Volume 1 – Arco 3

Capítulo 13: A Cor da Hagar Selar

Diego estava sentado em sua mesa observando Tiago em pé, zangado por algum motivo do qual o rapaz não compreendia. Tudo o que conseguia entender até ali, era o fato do loiro estar passando dos limites com seus pedidos.

— Como é? — perguntou o da cicatriz, incrédulo com a coragem de Tiago, o seu novo amigo, exigindo algo como aquilo. Na realidade, bem no íntimo, Diego não acreditava que o loiro fosse corajoso o suficiente para exigir qualquer coisa.

— É-é… quer dizer... — Além da peculiar postura, o loiro trazia em suas costas uma mochila robusta e de aspecto pesado; aparentando carregar diversos livros. Logo o rapaz se sentou e pôs a mochila de lado. — Murdock, eu não acho boa ideia você falar com a Rafaela. 

— Por que não?

— Ela é perigosa! Já recebeu um bocado de advertências!

— Eu também já recebi advertência! 

Tiago fez uma cara feia ao ouvir isso. De fato, não era um argumento muito bom, isso Diego tinha de reconhecer.

— Mas ela é sinônimo de confusão. Os outros até apelidaram ela de…

— Raposa, eu sei — interrompeu, já farto de todos aqueles comentários. — Ela me disse. Mas olha...

— E-espera... você sabe o porquê chamam ela assim? 

Aquela questão lhe pegou de surpresa. Não havia tido tempo para fazer essa pergunta. Entretanto, o rapaz nem sequer havia pensado em questioná-la sobre isso.

— Porque ela traiçoeira igual uma raposa — respondeu o loiro, finalmente. — Não se pode confiar na Rafaela ou então ela vai te deixar na mão. 

— Se ela fosse mesmo assim já teria me deixado na mão há muito tempo.

Diego pensou que fosse desarmar o loiro. Não poderia estar mais errado. Tiago se calou, de fato, porém de uma forma estranha. 

Com a mão no queixo e remugando sozinho enquanto olhava para a mesa e rabiscava formas imaginarias com seu dedo, Tiago começou a murmurar frases desconexas. As mais fáceis de entender era quando ele resmungava: Isso significa que… Ele ainda é útil para ela… O que ela vê nele? 

Irritado, Diego bateu na mesa e tentou chamar a atenção do amigo a sua frente. Tudo que conseguiu foi ser ignorado. Ouvir sobre si, e não poder participar, lhe incomodava.

— Murdock — disse o loiro, finalmente. — O que foi exatamente que você conversou com ela? 

— Não posso te dizer — disse aborrecido. — Eu prometi.

— Então eu prometo que não vou contar nada para ninguém. — E estendeu o dedinho para o rapaz. 

A rapidez e naturalidade que Tiago teve ao levar um fora lhe pegou de surpresa. Era como se o loiro já estivesse preparado para uma situação assim na ponta da linguá, ou ao menos era isso que a coceirinhas atrás de sua nuca lhe dizia.

Contrafeito, Diego contou sobre tudo que acontecera com ele e Rafaela. Não abordou o assunto discutido na sala dos diretores, mas Tiago ficou boquiaberto nas partes onde os dois estavam por um fio de serem pegos. Estava obvio sua total desaprovação com as atitudes. 

Entretanto, o loiro não interrompeu a história em nenhum momento. Quando terminou de contar, Tiago ainda demorou um pouco para pensar. Colocou a mão no queixo, desenhou formas imaginarias com os dedos e resmungou tão rápido que nem a boa audição do rapaz da cicatriz conseguiu acompanhar.

— Uma Viravolta? — perguntou, finalmente.

— É o que tem poder de defesa e tudo...

— Eu sei o que é um Viravolta! 

— Então por que a surpresa?

— Murdock, Viravoltas são muito raros! O poder deles não é só defesa, é como se eles negassem a existência de um ataque. É como tornar uma ação em uma não-ação…

— Traduz — interrompeu.

— Quero dizer que existem poucos Viravoltas, e isso é no mundo inteiro. Acho que dá para contar nos dedos quantos existem. E não sei dizer se existe um aqui na Europa. 

— Mas eu vi os poderes dela. Toda vez que eu tentei atacar ela, ou o Kisley tentou atacar ela…

— O Kisley tentou atacar ela?

Então Diego contou toda a história ocorrida no banheiro. Isso deixou o loiro ainda mais pensativo.

— Mas… isso não parece um poder de defesa, parece de ataque — concluiu. — Eu diria que ela é uma Geradora, não uma Viravolta. Ah, Geradores conseguem gerar os próprios poderes, pois conseguem evocar a energia a volta. Ah! Evocar é….

