Volume 1 – Arco 4

Capítulo 23: Aceitar As Regras

Tudo estava em um grande silêncio ali no ringue. Diego tinha iniciado um golpe e Alastor contra-atacou. Quem acertasse primeiro decidiria o desfecho da luta. O rapaz sabia disso, então por qual motivo estava tudo tão quieto?

Diego realizou que seu punho estava a centímetros de distância do queixo de Alastor. Porém não seguia, estava parado. Não tinha acertado. Por outro lado, o martelo de Alastor, que tinha um alcance maior por conta do cabo, estava afundando o seu rosto.

Enquanto o rapaz era lançado contra o chão, as pessoas pareciam ter prendido a respiração. A boca de Diego estava aberta, salivando. Mas ele nem estava ciente disso. Sua visão escureceu, e um mundo negro tomou conta de todo o ambiente mais uma vez. O brilho em seu olhar se perdeu.

Enquanto afundava no redemoinho negro e infinito, Diego começou a pensar em Tiago por algum motivo. Principalmente no conselho do loiro. Tinha razão no que se referia a Alastor, o garoto-cervo não era alguém para se subestimar, já que era esperto o suficiente para prever os passos ingênuos de Lauro e Dani.

Como ele queria voltar no tempo para pedir conselhos a seu amigo. A partir daquele momento, prometeu que jamais ouviria um plano sem ser de autoria de Tiago.

Enquanto caía, pensou em quanto ainda não gostava de Selena, e como tinha fracassado em tentar vingá-la. Aquela raiva ao ver as barbaridades cometidas por Alastor tinha sumido. Talvez Sheila ficasse muito chateada com o rapaz, por ter perdido daquela maneira. Ou quem sabe começasse a sentir pena dele.

O mundo foi ficando mais branco, e mais branco. Era o piso do ringue, branco como a neve. Era quase como se fosse um brilho que estava lhe cegando. Então, antes de dar de cara no chão, a centímetros disso acontecer, ele se lembrou do brilho que emanava daquela menina sentada ao lado dos Baderneiros.

Talvez ela zombasse dele e ficasse feliz por Alastor ter ganhado. Ou talvez achasse a atitude tão assombrosa que reprovasse a vitória do garoto-cervo. Era mais provável a primeira opção acontecer. Que pensamento estranho. Claro que ela apoiaria os frios.

Pare de ser covarde, e venha lutar!

Aquela voz era nova. Era humana, grossa, alta e retumbante. É verdade, ele se lembrou dos sonhos estranhos e da alucinação que acabou de ter. Talvez tivesse sido causado pelos efeitos do veneno que seu tio lhe dava. Pensava que esses dias no Craveiro tivesse desintoxicado todo o seu organismo.

Pensar aquilo lhe deixava irritado. Verdadeiramente irritado. E ele sentia como se a raiva não fosse sua, mas de alguém mais poderoso, mais forte. 

Seu coração batia rápido, seu corpo ficava quente, tão quente quanto carvão em brasa, e suas roupas começavam a feder a queimado.

Pare de ser covarde!

Diego colocou as duas mãos no chão e parou a sua queda repentinamente. Sentia a fúria lhe dominar, a coceirinha atrás de sua nuca lhe dizendo para seguir em frente. Empurrou o corpo com os braços e arranjou impulso para ir com toda velocidade para cima de seu oponente.

— EU NÃO ACREDITO! DIEGO VAI ATACAR?!

Alastor esboçou um olhar incrédulo, quase cômico. Seu sorriso tinha desaparecido, seus olhos continuavam arregalados, porém não era a usual feição maníaca, era medo.

Diego posicionou um pé à frente do corpo, o outro atrás. Girou os quadris de modo perfeito, rotacionando todo o seu corpo, criando embalo para o seu soco, que veio queimando o ar, deixando um rastro de fumaça cinza no caminho. Aquele golpe estava quente, muito quente.

