Volume 1 – Arco 5
Capítulo 37: A Risada
Ao lado de Tiago, cheio de bolo de chocolate em sua boca, Diego paralisou. O som do ambiente em sua volta nem parecia mais existir, graças a revelação que o seu amigo tinha acabado de lhe dizer.
Ele perguntou, incrédulo:
— Tem um nocivo no Craveiro?
Tiago se virou para ele, ainda demonstrando em sua face uma nítida pena por Fabio que passava mal e aparentemente estava enlouquecendo, e respondeu:
— É o que ele diz. Mas deve ser coisa da cabeça dele.
— Não, não — interrompeu, ignorando completamente o bolinho. — Me diz, como ele pode saber disso? Ele sente? Ele tem uma consciência? Ele vê?
— Calma, Murdock. — O loiro levantou uma sobrancelha e ajeitou os óculos, um tanto confuso. — O Fabio já participou de algumas missões mirins com a família, então tecnicamente ele sabe qual é a sensação de nocivo. — Assim que disse isso, ele notou que o rosto de Diego ficou mais preocupado. Por isso ele acrescentou: — Mas isso está errado. Não tem como um nocivo entrar no Craveiro.
O rapaz ignorou as últimas palavras e começou a pensar no que estava acontecendo por ali. A pouco tempo havia de fato se encontrado com uma besta e isso não parecia ser coisa de sua cabeça.
Ele se virou para Tiago, com um olhar sombrio.
— Eu preciso te falar uma coisa. É sobre o que aconteceu hoje, mais cedo. — Dando uma pausa e encarando os olhos claros do amigo, ele disse: — Eu vi um nocivo, mesmo, sério!
Tiago não pareceu entender direto. Encarou o rapaz com incredulidade.
— Do que você está falando?
— Me escuta — pediu o rapaz, se aproximando ainda mais do amigo, pronto para lhe contar baixinho sobre tudo que aconteceu. — Hoje, quando eu tava na sala do professor, eu ouvi uma coisa estranha, um assobio de longe. E eu segui esse assobio por um duto… E tava tudo escuro, mas ai eu caí em uma sala cheia de arquivos e… — Ele pensou se acrescentaria a parte na história onde achava sobre sua família. Achou melhor não fazer agora. — E aí ele estava lá. Uns olhos gigantes e amarelos, uma luz azul no peito.
O loiro encarou Diego como se este também estivesse falando asneira.
— Uma luz azul no peito?
— Eu tô falando sério! Eu quase morri. Até cortei de novo a minha cicatriz…
Então ele pôs a mão mais uma vez sobre a marca, porém ela estava fechada, como sempre esteve.
— Nocivos não tem luz azul no peito, Murdock — disse Tiago, em tom preocupado, como se estivesse falando com uma pessoa muito doente. — E os que tem olhos amarelos são muito fortes. Como você conseguiu sair de lá vivo?
— Eu corri, é óbvio. — Estava começando a se irritar com as perguntas terapêuticas do rapaz. — Dai eu subi em uma estante de metal e votei para o duto. O bicho quase me pegou de novo. Aí eu voltei para a sala do professor e pronto.
Tiago soltou um bufo que mais parecia uma risada.
— Não ria — disse Diego. — É verdade!
— Tá bom, eu não vou rir. Mas vamos encarar logicamente. O que você estava fazendo antes de ouvir o assobio?
— Dormindo — respondeu irritado, mas desejou que não o tivesse feito. Já sabia para onde iria o rumo da conversa a partir dali.
— Então tudo não passou de um pesadelo.
— Eu sei o que vi, você não estava na minha pele! — resmungou, sem muita força. Estava começando a ceder. Talvez estivesse mesmo sonhando, pois sabia que tinha a sorte de sonhar com coisas como aquelas.
— Murdock, nocivos não assobiam. Eles rosnam e rugem. Só.
— Mas esse assobiava! E para de me chamar de Murdock!
Tiago soltou uma risadinha que saiu sem querer. Ele tapou a boca com as mãos e depois tentou se manter firme.
— Foi só um sonho. E relaxa, isso é normal. Você tem mesmo uns sonhos esquisitos.
— Eu sei muito bem o que vi, e achei que podia contar com você para me ajudar, mas parece que você só quer se divertir da minha cara!
Agora o loiro parecia afetado. Ele tentou adotar um outro tom a conversa.
— Isso não é verdade. Se você realmente viu um nocivo aqui, então por que não reporta para os diretores? Eles iam investigar o assunto.
Imediatamente ele pensou em Nebeque e em seu jeito gentil. Talvez ele lhe desse ouvidos, porém era provável que sua resposta fosse parecida com a de Tiago: Que aquilo foi apenas um sonho.