— Mas por que ela mentiria sobre a habilidade dela logo para mim? — interrompeu o rapaz, agora pensativo. — E ela mesma falou para o Kisley que não queria ninguém sabendo disso. E você não vai contar para ninguém, não é, Tiago?

— Não, é claro que não. Mas ela está mentindo para você.

— Como assim? 

— Bem, deixa eu te explicar. A Rafaela é órfã. Então é o Craveiro o responsável por ela. Mas o Craveiro tem uma clausula que diz que não pode ser totalmente responsável por que é uma associação, que no caso se passa por instituição e…

— Traduz, Tiago! O que tem a ver ela é ser órfã com estar mentindo para mim?

— O que eu quero dizer é: Ela é independente aqui no território do Craveiro. Então é como se ela fosse maior de idade.

— E daí?

— E daí que todos os que são maiores de idade tem um cartão para entrar e sair do prédio principal a hora que quiser. Ela tem o mesmo cartão dos professores. Ou seja, ela podia ter entrado no prédio a qualquer momento. 

Então Diego se lembrou de uma coisa que lhe chamou a atenção da primeira vez que conhecera Rafaela: A ruiva ficou olhando sua mochila, caçando alguma coisa. Agora, o rapaz suspeitava que talvez a moça estivesse checando o cartão, para saber se ele não havia quebrado. Porém ele logo se desfez desse pensamento.

— Mas então… Ela poderia ter me ajudado a entrar com o cartão e nós dois não teríamos que subir aquele prédio?

— Bom… Não. Na verdade, esses cartões só permitem a passagem de uma pessoa. Quero dizer… As portas têm uns sensores que contabilizam as pessoas que entram, como uma catraca. Ou seja: Ela até poderia te deixar entrar, mas teria o cartão recolhido porque o sensor ia dizer que duas pessoas entraram ao invés de uma.

— Hm! Pois, tá aí! Ela não queria se prejudicar e me ajudou a entrar pelo terraço.

— Sério que você pensa assim? 

O fato era que Diego não queria abandonar a ideia de ter uma amiga. Mas cada vez mais, a sua intuição lhe dizia estar se relacionando com uma interesseira.

— Penso sim — mentiu.

— Eu duvido. Acho mais provável que ela tenha te usado para ouvir aquela conversa secreta no quinto andar.

— Mas ela não sabia que eu podia ouvir por de trás da porta. Não é?

— Bom, não sei. Mas ela já sabia que você era sobrinho do Dragão Negro. Eu acho que ela só aproveitou a oportunidade.

Seria impossível do rapaz acreditar no que Tiago estava lhe falando se não fosse por conta do que aconteceu no banheiro: Rafaela ameaçou um garoto com informações que pelo visto mais ninguém poderia saber. 

Então será se Rafaela não era nem Viravolta ou Geradora? Diego cogitou a possibilidade de os poderes da garota serem de ler mentes ou detecção de poderes. Mas nesse caso, ela saberia sobre os seus sonhos estranhos? Ela saberia d’A Besta?

— Murdock — chamou, preocupado. — O que foi? Você ficou fora do ar por um tempo.

Olhando para o novo amigo a sua frente, pensou o quanto podia confiar nele. Por mais que não gostasse da ideia de não se envolver com Rafaela, apreciava a atenção que Tiago estava tendo por ele. Nunca recebera tanta importância ou preocupação assim de ninguém.

Ele não sabia como estava se sentindo no momento, mas aquela estranha voiz em sua cabeça lhe dizia para confiar no loiro a sua frente. 

Contra feito, Diego continuou falando sobre sua vida para Tiago. Falou sobre o tio e seus treinos, sobre sua tia e em como ela parecia um fantasma que não sabia escolher mobílias, sobre o quanto Ângela e Morfeus eram divertidos e sentia um poucos de falta deles; principalmente sobre as desculpas que devia a empregada.

Por um momento o rapaz se achou ingenuo de estar contado todas aquelas coisas para uma pessoa que conhecera a pouco tempo, porém a conversa estava interessante e Tiago era um bom ouvinte.

Então chegou nas partes em que preferia não falar para ninguém: Seus sonhos esquisitos. Sobre o que viu no dia que estava indo embora, aquela criatura estranha atrás de uma árvore. 

E também disse algo que deixou Tiago de queixo caído, pálido e de olhos saltados ao ponto de quase saírem pelas órbitas: Disse que sonhava com A Besta, como sua tia suspeitava.

— Você não pode falar esse nome aqui! — sussurrou Tiago, olhando para os lados, desconfiado.

— Por quê? É só um nome de uma história...

