Volume 5

Antes de Show

 

Daiya Oomine - 06/09 DOM 12h05min

— Fiquei chocada, sim… Sim. Sim. É claro que já tinha ouvido falar dos “Cães Humanos”, mas sabe, achei que era uma dessas bobagens da tv. Nunca imaginei que um fosse aparecer no meu jardim!

Na tela de LCD, um efeito em mosaico esconde o rosto da mulher entrevistada. A voz de meia idade é distorcida eletronicamente, mas o nojo na voz dela é bem claro.

— Que tipo de pessoa era X (nome encoberto por censura sonora)?

— Hum… na verdade, ele era bem normal. Mas muito quieto. Quando você o cumprimentava, ele sempre resmungava tão baixo que você nunca sabia se ele estava respondendo ou não!

— Ele teve alguma atitude que chamou sua atenção recentemente?

— …Bem, sim. Ultimamente, ou melhor, desde que os pais dele sumiram… como eles chamam essas pessoas? Hikikomori¹? Acho que ele se isolou dentro de casa. O que ele fazia pra viver? …Quem sabe? Não faço a menor ideia.

— Poderia nos contar mais sobre o desaparecimento dos pais dele?

— Sim… Ah, mas é provável que eles tenham se mudado e deixado ele pra trás. Apenas ouvi um rumor de que eles tinham desaparecido. Não sei maiores detalhes. X nunca teve um bom relacionamento com os vizinhos.

— Entendo… A senhora sabe o que todos os “Cães Humanos” têm em comum?

A entrevistada é claramente pega de surpresa por essa pergunta.

— …Sim. Eles são todos criminosos, certo? E os crimes na maioria das vezes são bem sérios.

— O registro criminal de X é desconhecido, mas por acaso a senhora…

— Eu apenas o vi latindo e de quatro, isso é tudo. Não tenho mais nada a di…

Aparentemente, ela não tem mais qualquer informação útil: a programação volta para o estúdio e a câmera foca no apresentador e em alguns comentaristas. Ninguém parece saber se discutiam o assunto em um tom de brincadeira ou levavam a sério. As tentativas lamentáveis de comentar o assunto dos participantes acabam sendo apenas ambíguas e sem sentido.

Mudo minha posição na cama e sorrio desdenhosamente. Como planejado, os programas de variedades já começaram a cobrir os casos dos “Cães Humanos” diariamente.

O fenômeno dos “Cães Humanos” — Quando uma pessoa perde a habilidade de falar e começa a rastejar de quatro sem qualquer explicação aparente. Nenhum programa de variedades perderia a chance de cobrir algo tão sensacionalista.

Mas não importa quanta atenção seja dada ao caso, a razão desse fenômeno jamais virá à tona. Muitos doutores e cientistas tentarão chegar à raiz disso, mas não importa como eles tentem, jamais descobrirão que isso é causado por uma “caixa”.

E assim, os comentaristas inevitavelmente desapontam a plateia com conclusões fracas como “eles estão apenas atuando” ou “eles estão apenas convencendo a si mesmos que são cães” ou “é uma doença mental”. Até mesmo o médium, que provavelmente foi chamado apenas para fazer o público dar risada, fez mais pela audiência dizendo que “Deus criou essa provação para os humanos egocêntricos, para nos mostrar que no fundo ainda somos meros animais”.

Heh.

Quanta besteira.

Se você quer falar de “egocentrismo”, então a ideia de que Deus se preocuparia conosco e nos daria uma provação é muito mais egocêntrica. Afinal, humanos se preocupam quando vermes estão sendo egocêntricos? Apenas um humano seria capaz de algo tão absurdo quanto criar “Cães Humanos”.

Assim que me viro para ver a televisão novamente, o apresentador encerra o especial “Cães Humanos” do dia com palavras vazias.

— Esperamos do fundo de nossos corações que ele volte ao normal logo.

— “Esperamos que ele volte ao normal logo”, hein?

O apresentador não vai poder dizer isso por muito tempo.

“X”, mais conhecido como “Katsuya Tamura”, é realmente um assassino que matou os pais — mas os atos criminais dele ainda não foram a público. Quando seus atos forem revelados, o âncora do programa não vai mais ser capaz de desejar pela recuperação do assassino tão casualmente.

No momento, apenas Katsuya Tamura e eu sabemos sobre os crimes dele. Mas logo todos saberão. A opinião pública não pode ignorar o fato de que todo “Cão Humano” até agora acabou sendo um criminoso, e a polícia não pode ignorar a opinião pública. Por isso, logo a polícia encontrará algum pretexto para investigar e logo descobrirá os ossos dos pais de Katsuya Tamura enterrados no jardim dele. E então, ele será mandado para onde pertence: a cadeia. Não… talvez ele seja mandado para outro lugar por causa de seu estado mental, mas não é essa a questão. Meu objetivo não é punir criminosos que ficariam à solta se ignorados.

Se o incidente Katsuya Tamura for de acordo com o plano… então não precisarei de mais preparações. O poder da minha “caixa” pode fazer qualquer um se tornar um “Cão Humano”. Sou eu quem deliberadamente uso meus poderes para procurar criminosos e transformo apenas eles. Faço isso com a intenção de forçar a opinião pública a aceitar “Cães Humanos” como “criminosos”.