Depois pensou no problema que isso poderia causar se fosse espalhado para os outros professores: Diego e Fabio achando que existiam nocivos dentro do Craveiro. Seria um novo apelido para se espalhar por aí.
E mais uma vez pensou no que teria de confessar para haver verossimilhança em sua história.
Primeiramente teria de falar que dormiu na sala do professor ao invés de apenas fazer os deveres de reforço como tinha de fazer. Depois teria de dizer que andava pelos dutos do Craveiro, e mais uma vez teria de dizer que fora parar em uma sala, aparentemente secreta cheia de arquivos importantes.
Com certeza ele não iria admitir aquelas coisas para ninguém. Podia se meter em ainda mais problemas e consequentemente ser banido de vez do Craveiro, ao invés de uma simples suspensão.
— Se nem você, que é meu amigo, tá acreditando, imagina eles — concluiu, atacando o emocional do loiro, apenas para ver se ele se sentia mal. Um golpe baixo.
— Não é questão de acreditar ou não…
— E qual é a questão? — Ele encarou o amigo com raiva. — Vai logo ajudar o Fabio, ele tá para morrer ali.
E apontou para o rapaz, que estava encostado na parede, as mãos na cabeça e na barriga, tentando se recuperar. Tiago apenas assentiu com a cabeça e foi em direção ao rapaz se despedindo com um:
— Tá bom, volto já.
E ele se foi, levando Fabio e conversando com ele conforme iam avançando para a porta de saída.
Diego voltou a sua atenção para os bolinhos, comendo eles com fúria. Então olhou mais uma vez para a multidão ao seu redor, de modo a reconhecer algumas caras.
Achou Igor e Sanches comendo salgados, os dois estavam vestidos com uma roupa que lhes deixava parecendo um balão. Era mais engraçado ainda o curativo que Igor usava ao redor da cabeça, pois mesmo após meses os ouvidos dele não se recuperaram totalmente. Tudo isso graças aquela bruxa da Prof. Ramirez.
Por sorte, Diego não viu ela em lugar nenhum. Conseguiu achar Dani e Lauro, vestidos de forma elegante. Dani com um terno muito grande e Lauro com uma roupa tão apertada que daria para ouvir os gritos exaustivos dos botões de sua camisa listrada.
Então ele voltou sua atenção para o grupo de Faramir. Lorena estava com eles, apenas escutando, sem de fato prestar atenção na conversa. Parecia profundamente aborrecida com algo, ou alguém. Diego também ficou aborrecido consigo mesmo.
Ora, por qual motivo iria se aborrecer com a frustração de Lorena? Ele mal a conhecia direito e tudo que sabia era sobre ela brilhar demais e falar muito.
Ele fixou sua atenção para o meio da pista de dança, onde a Prof. Domingues dava aula de como dançar de verdade. E foi rindo dela e a encarando que o rapaz viu uma pessoa incrivelmente chamativa, plantada no chão, e mesmo que alguns outros a chamassem, ela apenas falava alguma coisa e a pessoa desistia.
Ela devia ter sua idade. Tinha um vestido amarelo, bonito de fato. Fora isso, a coisa que mais chamava a sua atenção era os cabelos da moça, ela tinha mechas de cabelos pretos e outras mechas muito loiras. E Diego podia jurar que viu as partes loiras mudarem de cor. Ele piscou e balançou a cabeça. Devia estar pensando de mais.
— De olho na filha alheia, Murdock? — falou uma voz com tom maligno. Assim que o rapaz se virou em direção a ela, viu que era Galadriel. Estava com um sorriso presunçoso na voz.
— O que tu quer? — perguntou, sem mais rodeios. — O seu grupinho não estava legal e resolveu vir me aborrecer? Não estou com muita paciência hoje!
— Calma, não precisa disso. — Ele levantou os braços para cima, ainda com o sorriso no rosto. — Só queria te ajudar.
— Me ajudar? Isso é alguma pegadinha?
— Não, é a mais pura verdade. — Ele colocou as mãos para trás e começou a andar rodeando o rapaz, o encarando de baixo para cima. — Veja bem, depois de passar um tempo com você, na suspensão e tudo mais, eu tive muito tempo para refletir. E acho que nós dois até que temos muitas coisas em comum.
— Uma pegadinha sem graça, Galdriel. Me diz logo o que você quer, assim a gente pode partir para os finalmente.
— Você é muito desconfiado sabia? Pois muito bem. — Ele se ajeitou, passando a mão pelo seu terno preto com algumas linhas vermelhas e dizendo: — Eu quero pedir desculpas. Andei pensando sobre o que aconteceu com o Tiago e lhe garanto que nenhum dos meus amigos nunca mais vão mexer com ele de novo. Muito menos eu.
Diego se afastou, dando dois passos para trás e encarando o rapaz de forma desconfiada. Estava quase querendo soca-lo.