— É, mas traz mau agouro! — insistiu, começando a ficar mais irritado. — Não fala esse nome aqui!

— Tá, foi mal — concordou, mais porque estava ficando preocupado com a coloração do amigo do que qualquer outra coisa. — Mas me conta a história, o meu tio não disse o motivo de…

— Não me pede para contar a história, eu não sei como é. 

— E como você tem medo de um negócio que você nem sabe o que é? 

— Eu não sei os detalhes da história! Mas eu sei de algumas coisas, mas… Enfim! Vamos mudar de assunto. Só… Não fale esse nome aqui. 

Então os dois ficaram em um silêncio constrangedor por um bom tempo.

— Ah! Sim — disse Diego, felizmente cortando o clima desanimador. — Esqueci de te avisar, mas eu ‘tou com seu colar.  Na verdade… tá no meu dormitório. Era para eu te entregar hoje de manhã, mas eu esqueci de trazer.

— Sério?! O-obrigado por achar minha Hagar. Fico feliz que esteja com… V-você. — Tiago começou a encarar os dedos, as bochechas estavam vermelhas.

— Ahm… De nada — falou, estranhando a atitude do loiro. — Mas falando nesse negócio de… Hagar...?

— Selar — respondeu, sem timidez. — Não sabe o que são? 

Diego balançou a cabeça.

— Como você pode não saber o que são? Cores são a base para o sistema de…

— Eu sei, a idiota da professora Rúnica já disse isso. Agora vai me explicar o que são essas cores ou não?

Tiago se levantou, o peito estufado e cheio de importância, embora as bochechas estivessem ainda rosadas, e estendeu a mão para Diego.

— Vamos lá fora — disse, ajeitando os óculos sem parar, encarando a mão do rapaz. — Q-quer dizer… Eu te explico melhor lá porque é preciso ir lá para fora para ver o livro...

Diego não entendeu as inúmeras explicações que Tiago estava dando. Apenas se levantou e deu a mão para o loiro. Então os dois foram para o lado de fora enquanto Tiago estava vermelho como um tomate.

 

 

Já do lado de fora, próximo a um dos inúmeros jardins do Craveiro, os dois estavam sentados. Tiago tirou de sua pesada mochila um estranho livro de uma cor muito viva.

— Ah! Eu tenho um desses — disse, se lembrando da vez onde o viu caído no chão, logo depois da luta contra os Baderneiros para salvar Tiago. 

— Esse aqui é o livro que fala das cores. No caso, como funcionam as cores. E ele só pode ser lido em lugares cheios de cores, como esse jardim, porque tem um material especial que não permite…

— Tá, tá! Chatice magica. Agora me explica logo sobre esse negócio de cores.

Tiago, um tanto irritado, leu em voz alta uma das páginas do livro que dizia:

QUENTES x FRIOS.

O aluno do primeiro ano deve estudar toda a grade curricular e tirar notas suficientemente altas para ser aceito como aluno no ano seguinte. Entretanto, os requisitos para um Assistente Social do primeiro ano não se resume apenas aos estudos e provas. O aluno também deve corar (termo usado para aqueles que acabaram de ganhar suas cores por meio da Hagar Selar, ver pág. 12). Se durante o tempo letivo um aluno não corar, então não poderá continuar seus estudos na instituição.

— Então se eu não conseguir que essa pedrinha brilhe eu nunca mais volto para cá?

— Sim. Mas isso é impossível, todo mundo consegue...

— Mas como eu faço isso? Desde que cheguei aqui eu não consegui fazer esse Hagar-não-sei-o-que brilhar. Até o da Mini tem uma cor mais roxa. A minha é só esse negócio fosco. Ou preto é uma cor? 

— Não… Quando eu terminar de ler eu explico, Murdock!

Levando-se em conta o que vimos nas páginas anteriores — onde estudamos as cores primárias (amarelo e azul) como padrão para a montagem da tabela oficial de cores — é muito importante fazer distinção das pessoas consideradas quentes (Q) e frias (F), pois, desse modo, pode-se analisar com mais exatidão seus traços de personalidade e profissões que melhor se encaixam com cada um. 

A identificação mais comum ocorre por meio da utilização da Hagar Selar. Considerando a tabela de cores, se corou próximo ao amarelo, então é considerada quente (Q). Se despertar uma cor que, na tabela, está próxima ao azul, então é considerado frio (F).

— Ah. O professor Nemo chamou nossa turma de quente ontem — falou Diego.

— Sim. Nós estamos na turma dos quentes. Os Baderneiros por exemplo estão em outra turma, a dos frios. Por isso não temos aulas com eles.

— E como eles sabem que eu sou quente se não tenho uma cor?

