Volume 1 – Arco 10
Capítulo 70: Fascinante
A manhã seguinte não foi nada agradável para Tiago. O loiro acordou bruscamente de seu leito, arrastado para o corredor da enfermaria de modo a conversar discretamente com Diego, o seu amigo, que dizia coisas sem sentido.
O rapaz da cicatriz contou sobre tudo que aconteceu na noite anterior, de toda a aventura, de como conseguiram o elixir e, a parte mais surreal, de como um nocivo quase matou ele e Margô.
Tiago ficou muito preocupado, afinal realmente tinha um nocivo no Craveiro, pois até mesmo Margô, mais tarde, confirmou. O problema que fez com que o loiro voltasse a sua total descrença foi um pequeno e ínfimo detalhe:
— A mão do nocivo derreteu quando tocou em você?
— É! Foi tipo assim… — disse Diego, fazendo toda uma demonstração muito exagerada de um braço se liquidificando. — Entendeu?
— Não… Você viu isso também, Margô?
— Ah, eu não tava na hora. E eu não prestei muita atenção depois, mas penso que ele estava sem um dos braços mesmo, quando fui abrir a porta para o Di sair.
— Entendi… — O loiro ajeitou os óculos e depois passou a mão na cara. — Olha, eu acho que como vocês estavam no depósito cheio de substâncias estranhas, acabaram tendo um tipo de ilusão.
— Sério? — começou Diego, ficando furioso. — Você não acredita no que nós dois vimos?
— Claro que acredito — disse em tom de defesa. — Mas vocês também tem de entender que ninguém iria deixar um depósito tão importante sem nenhuma segurança. E se a segurança fosse justamente uma ilusão desse tipo? Isso explicaria o item mágico que o nocivo usava no pescoço.
— Aí, aí, aí! —Margô colocou a mão na testa, outro na cintura e fechou os olhos, como se isso de alguma forma ajudasse ela a manter a calma. — Nós dois vimos o nocivo. Nós dois! Será se você pode acreditar na gente pelo menos uma vez?
— Já disse que acredito, mas o que adianta só eu acreditar?
— Como assim? — perguntou Diego.
— Se isso for mesmo ver… — Tiago pigarreou e se corrigiu a tempo. — Quer dizer, se não conseguem me contra argumentar, apenas pedindo para que eu confie em vocês, como vão conseguir convencer os diretores? Prestem atenção, eu confio em vocês, mas se for verdade, essa informação tem que ir para os diretores. Eles tem que saber sobre isso.
— Então basta contarmos para eles — falou Margô. — Simples assim. O resto eles que se virem.
— Certo, mas eles vão acreditar? Primeiro vão precisar de provas, e vocês não tem nenhuma além da palavra de vocês. Segundo que… O que vocês vão dizer afinal? “Diretores, nós vimos um nocivo.” Aí eles vão perguntar: “É mesmo, aonde?” E vocês vão responder: “Ah! Foi no depósito que a gente assaltou”?
Diego ficou irritado, Margô também, mas os dois sabiam que o loiro tinha razão. Não poderiam, nem se tivessem uma prova convincente, contar para os diretores o que fizeram.
Se o fizessem com toda certeza alguém daquele trio acabaria sendo expulso do Craveiro para sempre. Na realidade, já era um milagre que nenhuma notícia tivesse se espalhado até aquele momento a respeito de um assalto no depósito, já que acabaram fazendo um pouco de estrago naquele lugar.
— Nós não podemos falar para os diretores, — falou Diego — mas podemos fazer alguma coisa. Calma, presta atenção, não me interrompa. É a terceira vez que vejo esse nocivo aqui no Craveiro. O que quer dizer que ele está atrás de alguma coisa, ou alguém. E eu tenho algum tipo de conexão com ele, posso sentir isso. Eu sei que parece má ideia, mas…
— Não só parece como realmente é — interrompeu o loiro, os braços cruzados, as bochechas rosadas. — Você só pode estar maluco. Já temos problemas demais para nos preocupar. Primeiro temos que fazer alguma coisa com a professora Rúnica, e isso sem sermos pegos. Mesmo assim você já quer colocar uma nova missão.