— Ah, claro! Depois de tanto tempo você vem me pedir desculpas e falar isso. Por que não pede desculpas para o Tiago? — Ele apontou para a saída, por onde o rapaz fora, prestando ajuda para Fabio. — E eu não preciso que você mantenha seus amigos longes dele. Eu posso fazer isso sozinho! — Ele mostrou os punhos fechados em direção ao garoto.
— Sinto muito — disse Galadriel, com um tom incrivelmente sincero, embora ainda estivesse com um olhar maligno. — Estou falando sério. É bem possível que o Leo e a Mini sejam expulsos por conta disso até. E eu não quero que eles sejam.
Foi aí que Diego viu uma grande vantagem. Se os amigos de Galadriel estavam sob ameaça de serem expulsos, isso significava que seriam punidos pelo que fizeram a Tiago.
Ele não queria que Leo e nem Mini fossem expulsos, embora a ideia não lhe parecesse ruim, mas usar isso como ameaça seria excelente. Claro, contando que Galadriel estivesse falando a verdade. Diego apostou que não.
— Entendi, uma pegadinha. — O rapaz olhou ao seu redor. — Onde estão as câmeras?
Galadriel sorri.
— Vim te ajudar. Eu vi que você andou reparando na Margô. — Ele apontou com a cabeça em direção a menina de vestido amarelo. Então o rapaz da cicatriz se lembrou do nome. Era Margô, filha de Orlando Rosa, aquele homem que andou conversando na sala dos diretores.
— Eu não estava reparando — retrucou o rapaz. — É só que o cabelo dela chama a atenção.
— Sim — concordou Galadriel. Era estranho que os dois estivessem concordando, por mais que de maneira falsa. — O meu irmão e o amigo dele, o Rodrigues, foram conversar com ela.
— E eles conseguiram? — Diego ficou surpreso. Todas as pessoas que ele via se aproximar da moça acabavam indo embora rapidinho, sem que ela trocasse muitas palavras. Margô não era do tipo que dava bola para muita gente.
— É claro que sim, estou falando do meu irmão. — Ele deu um riso, voltando com seu tom maligno. — Eles falaram que ela é tranquila de conversar, contanto que você saiba como fazer isso, é claro.
— Ah, é? Existe uma configuração específica para ela? — perguntou com sarcasmo. — Não sabia disso.
— É sério. Você sabe que a Margô é asiática, não sabe?
— Os Rosa são asiáticos? — perguntou, confuso.
— Não os Rosa, eles são daqui mesmo. Mas os Kayka são, e a mãe dela é uma.
Então Diego se lembrou da explicação de Rafaela, lhe dizendo que Margô vinha da Sakura, uma associação do Japão. Ou ao menos era assim que ele se lembrava.
— Então ela só fala com pessoas em japonês — concluiu Galadriel. — É que ela não entende muito bem o espanhol ainda. Daí é por isso que ela dispensa os outros tão facilmente.
— Tá, mas e daí? Eu não sei falar essa linguá.
— Mas não precisa aprender. — Agora o rapaz estava realmente com malicia nos olhos. — É só falar para ela uma coisa, que então ela vai te entender e assim você vai até poder dançar com ela.
— Eu não quero dançar com ela.
— Mas deveria. Se você conseguir chamar ela para dançar, então vai chamar a atenção de todo mundo. Você vai ser o cara-que-dançou-com-a-Margô.
— E por que o Faramir não dançou com ela? — perguntou, de modo desafiador.
— O meu irmão não dança com ninguém. Tá vendo a Lorena ali? — Ele apontou para o grupo de Faramir, e assim que Diego olhou para a menina que brilhava, seu coração errou um compasso. Ele ficou enfurecido por conta daquilo. — Ela tá irritada com meu irmão porque ele não vai dançar com ela.
— E por que ele não dança com ela? — repetiu, mais uma vez, incrédulo e com um pouco de inveja.
— Porque ele não dança com ninguém — respondeu Galadriel, quase perdendo a paciência. — Fora que ele é muito alto para ela… Você tá me ouvindo?
Diego voltou a sua atenção para o garoto pálido a sua frente mais uma vez e disse como forma de desafio:
— E então por que você não vai lá e faz isso aí, o que quer que seja, e dança com ela?
— E-eu? Dançar com a Margô? — Galadriel ficou repentinamente agitado. Sua cor pálida ficou um pouco mais rosada. — Eu nem conheço ela. Fora que a Mini ia ficar irritada se eu dançasse com ela. Não que eu me importe muito com o que aquela baixinha pensa…
Diego franziu a testa. Galadriel falava mal de sua amiga para os outros. Mais um sinal de mau-caratismo.
Então ele voltou na proposta. Dançar com Margô realmente lhe traria alguma atenção. Talvez mais respeito. E talvez acabasse chamando a atenção de outra pessoa.