“Um idiota de quatro é um criminoso”.

Quando essa percepção se espalhar, “Cães Humanos” serão automaticamente tratados como infratores da lei. Quais serão as consequências do meu experimento em engenharia social? Ser um “Cão Humano” será o mais miserável que alguém pode se tornar. Todos ficarão enojados ao ver um “Cão Humano” perder o bom senso, rastejando nu pelo chão e latindo. Ninguém vai sentir pena, já que eles não são mais considerados humanos, principalmente porque todos acreditarão que todos eles são lixos criminosos.

Todos temerão se tornar um “Cão Humano”. As pessoas irão perceber que podem se tornar um ao cometer crimes. Mas, sem saber exatamente o que causa a transformação, elas não terão escolha senão evitar qualquer tipo de atividade criminal e viver vidas perfeitamente inocentes para não se tornarem alvos do desprezo do público.

Isso vai pôr um fim nos crimes.

É claro, o número total de “Cães Humanos” ainda é insuficiente. É preciso que as pessoas acreditem que criminosos se transformam em “Cães Humanos” com certeza quase absoluta. Para isso, precisarei criar mais, legiões de “Cães Humanos”. Quando isso acontecer, mais ninguém será capaz de ignorar esse fenômeno.

Foco novamente na TV.

O assunto havia mudado e um novo vídeo é mostrado. Algum pedestre provavelmente usou a câmera do celular para gravar: a imagem está embaçada e a voz surpresa da pessoa que grava pode ser ouvida ao fundo.

Posso ver a rua principal do distrito de Kabukishou, em Shinjuku, e dúzias de adultos, homens e mulheres, se jogando ao chão. É impossível determinar a que tipo de grupo eles pertencem de cara, já que nenhum deles parece ter nada em comum: um Yakuza, trabalhadores de escritório, transexuais, mulheres normais e por aí vai. Eles estão reunidos em volta de um único indivíduo e se jogam aos pés dele com lágrimas nos olhos.

A câmera foca na pessoa no meio deles… um jovem de cabelo prateado e piercings nas orelhas, olhando para as pessoas aos seus pés com uma expressão fria.

Naturalmente, aquele sou eu; Daiya Oomine.

— …Humpf.

Novamente, como planejado. Sabia que alguém iria filmar se eu fizesse tamanha apresentação em uma avenida movimentada, hoje em dia todos têm celulares com câmeras. Até mesmo planejei para que o evento acabasse na TV.

Os comentaristas no estúdio franzem as sobrancelhas e fazem especulações totalmente erradas como: “Isso é algum novo tipo de culto?”. É claro, a verdade é totalmente diferente. Eu criei os “Cães Humanos” e fiz aquelas pessoas se ajoelharem com meu poder.

Ninguém no estúdio tentou juntar esses dois eventos, mas haverá pessoas que irão associá-los apenas por estarem acontecendo simultaneamente. Na internet, algumas pessoas já começaram a suspeitar que haja alguma conexão, sem dar muita atenção, mas, no final das contas, eles estão na pista certa.

Aquele vídeo é um percussor do meu objetivo final.

Quando a sociedade não puder mais ignorar o fenômeno dos “Cães Humanos”, mostrarei às massas quem está no centro disso tudo. E, nesse ponto, meu verdadeiro plano irá realmente começar.

 

Deixo o hotel e começo a caminhar pelas ruas de Shinjuku. É uma tarde de domingo. As ruas estão lotadas. Incapaz de aguentar essa enorme massa de pessoas, começo a sentir tontura.

A essa altura, sei que a maioria das pessoas é pecadora. Minha “caixa” me força a perceber que legiões de pessoas escondem algo sujo em seus corpos. Nesse ponto, uma multidão como essa não me parece diferente de um enorme saco de lixo se debatendo.

… Bom, já me acostumei com isso também.

Já estamos em setembro, mas a temperatura não dá qualquer sinal de que irá diminuir, deixando o clima tão quente quanto era no meio do verão. Olho para o meu relógio. São duas da tarde.

Conforme o sol se move através do céu, minha sombra lentamente aumenta de tamanho. Uma atrás da outra, as pessoas ao meu redor caminham sobre a sombra que eu projeto.

 

O que automaticamente ativa minha “caixa”.

 

Toda vez que alguém caminha pela minha sombra, meu corpo é penetrado por pecados. Pecados, pecados, pecados.

— …Hum.

Quando comecei a usar minha “caixa”, era incapaz de continuar de pé. Mas agora é apenas uma questão de rotina. Não sou mais o homem que se ajoelhava diante desse sentimento repugnante. Já superei minhas fraquezas. Isso é apenas um afazer desagradável.

— Arg!

A sujeira que estou sentindo é demais — a ponto de fazer minha voz escapar. Que merda é essa? Que sentimento repulsivo é esse, como se alguém tivesse jogado vômito, óleo de salada estragado e larvas de inseto em um liquidificador e me forçado a beber o resultado. Que tipo de lixo humano carrega um pecado tão horrível?

Massageei minhas têmporas e me virei para a pessoa em cima da minha sombra para poder encará-la.

— …Oh.