— Sim! Isso é importante.
— Importante para quem exatamente?
Diego piscou. Deu um passo para trás e inclinou a cabeça para o lado, encarando o loiro a sua frente com ar de ameaça e curiosidade. Duvidava que seu amigo fosse dizer aquilo, mas era seu amigo e amigos falam coisas que ninguém mais fala.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou.
— Diego. — O loiro olhou para o lado, aborrecido e depois voltou a encara-lo. — Nós sabemos a teoria que você criou sobre o seu tio estar por trás desse nocivo e ele ter enviado justamente atrás de você para… Sei lá porquê.
— Para fazer os estudos dele. O próprio pai da Margô já disse que o meu tio gosta de fazer uns experimentos malucos!
— Tá vendo? Você só quer ir atrás desse nocivo porque acha que ele tem alguma coisa a ver com o seu tio. Olha, eu não estou defendendo o seu tio, não concordo com aqueles métodos de treinamento que você me falou, para mim isso é desumano, mas não acho que exista uma forma de controlar nocivos. Principalmente por meio de veneno. Se isso existisse, nós, os Assistentes Sociais, não precisaríamos existir e o seu tio seria o salvador da pátria!
— Ele não é salvador da pátria — retrucou o rapaz da cicatriz, se aproximando, irritado.
— Se ele não está usando esse poder para conter os nocivos, então para que mais ele estaria usando?
— E eu sei lá… O meu tio… ele… Não sei se ele ia usar isso para conter a ameça dos nocivos.
— Então você está dizendo que o seu tio está trabalhando a favor dos nocivos? — Tiago fez uma breve pausa a fim de mostrar o quão ridícula era aquela hipótese. — Você tá basicamente propondo que o seu tio quer acabar com o mundo. Como se houvesse um complô mundial para isso!
Diego cerrou os punhos e andou lentamente em direção ao seu amigo. Por um instante perdeu a cabeça, porém logo voltou ao normal assim que a mão fina, embora incrivelmente poderosa, de Margô empurrou o seu peito.
— Já chega vocês dois. Não esqueçam que estamos aqui primeiramente para acabar com aquela mocreia da Rúnica. Depois podemos pensar em alguma coisa sobre o nocivo, porque eu acho que deixar esse bicho solto por aí vai ser problema. E não faz essa cara, Tiago! Nós vimos um nocivo sim, pode acreditar.
— Tá bom, tá bom — concordou o loiro. — Mas primeiro temos que bolar um plano para chegar perto da professora, fazer ela ficar sob o efeito do elixir sem que as pessoas ao redor percebam que fomos nós e depois fazer ela revelar para todo mundo tudo o que disse.
— Mas você acabou de falar o plano — concluiu Diego com simplicidade. — O plano é esse.
— Não, idiota — falou Margô, dando enfase especial no “di”. — A professora é uma Encantadora, ela pode controlar as pessoas, ler pensamentos, hipnotizar…
— Espera, não, ela não consegue fazer isso, Encantadores funcionam de um jeito diferente — retrucou o loiro. — E… Encantadora? O nome certo é Deslumbrata.
— Não era Fascinata? — perguntou o rapaz da cicatriz.
— Tanto faz, idiotas. O que importa é que não vamos poder passar pelos poderes dela. Ela é poderosa de mais.
— Mas e o que faz um Encantador?
Antes que pudesse obter a sua resposta, a diminuta professora Domingues chegou pelo elevador, já gritando com Diego a partir dali enquanto se aproximava rapidamente e de um jeito bem engraçado.
— Menino! Andei te procurando por todo lado! — Ela se aproximou o suficiente, lhe segurou pela mão e começou a lhe empurrar em direção ao elevador. — Vamos, você precisa estudar. As provas finais serão no final desse mês e você está pessimo em notas!
— M-mas professora, eu…
— Pare de falar e ande logo. Tenho que enfiar conhecimento nessa sua cabeça até você aprender! Dê tchau para os seus amigos daqui mesmo. Vamos logo!