Alastor achava que havia ganho, por isso relaxou. Não sabia que seu inimigo tinha forças para lhe atacar com mais um golpe, um rápido e mais pesado que qualquer outro. Tomado pelo desespero, Alastor tomou uma decisão rápida, seu último triunfo: Os braços estendidos, os dois dedos mindinhos levantados. O garoto-cervo havia se rendido.

Aquilo era ruim. Diego estava com uma falta, e por mais que já tivesse vencido, seria desclassificado se desse um soco em Alastor. 

Mas ao invés de recuar, tentar parar, sua raiva apenas aumentou, e seu punho viajou com ainda mais velocidade em direção ao rosto de Alastor.

— ALASTOR DESISTIU… NÃO!!! — Mas Gutierrez pelo visto não foi rápido o suficiente para impedir, assim como fez com Selena; ou então não quis ser.

Diego afundou seu punho no rosto de Alastor. O golpe fez um impacto tão forte que o ar ao redor deles se dispensou, como uma onda de choque. Os pés do garoto-cervo saíram do chão, seus os olhos quase se projetaram para fora do crânio. Diego colocou mais força.

Alastor foi lançado a dois metros acima do chão, girando no ar. Seus pés foram para o alto enquanto sua cabeça foi para baixo, em direção ao piso do ringue. Lançado para longe, caiu de cabeça no chão, tombando, emborcado, como um carro capotando. 

Quando parou de rolar, seu estado não era um dos melhores. Seu sorriso tinha dado lugar a uma feição de dor, seus olhos estavam revirados para dentro, e um de seus chifres de cervo havia quebrado.

O silêncio que se seguiu fez Diego se acalmar. Respirava pesado, sem saber qual seria o próximo passo. Mesmo desclassificado, não iria ficar triste. Todos viram do que sua força era capaz. Todos entenderiam a mensagem. Agora ele só se perguntava que outros apelidos as pessoas lhe dariam, até que finalmente ouviu-se a multidão:

 

   H 

      O 

         A 

            A

              A 

                 A 

                    !

                      !

 

“Isso aconteceu de verdade…?”; “O cara rodou no ar…!”; “Eu não acredito que acabou!”; “Isso foi INSANO…!”, eram os comentários que se ouviam aqui e ali.

Diego ficou assustado. Não entendeu como as pessoas estavam tão felizes, alegres, festejantes. O clima não era de pesar ou raiva de que ele tivesse perdido, mas sim de vitória. 

Enquanto olhava de um lado a outro para as pessoas que aplaudiam e assobiavam, seu corpo começou a enfraquecer e ele teve de ser amparado por Dani e Lauro.

— Boa luta, parceiro! — animou Lauro. — Você foi demais!

— Apesar dos pesares, tenho de concordar — disse Dani. Era evidente que estava desapontado, porém se contorcia ao máximo para manter um tom positivo. — Agora a nossa turma vai saber que não é bom subestimar a sua força.

O rapaz da cicatriz apenas acenou a cabeça, cansado demais para se mover. Um de seus olhos estava tão inchado que mal conseguia ver qualquer coisa por ele. Enquanto era levado para um dos cantos do ringue, pois não era capaz de voltar ao vestiário, esperando o resultado da luta, reparou nos frios.

O pessoal dos frios estavam quietos, de cabeça baixa e conversando calmamente uns com os outros. Balançavam a cabeça em negação e soltavam algumas risadinhas debochadas enquanto olhavam para todo o estardalhaço que os quentes estavam fazendo.

Sabiam que tinham ganhado, porém sabiam mais ainda que jamais seriam capazes de fazer um espetáculo tão grandioso quanto aquele. 

Ao ver Galadriel, braços cruzados, rosto fechado e falando com raiva, Diego esboçou um sorriso.  Leo, de alguma forma, estava se divertindo à custa do garoto pálido.

E ali ao lado estava aquela menina que brilhava. Ela estava com uma expressão dura, como se desaprovasse tudo que tinha visto ali, do início ao fim. Diego ficou se perguntando o motivo dela ter vindo se não gostava do que estava vendo. 

“Bom”, pensou. “O Tiago também não gostava, e estava aqui por minha causa… Será se a Maria era amiga dela?”