Que surpresa. No final é uma garota do fundamental com cabelos negros curtos que poderia no máximo ser descrita como ingênua. Mesmo sendo final de semana, ela está usando o uniforme.

A aparência pura dela é o oposto à de um pecador. Na verdade, ela parece ser pura demais para fazer parte da multidão louca dessa cidade. Tendo me ouvido resmungar e vendo meu rosto contorcido, ela está me encarando com um olhar de suspeita… Tch, de quem você acha que é a culpa disso?

Nossos olhares se cruzam, mas ela tenta passar por mim.

— Desista de sua vingança. Tenho pena de você, mas está colhendo o que plantou.

A garota para e se vira para mim. A razão da falta de expressão em seu rosto provavelmente é ela ainda não ter entendido a situação em que está.

— Você pode querer punir malfeitores, mas os caras que pagam pelo seu corpo não são iguais ao que te passou AIDS. Eles provavelmente nem estão relacionados. Os pecados deles certamente não são tão graves quanto o que você pretende fazer a eles. Bom, acho que você não concorda comigo.

Os olhos dela começam a mostrar certa confusão, mas, fora isso, ela continua com o rosto inexpressivo. Talvez ela não seja boa em se expressar…

— Então pare de vender seu corpo apenas para espalhar o HIV.

Com um profundo olhar de peixe morto em seu rosto, ela abre a boca.

— Por favor, não diga tais coisas absurdas em público…

Ela finalmente fala. Preciso forçar meus ouvidos para ouvir sua voz frágil. Parece que ela também não é muito energética.

— Não se preocupe! Olhe, não tem ninguém prestando atenção em nós. Você acabaria indo a loucura se tivesse que prestar atenção em cada pessoa que passa por você na rua. Esse bando não se importaria nem se um criminoso procurado estivesse passeando por perto.

Bom, seria outra história se alguém começasse a agir como um cão…

— Como você descobriu o que estou fazendo…?

— Não descobri. Eu simplesmente senti seu pecado fétido.

A expressão sem vida dela de alguma forma começa a mudar. Provavelmente ela queria franzir o rosto, mas como ela não consegue se expressar direito, apenas seus olhos ficam parecendo um pouco vesgos. Ela se vira e começa a correr. Parece que finalmente está tentando fugir.

— Você não pode fugir. Você já está sob meu comando.

Fecho meus olhos. Fecho minha visão. Me fecho.

Antes, quando ela pisou em minha sombra, absorvi o pecado dela. Agora estou buscando ele nas profundezas do meu coração. Uma dor entorpecida percorre meu interior. Suportando essa dor, procuro em minha mente pelos pensamentos específicos dela. A suja mistura de incontáveis pensamentos repulsivos que estão em minha mente me faz querer tapar o nariz, mesmo que não exista um odor físico. Imagino o conteúdo do caldeirão de uma bruxa cheio de plantas venenosas e lagartos.

A dor que sinto é provavelmente uma mera ilusão: apenas meu coração partindo. Meu coração está se debatendo com toda a força para me convencer a não tocar nessa imundice, e me fazendo sentir dor como resultado. Droga, é como se uma colônia de vermes estivesse se debatendo dentro de mim.

Suportando as ondas de nojo, finalmente encontro os pensamentos dela no meio de todos os outros que tenho em minha mente. Eles parecem uma “sombra”. Cada um desses pensamentos em forma de sombra é o pecado de alguém. Alcançando ainda mais fundo dentro desse caldeirão repulsivo… agarro a sombra dela.

— Uh, ah…!

Vários metros de distância a minha frente, a aluna do fundamental se ajoelha.

Termino de assumir o controle. Abro meus olhos. Tento suprimir forçadamente esse sentimento entorpecido dentro de mim apertando minha mão com força contra o meu peito e me aproximo dela lentamente.

— Ah... aaaaaaaaaaah! — ela grita e se contorce em dor.

A atitude dela chama a atenção das pessoas ao nosso redor, mas ninguém está disposto a ajudá-la. Todos estão apenas ignorando-a ou observando sem fazer nada.

— Esse mal-estar é meramente um resultado de você ser confrontada diretamente pelos seus pecados. Percebe isso, certo?

Sem dizer uma palavra, ela continua a chorar.

— Não se preocupe. Não vou transformá-la em um “Cão Humano”. Apenas aqueles que fugiram de suas responsabilidades, desligando seus cérebros, e não tem mais qualquer sentimento de culpa é que são os verdadeiros lixos mais baixos do que vira-latas. Isso não se aplica a você. Você está sofrendo. Apenas ficou desesperada. Isso significa que ainda tem chance de evoluir. Mas acho que você precisa ser monitorada. Portanto… — Joguei a sombra do pecado dela dentro da minha boca — …torne-se escrava de seu pecado.

Uma amargura incrível se espalha pela minha boca. Fazendo isso, eu a subjugo.

A “caixa” que obtive: “Shadow of Sin and Punishment²”. De forma resumida, o poder da minha “caixa” usa os sentimentos de culpa mais profundos do meu alvo para colocar ele ou ela sob meu controle.