— E o que eu falaria para ela? — Ele se corrigiu. — Supondo que eu vá mesmo.
— É fácil. Repete comigo…
Ele falou algo. Diego não entendeu muito bem, mas repetiu e repetiu até que uma hora conseguiu sair algo parecido com aquilo.
— Isso — disse Galadriel, cheio de malícia na voz. — É só chegar nela e dizer isso que pronto, ela é sua.
Aquilo o entregou. Diego ficou enfurecido. Estava mesmo achando que era uma pegadinha.
— Você não é muito bom em mentir, não é? — falou o rapaz. — Eu não vou falar algo que não sei o significado para outra pessoa.
— Ah, vamos. — Galadriel insistiu. — É só repetir comigo…
Então uma outra voz surgiu na conversa e falou exatamente o que o rapaz pálido havia dito no outro idioma.
— É isso mesmo? — Era Rafaela, que estava logo atrás dos dois. Ela encarou Galadriel com os olhos hipnóticos, fascinados. — Ensinando o Diego a falar japonês, Gabriel?
— Arh… É… Mais ou menos isso — respondeu com um meio sorriso. Ele parecia muito assutado.
— É, ele disse para eu ir falar isso para a Margô.
— Verdade? Interessante. — Ela olhou para Galadriel, o olhar lhe encarava tão profundamente que até mesmo Diego estava se assustando.
— Você sabe o que significa, não é? — perguntou Diego. — É alguma coisa idiota, não é?
Rafaela continuava encarando o Balthazar a sua frente. Depois voltou sua atenção para Margô, e por fim olhou para Diego.
— Verdade. É um pouco idiota sim. — Então ela sorriu, com gentileza. — Mas até acho que é um boa ideia você falar isso para ela. Tenho certeza que ela vai prestar atenção em você.
Então Galadriel, que antes ficou assutado, esboçou um sorriso enorme em seu rosto, quase pulando nas pontas dos pés.
— Está vendo, Murdock? Minha dica foi aprovada até pela Raposa.
Diego encarou Rafaela com desconfiança. Será que ela não estaria fazendo um favor ao outro garoto?
— Você tem certeza que eu não vou passar vergonha, Rafaela? — Sua voz saiu séria e dura.
— Você confia em mim?
Ela lhe olhou com aqueles grandes olhos amarelos. O rapaz ficou pensativo por um momento e depois assentiu com a cabeça.
— Confio. — Depois olhou para Galadriel. — Tá bom, eu vou então.
Ela esboçou um sorriso. O outro garoto deu um sorriso maior ainda, quase não conseguia contar a alegria que sentia.
Diego deu de ombros e foi em direção a Margô, ouvindo ao longe o pálido rapaz dizendo: “Vai que é tua” e sorrindo de forma presunçosa. O rapaz da cicatriz tentou não se concentrar naquilo. Rafaela era de confiança e ele confiaria nela. Faria essa aposta.
Enquanto chegava mais próximo da mesa, treinando em sua cabeça as palavras estranhas, notou o tom de tédio que vinha de Margô. Ela estava escorada em uma das mesas do banquete e comia alguns salgadinhos despreocupadamente. Ao seu lado havia uma cadeira, onde ela se sentava ocasionalmente.
Assim que ela notou sua presença e o encarou, o rapaz percebeu nos olhos puxados da moça. Ela te fato era muito bonita. A expressão dela era de puro tédio, mas quando Diego se aproximou, ela levantou uma sobrancelha.
Ele estava seguindo os passos de dança que Selena havia lhe ensinado.
Primeiramente ele estendeu sua mão direita, e ela lhe estendeu a esquerda cordialmente. O rapaz segurou sua mão, que estava coberto por uma luva amarela que ia até o cotovelo da moça, e gentilmente acariciou as costas de sua mão com o polegar. A feição de negação dela se transformou em surpresa.
Ele sabia ser para ele beijar a mão da moça, porém resolveu pular esse passo. Não gostava de ter de beijar a mão de ninguém.
Então ele partiu para os finalmente, murmurando as palavras que tinha aprendido com Galadriel.
Quando terminou, ela o encarou confusa. Depois sua expressão foi de iluminação e depois um sorriso se abriu em seu rosto de mármore.
Depois disso, Diego passou uma bata de uma vergonha. Margô havia simplesmente quebrado, as mechas de cabelo loiro ficaram em um amarelo muito vivo.
Ela colocou a mão na boca e começou a gargalhar muito alto. A risada dela era tão alta que chamou a atenção de todo mundo, pois o som de sua risada estava se sobrepondo a música.
Era estridente e exagerada. Parecia com a do pai dela. Era um audível: Quiá…! Quiá…! Quiá…!
E todos, sem exceção, olharam para aqueles dois.