Então, após retirarem o corpo inconsciente de Alastor do ringue, o Prof. Gutierrez subiu. Diego achou bom estar sobre o ringue, já que poderia ter uma visão privilegiada de todas as pessoas a sua volta. Mesmo que estivesse prestes a perder, sabia que aquilo causaria um impacto nos frios.

— FOI UMA LUTA E TANTO, MEUS AMIGOS! — começou Gutierrez. — AQUILO FOI SIMPLESMENTE INCRÍVEL. MAS VOCÊS SABEM COMO SÃO AS COISAS, REGRAS SÃO REGRAS. E NÓS DEVEMOS ACEITAR AS REGRAS! 

Ele tinha uma voz meio irônica, o que causou uma pequena crise de risos abafados em Diego, mas não durou muito. A cabeça do rapaz estava doendo tanto que qualquer coisa que fizesse doía.

— O SENHOR BLIZE DESISTIU DA LUTA E FOI ACERTADO PELO SENHOR MURDOCK. O QUE SIGNIFICA UMA FALTA. — Os protestos dos quentes começaram. — COMO MURDOCK JÁ TINHA UMA FALTA, SIGNIFICA QUE ELE FOI DESCLASSIFICADO, MESMO GANHANDO. — Quando as vaias começaram a aumentar o professor ressaltou: — REGRAS SÃO REGRAS, E NÓS DEVEMOS ACEITAR AS REGRAS. SENDO ASSIM, A VITÓRIA SERÁ DADA ÀQUELES QUE TEM O MAIOR NÚMERO DE PONTOS. 

Ele começou a ajeitar a voz para dar a notícia. Diego simplesmente queria que toda aquela situação acabasse de uma vez por todas.

— E O VENCEDOR, COM O MAIOR NÚMERO DE PONTOS ACUMULADOS DURANTE A LUTA É DO LADO DOS FRIOS, MARIA... — Então ele gaguejou repentinamente. — O-o que foi?

Diego olhou para o professor, e viu que ao pé dele estava Tiago. Dani e Lauro que estavam do seu lado comentavam baixinho “O que aquele quatro-olhos veio fazer aqui?”.

— É mesmo? — começou o professor, ouvindo secretamente tudo que o loiro tinha a dizer. — Intrigante… E como foi que isso aconteceu…? Mas você tem certeza, senhor Nebeque...?

Aquele mistério todo já era de mais. Diego não conseguia ouvir os sussurros por conta dos murmúrios e gritaria que vinham de toda a multidão. O Prof. Gutierrez estendeu a mão para o alto pedindo silêncio. Então ele deixou seu microfone de lado, dizendo que iria voltar dentro de cinco minutos e que não era para ninguém sair.

Nesse meio tempo, todos viram Tiago arrastar Gutierrez para vários cantos do ringue. Uma determinada hora, o professor chamou Kisley e eles conversaram em particular. Diego não podia ver muito bem, mas conseguia distinguir um tom de raiva em seu rosto enquanto conversava baixinho com o garoto de ombros largos.

— O que ele está fazendo, Diego? — perguntou Dani.

— Sei tanto quanto você — respondeu.

Todos podiam ver Tiago com os braços cruzados, um tom de indignação encarando Kisley, que estava com cara de quem recebia o maior esporro da vida dele, embora ninguém pudesse ouvir nada graças aos comentários incessantes da multidão.

Ah, não. Aquilo não podia ser real. Será se o loiro, que Dani e Lauro acreditava que seus planos eram infundados, estava mesmo ajudando Diego?

Diego teve a resposta quando Gutierrez voltou para o ringue, pegou seu microfone, testou e então falou para todas as pessoas com seu vozeirão:

— TIVEMOS ALGUMAS MUDANÇAS, AMIGOS! ACABO DE DESCOBRIR, POR MEIO DA MINHA EQUIPE DE PERÍCIA — Gutierrez olhou ligeiramente para Tiago e deu um sorrisinho — QUE ALASTOR BLITZE ESTAVA TRAPACEANDO DURANTE O RINGUE. O QUE SIGNIFICA QUE SUA PARTICIPAÇÃO INTEIRA NO TORNEIO SERÁ ELIMINADA.