Mas também incluí outras condições para mim mesmo. Para controlar alguém, preciso confrontar seus pecados diretamente. Isso basicamente quer dizer que preciso olhar para o lado mais sujo das almas humanas. Por exemplo, essa estudante adquiriu HIV por se prostituir e entrou em desespero. Como vingança, ela tem vendido o próprio corpo para infectar outros homens que fazem sexo com ela. Apesar do profundo sofrimento pelo qual ela passa graças à culpa que sente pelas suas ações, apesar da angústia e do remorso, ela não consegue parar. Seu pecado já adquiriu uma vida própria, saiu de controle e está afetando outras pessoas.

Aceito o fardo desses pecados. Aceito até mesmo os sentimentos nocivos que os acompanham. Como consequência, também sou atacado. Mas apenas assim posso controlar meu alvo.

…Uma “caixa” pode garantir qualquer “desejo”. Mas não existe alguém com um desejo perfeito, sem qualquer distorção. A “caixa” garante esses “desejos” distorcidos exatamente como são.

Não sou exceção a essa regra. Por causa do meu senso de realismo problemático, não consigo me fazer acreditar completamente no poder das “caixas”. Não consigo deixar de pensar que, de certo modo, isso é apenas um sonho passageiro.

Se você usar uma “caixa” sem pensar, seu “desejo” será distorcido e não se realizará. Felizmente estava ciente dessa regra. Portanto, decidi não usar minha “caixa” imediatamente após recebê-la de “O” e busquei uma forma de dominá-la.

Algum tempo depois, recebi a chance de dominar minha “caixa” dentro do “Game of Idleness” de Koudai Kamiuchi. Fui capaz de receber esclarecimento. Você não deve tentar garantir seu “desejo” diretamente com a “caixa”. Você deve “desejar” pelos meios de garantir seu “desejo”.

Imagine que você quer destruir o mundo. Ao desejar diretamente por isso, o “desejo” automaticamente se torna vago e duvidoso, o que te previne de dominar a “caixa”. Em vez disso, você deveria tomar um caminho indireto e “desejar” por um botão que possa desencadear um holocausto nuclear. Um “desejo” desses tem poder o suficiente para destruir o mundo e é concreto o bastante para ser visualizado.

É claro, isso ainda pode ser um “desejo” absurdo. Você precisa ser capaz de acreditar que a “caixa” tem poder o bastante para realizá-lo. Dito isso, eu já presenciei o poder inacreditável das “caixas”. Não tenho problemas em imaginar algo como controle sobre armas nucleares que já existem.

Mesmo um realista como eu pode dominar a “caixa” dessa forma. Meu verdadeiro “desejo” é “erradicar todos os tolos ignorantes”. Me abstive de tentar garantir meu “desejo” diretamente e, em vez disso, pedi por uma arma capaz de fazer isso.

Controle sobre os outros. Essa foi a arma que escolhi.

Provavelmente é minha própria natureza que me permite garantir esse “desejo”. Qualquer outro provavelmente teria falhado, incapaz de acreditar que pode controlar outras pessoas. Mas sempre considerei possível controlar os outros com minhas palavras e ações até certo ponto. Seja isso verdade ou não, não importa, porque minha fé nessa possibilidade de controle me permite garantir meu “desejo” sem distorção. Impondo condições estritas sobre mim mesmo, solidifiquei ainda mais o meu “desejo”. Ao fazer isso, fui finalmente capaz de obter meu poder.

Mas esse poder é terrivelmente fraco se comparado ao meu objetivo final. É um poder que me obriga a fazer uma aproximação ridiculamente indireta. Nunca odiei meu lado realista tanto quanto agora.

Dito isso, não me importo muito. Afinal de contas, esse poder me parece extremamente adaptável e apropriado. E isso não significa que ele me serve perfeitamente?

 

— Vai parar com sua vingança sem sentido? — pergunto à garota, que ainda está agachada e chorando.

— Aaah — ela urra incompreensivelmente enquanto assente com a cabeça.

Não há dúvida de que essa garota dará fim a essa vingança autodestrutiva. Não parece ter nenhuma necessidade especial de controlá-la. Sem mais o que fazer, volto a andar. Repentinamente, dois homens que parecem ser alunos de faculdade entraram no meu caminho.

— …Ei, o que você fez com aquela garota?

O tom dele é calmo, mas os dois parecem estar ardendo em indignação e não mostram qualquer intenção de me deixar passar. Aparentemente, eles pensam que maltratei aquela garota.

— Eu não fiz nada. Certo? — digo e me viro para ela.

Ela rapidamente limpa as lágrimas e se levanta.

— Sim. Ele não fez nada — diz ela, ao erguer o rosto.

Embora ela não tenha feito nada estranho, os universitários dão um passo para trás… Por quê? Ao olhar para ela novamente, entendo o motivo. Não é de se espantar que eles tenham retrocedido ao ver o rosto dela.

O sorriso em seu rosto não é nem um pouco natural… parece que os cantos de seus lábios estão sendo puxados por cordas. Seus olhos estão brilhando com uma luz entorpecida… Ah não, não esse padrão…

— Esse homem é um deus.

Por favor, não. Tudo o que eu fiz foi mexer com os sentimentos de culpa dela. Fiz as preparações para controlá-la, mas no fim não o fiz. Mas parece que ela foi capaz de reconciliar seus sentimentos porque suguei seu remorso e a confrontei com ele. Eu acidentalmente a provi com algo semelhante a uma sessão de aconselhamento perfeita com sucesso instantâneo.