— Já vai responder isso, Murdock, deixa eu continuar lendo!

A identificação mais incomum, porém, é por meio da análise dos comportamentos, seja com os outros ou com o ambiente à sua volta. Geralmente, quanto mais extravagante o seu modo de agir, mais próximo se encontra das cores primárias — amarelo e azul.

Frios tendem a ser reservados, atenciosos, introspectivos e costumam ter uma percepção mais aprofundada sobre as coisas. São excelentes analistas e ótimos em trabalhar em todos os campos que envolvem resolver problemas analíticos. Veja a lista de possíveis profissões na pág. 98-110.

Quentes tendem a ser bastante engajados a sua volta, são de iniciativa, impulsivos por natureza, nunca param quietos e se aborrecem quando o assunto é ficar sozinhos, pois se entediam fácil. Geralmente procuram ser o centro das atenções a qualquer custo, já que são naturalmente entusiasmados. Veja a lista de possíveis profissões na pág. 111.

— Viu só? Não tem como você não ser um quente — brincou Tiago.

— Rhá, Rhá! Engraçadinho. Mas por que esse livro falou tão mal dos quentes e ficou babando os frios? 

— Os livros geralmente são feitos por frios. E eles não gostam dos quentes. É como se fosse uma espécie de rivalidade, sabe?

— Bunda-moles. Fora que isso não explica muita coisa. Os Baderneiros são tão “entusiasmados” e “procuram ser o centro das atenções” quanto eu!

— Bom, eles são sim bem “quentes” no comportamento deles. Mas não é só suas atitudes que determinam a sua cor. A palavra final é sempre da Hagar Selar. Por mais que você seja assim tão… impulsivo, se a sua cor foi próxima de azul então você é um frio. Mas eu duvido muito que você seja.

— Tá, mas ainda não sei como faz essa pedrinha brilhar.

— Ah, é. É fácil. É só pingar um pouquinho de sangue na sua Selar. Daí ela vai absorver e te dar uma cor. Quanto mais próximo da amarela, mais forte você é considerado. Quanto mais próximo da azul, mais inteligente você é. 

— Azul combina com você, sabe-tudo — brincou.

 

D

   I

      N

         G

D

   O

      N

         G

 

E já era hora de voltar para a aula.

— Se você não ficasse tanto tempo dormindo na sala de aula, não precisaria que eu te explicasse essas coisas! — disse irritado.

Os dois ajeitaram seus pertences e começaram a seguir caminho, voltando para a entrada principal onde vários outros alunos estavam fazendo fila para poder entrar.

Eles já estavam na calçada alta, depois dos pequenos lances de escada. Mais alguns alunos se apresando e já poderiam atravessar a porta de vidro que outrora Diego tentara quebrar. 

— Só sei que eu quero saber logo qual é minha cor — disse ele, empurrando e sendo empurrado na fila. — Acho que vou no banheiro ver se arranjo alguma coisa para furar meu dedo...

— Não faça isso! Faça o teste de cor na frente de um professor. 

— Por quê?

— Vai evitar dor de cabeça, Murdo-

Um empurrão jogou Tiago para fora da calçada alta. O loiro caiu em cima da mochila e soltou uma exclamação de dor. Todos os alunos deram espaço para ver a confusão que tinha acontecido. Diego estava no meio. 

— Era o outro, Golias — disse uma voz familiar. — É aquele ali.

Assim que o rapaz da cicatriz checou que Tiago estava bem, se virou e viu Kisley junto de novos amigos.

Um garoto de terno vermelho e chifres de servo que tinha um sorriso na cara maniaco e os olhos muito arregalados; mais deslumbrados do que os de Rafaela.

E também havia um garoto que mais chamou a atenção de Diego: Um gigante, tão grande quanto Bruno, mais gordo que Walter da loja de televisores e tão feio quanto um porco poderia ser. A sua pele era rosada e no lugar de um nariz e ouvidos humanos havia uma fuça e um par de orelhas de porco.

Aquele deveria ser Golias.

— Trouxe os amiguinhos para te defender? — debochou Diego. — Não aguenta me enfrentar sozinho?

— Se aquela vaca não tivesse aparecido eu teria te matado, cachorro! — gritou Kisley, escondido atrás do porcão. O outro garoto com chifres de servo apenas sorria enquanto olhava fixo.

Golias deu um passo em direção a Diego e ele podia jurar que sentiu o chão tremer. Os sentidos do garoto se embaçaram enquanto via aquela montanha vindo em sua direção. 

A roda de alunos curiosos se formou a sua volta.

— T-tá! — exclamou, se pondo em posição de ataque. — Pode vir!



Comentários