Protestos e mais protestos, dessa vez vinda dos frios. Os alunos quentes mal falavam nada, já que estavam tão surpresos, tão atônitos com a repentina mudança, que pelo visto tinham se esquecido de como se falava.

— CALMA, MEUS AMIGOS. CALMA. VOCÊS SABEM COMO SÃO AS COISAS: REGRAS SÃO REGRAS. E NÓS DEVEMOS ACEITAR AS REGRAS. — Gutierrez olhou para Diego, que estava sentado ali no seu canto, com a boca aberta e olhos saltados de surpresa. Então, ele apontou para o rapaz e disse: — SENDO ASSIM... É COM MUITO PRAZER QUE VENHO ANUNCIAR, QUE O VENCEDOR DO TORNEIO MATINAL DO CRAVEIRO É, DA EQUIPE DOS QUENTES, DIEGO MURDOCK!

E foi aí que Diego se perdeu no meio de aplausos, urros, berros, gritos e assobios. Tiraram Diego de cima do ringue e começaram a lhe carregar no ar, o levantando para cima e para baixo, sem se importar com as dores em seu corpo.

Não importava. O rapaz estava tão anestesiado com o que tinha acabado de acontecer, que tudo que sentia era o seu coração querer sair pela boca. Enquanto uma multidão de pessoas lhe levava para fora, dando abraços, tapinhas nas costas e lhe erguendo diversas outras vezes no ar, ele se virou para encarar algumas pessoas.

Primeiramente viu Tiago, feliz e todo vermelho, tentando comprimir um sorriso que ia de orelha a orelha. Dani e Lauro não paravam de pular enquanto iam em direção ao refeitório.

Depois viu Leo, que estava rindo e dando aplausos, mais para irritar Galadriel — que estava tão zangado que começou a gritar com qualquer um que estivesse à sua frente — do que por qualquer outra coisa. Alguns frios também não estavam contentes com os deboches de Leo.

E bem de longe ele viu o brilho daquela menina, se distanciando. Ele não conseguiu ver a reação dela, e isso lhe deixou curioso, por algum motivo. Então balançou a cabeça e deixou a ideia de lado. 

Depois de passar na enfermaria, foi direto ao refeitório, onde foi ovacionado por diversos alunos quentes, de vários anos diferentes. Tapinhas nas costas, palavras de incentivo, e até alguns acenos de cabeça de alguns alunos mais velhos frios. Ele se sentou ao lado de Tiago, que estava com o rosto um tanto altivo.

— Vai, pode falar — disse Diego.

E saboreando cada sílaba, Tiago disse:

— Eu. Avisei. — Ele deu um sorriso e voltou a comer, animado. — Eu disse para você as coisas que deveria fazer, não falei? 

— E olha só como eu estou. — E apontou para todas as suas feridas não curadas.

Eles riram e se divertiram durante toda a tarde. Durante muitos dias todos ainda tinham em mente a luta incrível que Diego tinha realizado, as artimanhas de Tiago e os planos estúpidos de Dani e Lauro. 

Por muitos dias, Diego soube o que era receber bons apelidos. Não com intenção de lhe diminuir, mas para engrandecer suas conquistas. 

É claro que os professores também ficaram sabendo, e embora não pudessem dizer “Você foi incrível" já que tinham de manter neutralidade, deram um simples “Parabéns.” Alguns com mais intensidade e energia que outros.

Porém é claro que havia uma professora que Diego mais detestava no mundo, e que adoraria ouvir algum tipo de parabenização saindo da boca dela. Ela também sabia sobre sua performance, afinal, todo o Craveiro sabia.

Assim que o rapaz se encontrou com Rúnica pela primeira vez, achando que a veria se rebaixar para lhe parabenizar, teve uma nova surpresa: Ele constatou que aquela professora era de fato maligna até os ossos.



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