Por ter feito isso em um instante com um poder misterioso, ela acha que sou um deus. É um padrão que ocorre de tempos em tempos quando uso minha “caixa”. Diante de tal desenvolvimento, os universitários parecem ter chegado ao limite e se afastam com expressões contorcidas.

Também contorço meu rosto e olho para a aluna do fundamental. Ela está respirando violentamente e sorrindo como se contemplasse um ser divino. Pelos céus, não me chame de deus. Pare com isso. Sério. É nojento. É como se alguém estivesse enfiando um dedo na minha garganta. Não sou um deus, nem pretendo me tornar.

Mas.

— …Certo. Eu sou um deus.

Preciso deixá-los me chamar disso. Ainda sou um fracote. Não descartei completamente meu “eu” de antes, de quando ainda acreditava na benevolência da natureza humana, antes de começar a colocar piercings. É por isso que sofro tanto ao assumir o fardo dos pecados alheios. Se for normal para um humano sofrer ao fazer isso, então tenho que deixar de ser humano. Devo selar meus sentimentos. Se sufocar Koudai Kamiuchi até a morte não foi o bastante para superar minha fraqueza, então só preciso matar de novo.

Eliminar minha fraqueza é uma necessidade. Irei transcender a mim mesmo. Se devo me aproximar de um deus para cumprir meu objetivo, então me tornarei um deus.

Olho para a garota que está me louvando. Não há nenhuma necessidade de controlá-la… mas, por outro lado, não há motivo para não controlá-la também. Como posso me tornar deus se não estiver preparado para roubar sua dignidade e distorcê-la? É brincadeira de criança arruinar a vida dela. Sua vida está praticamente acabada de qualquer forma. Então…

— Abandone tudo por mim.

Toco a “Sombra do Pecado” dela que está dentro do meu peito e começo a controlá-la.

— Ah…

Ela solta um suspiro sensual e se apoia em mim. Como se implorasse para ser dominada, ela me encara com olhos úmidos.

— Alegre-se. Posso dar um propósito até mesmo a uma vadia suja como você. Bom, vejamos. Primeiro de tudo, lamba meus sapatos agora mesmo.

— Oh, muito obrigado! Muito obrigado!

Sem hesitar, a garota começa a lamber a sola das minhas botas.

— Estou tão feliz. Tão feliz. Que alegria é tocar algo que você está usando, mesmo que seja apenas com a minha língua!

Banhado na curiosidade e no desprezo das pessoas ao redor, penso:

Que estúpido. Mandá-la fazer algo assim apenas me deixa envergonhado, na melhor das hipóteses. Isso me enoja. Mas preciso subjugar todos dessa maneira. Preciso abandonar meus sentimentos insignificantes.

— … Arg!

Mas isso ainda me aflige. Toco um dos meus piercings. A essa altura, tenho um total de seis piercings em minhas orelhas. Sinto essa forte de necessidade de criar buracos em meu corpo, por isso coloquei esses piercings.

— …Uh.

Por alguma razão, a face de Kokone Kirino cruza minha mente. Embora deva descartar meus sentimentos por ela, seu rosto ainda aparece em meus pensamentos. Contudo, a Kokone Kirino que aparece em minha mente não é aquela boneca Barbie superficial, que usa lentes de contato, muda constantemente de penteado e gasta mais de uma hora toda manhã para se maquiar.

A Kokone Kirino que eu vejo é aquela garota tímida e sensível que costumava sempre me seguir onde quer que eu fosse. Naquela época, os olhos sem confiança por trás daqueles óculos olhavam apenas para mim.

Apago a imagem do rosto dela da minha mente. Sim, eu sei! Meu apego à Kiri é o maior obstáculo para alcançar meu objetivo. Olho para baixo, para a garota que ainda está lambendo meus sapatos.

Eu vou mudar o mundo. Eu vou revolucionar o mundo!

— …Certo.

Para tornar isso possível, preciso abandonar Kokone Kirino.

 

Também precisarei derrotar meu maior inimigo.

— Eu vou encontrar a zerézima Maria.

Um certo idiota que se transformou por causa daquele jogo assassino e resolveu perseguir seus objetivos com determinação absoluta. Aquele especialista em destruir “desejos” irá entrar em meu caminho sem dúvida. Dessa vez, ele não será engolido por uma “caixa”; ao contrário, ele tomará a iniciativa de livre e espontânea vontade e tentará destruir minha “caixa”.

… Kazuki Hoshino.

Serei seu inimigo.

 

Kazuki Hoshino - 06/09 DOM 14h05min

Kokone não mudou mesmo depois que o Daiya desapareceu.

Não importa se ela estava preparada para o desaparecimento do Daiya; sua falta de reação ainda foi extremamente estranha. Isso me levou à seguinte conclusão:

A personalidade extrovertida da Kokone é apenas uma fachada.

Não apenas agora, mas desde que a conheci. Justiça seja feita, já faz tempo que estou ciente de que a atitude animada dela é de alguma forma forçada e falsa. Também percebi que, embora Haruaki e Daiya conheçam sua verdadeira personalidade, eles entraram no jogo e aceitaram essa personalidade forçada de qualquer forma. E percebi que Daiya sempre parecia estar insatisfeito com essa situação.

