do último comentário que ela fez sobre os frios. Não, não faria sentido. Ela não seria uma fria. Seria?

— Rafa.

— Oi?

— Qual é a sua cor?

Ela riu.

— E isso importa? — Era verdade. Se ela fosse mesmo uma fria, que diferença isso faria? Não, não faria diferença nenhuma. — A propósito, sobre sua preocupação, acho que tenho uma solução. Se bem me lembro, é o diretor que escolhe aleatoriamente o nome das pessoas que vão participar do torneio. 

— Então tenho que conversar com o diretor para ele mudar de ideia.

— Sim, sim. Mas só vai conseguir isso se for acompanhado de um supervisor. E para sua sorte o Faramir já voltou da missão dele.

— Não quero falar com o Faramir — disse irritado. — Prefiro o Rodrigues.

— E por que disso?

Diego engoliu em seco. Não queria revelar ser por conta de um sentimento besta, tal qual o ciúme. Preferia acreditar que sua raiva pelo tão bem-visto e apreciado garoto era por conta de sua ausência em ajudar Margô quando ela precisava, mesmo sabendo que caso estivesse no Craveiro não poderia fazer muito.

— Porque sim — respondeu friamente. — Agora eu já vou indo…

— Fica mais um pouco — murmurou a menina. — Tá tão bom esse cafuné. Continua. Quer que eu faça em você também?

— Eu tenho que falar com o diretor, garota.

— Fala com ele no intervalo, quando o Rodrigues estiver livre. 

Diego deu de ombros e concordou, não tinha prestado atenção que ainda estavam em horário de aula. Encostou-se melhor nas paredes do duto e, com Rafaela ainda com a cabeça em seu colo, aceitou uma massagem em seus cabelos.

De certa forma, sentiu uma leve agonia pela menina, já que imaginou que o braço dela acabaria doendo por ter que se manter erguido, mas ela não reclamou, muito menos ele. E por um tempo os dois ficaram assim, fazendo carinho um no outro.

Até que por fim, no meio do silêncio, Diego adormeceu. E Rafaela também.

 

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Eram sempre os mesmos meninos que se sentavam ao redor de Faramir no intervalo. Era impossível não encontrá-lo, já que o bem-visto rapaz era quase totalmente branco, se destacando de qualquer um. Ao seu lado estava Rodrigues, um negro alto e quase tão elegante quanto o próprio Faramir. E mais ao lado, Lorena.

O coração do rapaz palpitava mais do que ele um dia admitiria ao se aproximar daquela mesa. Quando chegou perto o suficiente, tentou manter seu foco nos olhos de Rodrigues, embora ficasse prestando atenção a sua visão periférica, observando a garota também lhe encarando.

— Quero falar com o diretor, Rodrigues. — Ele viu de esguelha que Lorena franziu a testa.

— E do que se trata? — perguntou, com elegância. 

— Pessoal. Não é da sua conta.

Todos na mesa trocaram olhares. O rapaz teve de se esforçar muito para que os seus olhos não se encontrassem com os da menina, tão pouco com os de Faramir, que também o observava. 

— Quer ir comigo? — perguntou o negro.

— Sim.

— Não com o Faramir?

Ele engoliu em seco e apertou os punhos.

— Não.

Mais uma vez, todos da mesa trocaram olhares, dessa vez mais direcionados a Faramir. Depois Rodrigues se levantou, ajeitou seu terno e chamou o rapaz com o dedo, seguindo em frente, em direção aos elevadores.

Assim que Diego o acompanhou, passou ao lado de Faramir, que continuou a lhe encarar. O rapaz, apenas para mostrar algum tipo de intimidação, o encarou de volta. Nos olhos azuis como o céu, não viu nada além de admiração. Aquele não era um olhar que julgava, como era o caso daquele que Lorena estava lhe lançando, quase projetando faíscas verdes de seus olhos.

Em silêncio, os dois se dirigiram até os elevadores, onde subiram até o último andar. Assim que chegaram, Rodrigues bateu algumas vezes na sala dos diretores e esperaram que alguém abrisse. 