E assim aconteceu. Diego foi levado pela professora até o último andar, os dos professores, de modo a ficar lá por várias horas estudando matérias chatas e entediantes.
Sua maior dificuldade era Teoria dos Números Arquitetônicos, uma matéria muito complicada que só havia números e símbolos bizarros, fora o uso de geometria não-euclidiana, da qual Diego nem fazia ideia do que se tratava.
No meio de seu tédio, o rapaz começou a pensar o quanto a professora Domingues era divertida. Uma das primeiras aulas que teve dela, ao menos que prestou atenção, foi a mesma em que a professora usou três poderes diferentes.
— Professora. A senhora se lembra daquela vez em que transformou três palitos de fosforos em três coisas diferentes?
— Lembro, e me lembro bem de que não transformei três. Transformei um em uma rosa dourada, o outro fiz acender uma chama azul e o terceiro troquei por uma barra de chocolate. São três coisas diferentes, e não transformações, senhor Murdock.
— Aham, tá bom. Mas se a senhora fez três coisas diferentes, então significa que é uma multi-tipo, não é? E logo de três poderes. Não faz da senhora uma pessoa muito rara?
Diego podia jurar que viu a professora rir, mas talvez fosse coisa da sua cabeça.
— Não, eu não sou. Aquilo não foi trabalho de uma multi-tipo, apenas eu usando o meu segredo muito bem, que no caso senhor Murdock, é Trampista.
— Trampista? Então aquilo era ilusões? Mas o chocolate era verdadeiro.
— Sim, o chocolate era verdadeiro, isso posso lhe garantir. Mas não vou lhe explicar como fiz aquilo agora, volte ao seus estudos.
— O Leo é um Trampista também e ele não consegue fazer metade do que a senhora faz — continuou Diego, sem prestar muita atenção no que a mulher estava falando.
— Ele é apenas um estudante que não conhece a extensão dos poderes de um Trampista. Um Trampista é um Ilusionista da mais alta classe, podendo mexer com os cinco sentidos de uma pessoa: olfato, tato, visão, paladar e audição. Posso fazer você sentir que está queimando, mas na verdade não está. Ou que tem um rosto horrível na boca, mas na verdade não tem.
— Então… É só eu saber que não passa de uma ilusão que… Pronto? Vou acabar com o segredo de um Trampista?
— Sim e não. O fato de você saber que é uma ilusão não muda o fato de que você ainda está nela. Por mais que você saiba, ainda vai estar sentindo. E para se livrar disso basta ter uma forte força de vontade. E você consegue isso com treino, e treino significa estudo. Agora estude.
— Mas professora…
— Pelo amor de Deus, o que foi dessa vez?
— A senhora pode fazer qualquer coisa então sendo uma Trampista — disse o rapaz. — Se a senhora pode controlar tudo que a pessoa sente, então não tem como chegarem perto da senhora.
— Já disse que basta ter treinamento e força de vontade que você consegue conter qualquer ilusão. Basta saber que é uma ilusão, assim como os clones do senhor Lupin.
— Mas tem algum multi-tipo na nossa escola? Como professor, digo.
— Pelo amor, Diego! Volte ao estudo. Isso não é importante.
— Mas o diretor é mais poderoso que a senhora?
— Não, Diego! Não existe essa de mais poderoso. Tudo é questão de saber utilizar os segredos que você já tem. A própria professora Ramirez é um exemplo disso. Ela é excelente quando o assunto é o uso dos segredos, nunca vi ninguém explorar tão bem os cinco sentidos quanto ela.
— Mas é fácil quando se é uma Fascinata.
A professora levantou uma sobrancelha.
— Fascinata? Bom, o termo está correto. Pode ser Deslumbrata também ou até Encantador. Mas a professora Ramirez não é Encantadora.
Agora foi a vez de Diego levantar as sobrancelhas.
— Não?! E o que ela é?
— Não ouviu o que eu falei, menino?! Disse que ela sabe usar bem os sentidos. Então é óbvio que estava elogiando ela por ser uma excelente Trampista.