Ao mesmo tempo, nunca achei que a escolha da Kokone fosse tão significante. Afinal de contas, todos vestem máscaras até certo ponto ao lidar com outras pessoas. Mogi-san, por exemplo, me contou que teve sérios problemas para manter seus contatos sociais no passado. “Se Kokone está deliberadamente tentando se tornar esse tipo de pessoa, então não há nada errado com a escolha dela”.

Foi o que pensei. Mas devo ter me enganado. Caso contrário, o seguinte incidente jamais teria acontecido.

 

— Não, mas sério Kazu-kun, aquilo foi terrível de sua parte! Quero dizer, claro, pode ser errado alimentar as esperanças da Kasumi sendo gentil demais, mas qual é, você entende a situação em que ela está, não é?

Foi depois da aula em que aquele incidente ocorreu.

— Você devia saber muito bem por que a Kasumi quer voltar para a escola! Kazu-kun, você sequer percebe quão horrivelmente seu comportamento a afetou, especialmente depois de todo o esforço que ela colocou na recuperação?!

Kokone estava me dando um sermão por eu ter abandonado a Mogi-san no dia anterior para ir ao apartamento da Maria.

— Quero que você saiba: você está seriamente enganado se acha que ela está bem só porque parecia animada depois do acidente! Ninguém ficaria bem com o próprio corpo em tal situação! Kasumi está apenas tentando parecer forte porque não quer nos preocupar!

Era julho, logo antes das férias de verão. Embora já tivesse passado das cinco da tarde, o sol ainda estava brilhando forte pelas janelas, mantendo a sala brilhantemente iluminada.

Provavelmente estava bem quente também, mas não me lembro ao certo. Kokone estava desesperadamente tentando segurar as lágrimas. Não pude evitar sentir admiração pela empatia que ela tem por sua amiga, por mais errado que fosse estar pensando naquilo enquanto recebia um sermão.

Mas não podia apenas assentir e sorrir. Eu entendia aonde a Kokone queria chegar muito bem. É claro que queria ser gentil com a Mogi-san. Mas eu já tinha escolhido a Maria. Portanto, deixei claro que iria me devotar para a Maria.

— Kokone, eu escolhi a Maria…

Kokone respondeu com outra objeção, apesar de ter ficado um pouco chocada com minha atitude inabalável.

— Ma…mas isso não é desculpa para agir como você fez ontem! Você não poderia pelo menos esperar até a Kasumi se recuperar um pouco mais?! Ser gentil com ela por mais algum tempo não deveria ser um problema.

Continuei em silêncio.

Não porque concordava com a Kokone, mas porque tudo o que queria dizer apenas machucaria os sentimentos dela. Honestamente, não importava o que ela me dissesse, mesmo que ela me odiasse e nunca mais falasse comigo, minha escolha não teria mudado. Considero Kokone uma amiga querida e não quero perdê-la, mas isso não tem nada a ver com eu ter escolhido a Maria.

Entendo onde Kokone estava tentando chegar. Mas quando seria o momento perfeito? Ele sequer existe? Eu deveria ter dito à Mogi-san apenas quando ela voltasse a escola? Que tal logo depois dela ter terminado sua reabilitação exaustiva e ter finalmente realizado seu desejo de viver uma vida escolar normal ao meu lado? Poderia esse ser o melhor momento para dizer a Mogi-san que eu escolhi a Maria?

É claro que não. Mogi-san ainda teria sofrido mesmo que eu tivesse esperado para contar a ela sobre minha decisão.

— Diga algo, Kazu-kun! Por favor, não machuque a Kasumi ainda mais!

Também não quero machucá-la. Queria dizer isso a Kokone do fundo do meu coração, mas sendo aquele que está machucando a Mogi-san, não tinha qualquer direito de dizer. Peguei meu celular. Kokone reclamou:

— O que você está olhando agora?!

Apenas a ignorei e encontrei a foto que estava procurando. Era uma foto da Mogi-san usando pijamas fazendo um sinal de paz. Eu era realmente apegado àquela foto. O sorriso parecido com um girassol dela sempre me animava.

Olhando para ela, eu entendia como podia ter a amado em um mundo diferente e em um momento diferente. Era apenas natural que eu me apaixonasse por uma garota que sorri para mim de maneira tão quente e adorável. Era uma foto muito, muito preciosa para mim.

Por isso, deletei ela.

Porque eu não podia mais escolher a Mogi-san.

 

Continuei em silêncio e olhando para a Kokone. Ela parecia derrotada pela minha atitude e não disse mais nada. Como estávamos a sós, a sala ficou num silêncio absoluto.

… Sim, estava um silêncio absoluto. Talvez por isso aquelas duas garotas da nossa sala pensaram que a classe estava vazia. Por causa desse erro, elas começaram a falar mal da Kokone enquanto voltavam das atividades de clube para a classe.

— Ah, a Kokone está realmente agindo feito uma vadia ultimamente.

… Sem terem a menor ideia de que o alvo de suas palavras maliciosas estava logo ali.

— Ela não quer ser sempre o centro das atenções? Ela reclamando sobre os óculos ontem realmente me tirou do sério. Tipo, não damos a mínima para sua cara de merda! Se não quer falar com a gente, então apenas fale consigo mesma em frente ao espelho!