— Podem entrar.

Empurraram a porta e adentraram o local, Rodrigues na frente para fazer as apresentações. Diego pôde ver que a sala dos diretores era enorme, cheia de estantes formando uma biblioteca em miniatura. Mapas, ervas, esculturas e luminárias complexas se encontravam por toda a extensão da sala.

— Olá, diretor — falou Rodrigues com uma reverência. — O Jovem Murdock queria conversar algo pessoal com o senhor. 

— Mas, claro! Pode entrar, Diego. 

Quem o cumprimentava era o diretor Nebeque, justamente o homem que o rapaz queria ver. Não por conta de ser o avô de seu amigo, ao menos não somente por isso, mas sim por ser o único diretor a quem mais confiava, já que considerava os outros diretores, pessoalmente, “meia-boca”.

Ele estava usando as mesmas vestes que o viu usar da última vez, com aquelas estranhas pedrinhas de diversas cores penduradas na região de seu peito. Sua barba continuava quadrada e seus óculos também.

— Rodrigues, por favor, chame o Faramir. Quero falar com ele logo depois de conversar com o Diego, está bem?

— Sim, senhor. — E saiu fechando a porta atrás de si, deixando os dois a sós.

Uma coisa que essa sala tinha, diferente de todas as outras, era uma janela. E por ela chegou um estranho e feio corvo com uma cicatriz tenebrosa em um de seus olhos. Diego podia jurar que assim que o animal pousou na mesa do diretor, grasnou um sonoro e audível: “Cabum!” e “Mensagem nova!”

O rapaz se espantou, indo um pouco para trás. Talvez o som fosse de sua cabeça, já que o diretor não pareceu muito surpreso. Apenas acariciou a cabeça do animal e lhe deu alguma comida.

— Lembrança, não assuste nosso aluno — disse bondosamente o diretor para seu corvo. — Não se preocupe, Diego. Lembrança não lhe fará nenhum mal, posso garantir isso.

Não era de um mal feito a ele que o rapaz estava preocupado, mas sim com o fato do corvo ter falado. Como a ave não repetiu o ato, imaginou que devia ter ouvido incorretamente, o que era pouco provável. 

— Garoto com cicatriz! Cabum! — grasnou mais uma vez a ave.

Dessa vez Diego notou que não estava ouvindo coisas.

— Ele fala! — constatou. — Esse corvo fala!

— Anormal seria se não falasse, não acha? — Nebeque deu mais um pedaço de comida para a ave negra. — Todos os corvos são capazes de, de certa forma, falar. Isso se forem muito bem treinados. Por isso costumavam servir como bons mensageiros até algumas décadas.

 — Até algumas décadas?

— Você sabe como é o mundo — riu o diretor. — A tecnologia de hoje é ultrapassada no amanhã. Mas sou bastante ultrapassado, então gosto de velharias, igual a este corvo.

— E por que ele fala “cabum” o tempo todo?

— Ah! Sim, o pobre coitado já passou por poucas e boas comigo. Acabou aprendendo a falar isso depois de ouvir tantas vezes. — Ele deixou de dar mais explicações e se virou para o rapaz a frente. — E então, o que seria tão pessoal a ponto de querer falar comigo, Diego?

O rapaz pareceu ter acordado de seu leve estupor.

— Diretor, o senhor precisa tirar o Tiago do torneio. Urgentemente. Ele nem teria pontos para isso caso não fosse por aquela loucura do Dani e do Lauro. Fora que vai ser eu, ele e a Margô no mesmo torneio, o que significa que, se nós três ganharmos dos frios, vamos nos enfrentar. E é bem provável que ela acabe matando o Tiago. Não quero ver ele sofrendo. Mas também não quero que ele perca. Então... Por favor, tira ele.

Nebeque respirou fundo, relaxou os ombros e encarou o rapaz a sua frente com certa complacência. Mesmo assim, a resposta foi longe do que Diego estava esperando.

— Sinto muito, mas a minha resposta é não.



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