— Sim, totalmente! É tão irritante a forma como ela sempre está falando de si mesma! Além disso, ela não é nem de perto tão bonita quanto se diz. Comparar ela com a Maria-sama é como comparar dia e noite. Aposto que a Maria-sama é pelo menos três vezes mais bonita!

— Haha, Kou, você é tão terrível.

Eu reconheci aquelas vozes animadas. Elas pertenciam a duas garotas da nossa sala que andavam junto com a Kokone. As três normalmente almoçavam juntas.

— Mas é inegável. A Kokone não depende totalmente de maquiagem? Caramba, ela é tão desesperada para ficar popular entre os garotos.

— Hum… mas ela é popular… os garotos realmente não conseguem enxergar através de toda aquela porcaria?

— Ah, eles se apaixonam por você se você agir um pouco adorável e amigável. Acho que os garotos sentem menos vergonha se a garota não for tão bonita assim, não é mesmo?

— É isso que faz dela tão perfeita!

— Ei, me pergunto se ela realmente acha que todos gostam dela? Quero dizer, só andamos com ela porque ela atrai os garotos.

— É, ela é realmente útil para isso.

— Mas Deus, como isso me estressa. E ela se tornou muito menos útil desde que nosso príncipe de língua afiada parou de vir para a escola.

— Ah, Mii-chan. Oomine-kun era seu preferido, não era?

— Ele é duro por fora, mas na realidade é realmente gentil! Ele transborda dignidade e não é nem um pouco vulgar! Sou a única que realmente te entende, meu Daiya-kun!

— Ah corta essa, Mii-chan! Você só está dizendo isso por causa da aparência dele, não é?!

— Você tem um ponto. Pessoas feias merecem morrer, de qualquer forma!

— Mas o Oomine-kun não namora a Kokone?

— Hum, se você falar namorava, quem sabe?

— Ah, pode ser. Talvez ela tenha conseguido seduzir ele, mas eles terminaram quando ele percebeu como ela realmente é?

Eu queria cobrir meus ouvidos para fugir das suas calúnias absurdas, mas como poderia fazê-lo com a vítima estando bem do meu lado? Suas vozes se aproximavam, a qualquer momento as garotas ficariam cara a cara com a Kokone. Incapaz de tomar uma decisão, eu queria me virar para ela.

Ela deve estar branca como leite e petrificada. Talvez esteja começando a chorar… O que devo fazer? Devo ajudá-la a se esconder e esperar elas saírem? Depois disso eu poderia levá-la ao Mickey D’s, escutar calmamente suas mágoas e tentar confortá-la o máximo que eu conseguir…

Mas não havia necessidade de confortá-la. Ela não estava nem um pouco incomodada. Kokone estava… sorrindo como se estivesse se divertindo.

— …Hã?

Na hora fiquei pasmo. Não entendia como ela podia manter a compostura diante de comentários tão vis. Ah, mas a retrospectiva muda tudo. Tendo presenciado seu comportamento subsequente, posso adivinhar o que ela achava tão divertido. O que Kokone deve ter sentido naquele momento deve ter sido…

— Hehe…

…um senso de superioridade. As duas garotas abriram a porta da sala. Assim que viram a Kokone, elas ficaram tensas de uma maneira ridiculamente abrupta.

— O…oh, você estava aqui?

Em contraste com suas expressões tensas, o rosto da Kokone permaneceu perfeitamente normal.

— Sim, estava.

Elas ficaram confusas com quão calma Kokone estava.

— Hum… Kokone…?

— Então é isso o que vocês pensam de mim. Eu sou um pouco densa, sabem, então nem percebi. Honestamente, sinto muito! Tentarei mudar para melhor, prometo.

— Hu…um, sim, Kokone…

— Eu sei, eu sei. Quando você fala mal de alguém é fácil exagerar um pouco, certo? Mas isso é só porque vocês se deixaram levar, não é o que vocês realmente sentem. É, eu sei.

Ela parecia bastante compreensiva diante daqueles comentários cruéis. Enquanto as garotas continuavam assustadas, seus rostos começaram a relaxar um pouco.

— E…exato!

— Nós só nos deixamos levar — elas disseram, inventando desculpas. O sorriso de Kokone continuou inalterado.

— Mas sabem, por eu ter ouvido o que vocês disseram, vai ter um pequeno desconforto entre nós… vocês entendem isso, certo?

— Si… sim.

— Mas eu tenho uma solução: por que vocês não me deixam dizer algumas coisas em compensação? Então estaremos quites e podemos voltar a ser amigas!

— Si… sim, você está certa. Diga o que quiser.

Após suas “amigas” concordarem com a proposta, Kokone abriu a boca e falou. Ela as olhou bem nos olhos e disse de forma clara e precisa.

— Morram suas vadias horrorosas.

Os olhos delas arregalaram em surpresa.

— Vocês são tão nojentas quanto um par de vadias no cio. Seus rostos são tão horríveis que não há ninguém no mundo que poderia ficar do perto de vocês para fazer vocês parecerem melhor. Você disse que a única coisa para qual sirvo é atrair garotos? Repita isso quando essas porcarias que chamam de rosto não forem horríveis demais para dar conta do recado! Mesmo que queiram me usar como um atrativo de garotos, qual o ponto… nem mesmo um cego se interessaria por um bando de vadias tão feias quanto vocês!

Conforme as palavras da Kokone começaram a ser registradas, uma das garotas ficou vermelha de raiva, enquanto a outra ficou pálida de horror.

— Hahaha, não consigo segurar o riso! Afinal de contas, vocês percebem que acabaram de reconhecer minha superioridade com a inveja estúpida de vocês, certo? É tão doloroso assim ser inferior? Por favor, não se deixem levar, ok? Eu não sou tão perfeita. De qualquer forma, deixem-me dizer isso: vocês são vadias inúteis cujo único propósito na vida é me fazer parecer ainda mais bela.

O brilho violento em seus olhos que atravessava as duas desapareceu repentinamente e um sorriso alegre reapareceu em seu rosto.

— Tudo bem, agora vamos esquecer tudo e ser amigas de novo!

Aquelas duas garotas não trocaram uma única palavra com a Kokone desde então.

 

Enquanto me lembro daquele incidente, estou usando o laptop da minha irmã, Luu-chan, para ver um vídeo no Youtube de um estranho grupo de pessoas em Shinjuku.

A essa altura entendi. Entendi como Kokone foi capaz de dizer coisas tão cruéis àquelas duas, enquanto derramava lágrimas pela Mogi-san. Eu costumava pensar que o objetivo da Kokone era realmente internalizar a imagem superficial e animada que ela tentava projetar. Mas isso não é verdade. De fato, agora estou certo de que a Kokone foi forçada a agir daquela forma. De certa forma, era sua única escolha, mesmo que significasse pressionar a si mesma ao máximo.

Sem se pressionar dessa forma, Kokone não poderia continuar sendo ela mesma. E suspeito que aquelas duas garotas acidentalmente tocaram em uma área proibida da personalidade da Kokone. Por isso, ela perdeu o controle. Até agora, não descobri o que está alimentando seu conflito interno. Mas aposto que Daiya sabe a verdade.

— Ah, eu também vi esse vídeo! Ele é um garoto incrível, não? Tão carismático para alguém da idade dele.

Espiando a tela, minha “colega de quarto” fez um comentário totalmente fora de contexto. Me viro.

— …Ei, esse é o meu umaibo, não é?

Enquanto reclamo, Luu-chan já está abrindo uma embalagem de um umaibo sabor molho de tonkatsu.

— Mas você está usando o meu computador, não?

— Sim. Mas isso é irrelevante.

Ela relutantemente pega a carteira e pressiona uma moeda de dez ienes na minha mão… Não é isso que eu quis dizer… que seja. Mastigando o Umaibo, ela acrescenta de forma indiferente:

— Me pergunto, são pessoas assim que revolucionam o mundo?

Volto meu olhar para a tela do laptop.

É… talvez.

Daiya pode estar tentando destruir o mundo com sua “caixa”.

 

Se ele está usando uma “caixa”, definitivamente envolverá a Maria nisso. Quando isso acontecer, a vida normal da Maria será perdida e ela será novamente controlada por “Aya Otonashi”.

— Eu…

…não vou deixar isso acontecer. Não importa como.

Durante o “Game of Idleness” percebi que meu inimigo é a “Aya Otonashi” que controla “Maria Otonashi” e está guiando Maria à sua morte. Pelo bem da Maria, preciso exterminar “O” e as “caixas” desse mundo.

Preciso parar o Daiya. Mas como?

Não sou um “portador”. Dependendo do que a “caixa” do Daiya for capaz, posso não ter nada para usar contra ele. Então como devo proteger a Maria?

— …Hum.

Há uma solução extremamente simples. É um método que quero evitar do fundo do meu coração, um método que me obrigaria a trair meu antigo eu. Ah, mas por que ainda me importo? Já me preparei para sujar minhas mãos. Na verdade, eu já as manchei ao abandonar Koudai Kamiuchi.

Portanto…

 

Mesmo que eu precise obter e usar uma “caixa”, não me importo mais.

 

Deixe a batalha de “caixa” contra “caixa” começar. Uma batalha entre meu “desejo” de destruir “caixas” contra o “desejo” de Daiya. Não sei qual é o “desejo” do Daiya. Mas é algo pelo qual ele definitivamente irá lutar com tudo o que tem.

Mas não importa o que seja…

— Não irei aceitá-lo.

Todos os “desejos” que precisam depender de uma “caixa” são lixos absolutos. Não importa o quão importante esse “desejo” seja para o Daiya, é lixo. Vou destruí-lo e eliminá-lo completamente, sem deixar uma única mancha. Mesmo que eu precise matar o Daiya.

— …Kazu-chan, você tem estado um pouco assustador ultimamente. Seus olhos pareciam assassinos por um instante, sabia?

Ignoro o comentário da Luu-chan e desligo o computador.

Chego a uma resolução.

Daiya, serei seu inimigo.

 

 


Notas:

1 – Hikikomori é um termo que designa um comportamento de extremo isolamento doméstico. Os hikikomori são pessoas geralmente jovens que se retiram completamente da sociedade, de modo a evitar o contato com outras pessoas.

2 – “Sombra do Pecado e Punição”



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