86: Eighty Six Japonesa

Tradução: LordAzure


Volume 10

Capítulo 1: Fragmental Neoteny: Pledge

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Não houve medo.

Na primeira vez que ele ficou no campo de batalha, não sentiu nem mesmo um leve arrepio de terror.

Não pelo estrondoso rugido dos canhões cortando o ar.

Não pela imponente forma do Löwe — aquele tanque drone polipodal de cinquenta toneladas.

Não pelo cheiro de metal derretido se infiltrando na cabine ou pelos constantes tremores dos sistemas de cruzeiro da sua unidade ecoando até o fundo do seu estômago.

Não pelos lamentos incessantes e constantes ao seu redor.

Não pela visão de uma unidade companheira próxima sendo atingida no flanco por um projétil perfurante de armadura assim que encontrava um inimigo e sendo reduzida a uma confusão de liga de alumínio, sangue e vísceras.

Aquela era sua amiga mais próxima da academia de treinamento.

O treinamento deles durara menos de um mês, mas nesse tempo, o tom alegre de suas vozes e seus sorrisos brilhantes deixaram uma impressão duradoura em sua mente.

Foi apenas uma fração de segundo. O projétil APFSDS do Löwe se moveu com uma velocidade inicial de 1.650 metros por segundo. Acertou seu alvo antes que o rugido do canhão alcançasse seus ouvidos. A aceleração impulsionando o projétil de urânio empobrecido concedeu-lhe um peso intenso e energia explosiva, penetrando a frágil armadura do Colosso sem esforço. O frágil corpo humano dentro dele foi despedaçado com uma facilidade quase cômica.

Provavelmente morreram instantaneamente, antes mesmo de conseguirem compreender o que tinha acontecido. Naquele momento, ele não conseguia dizer se isso era reconfortante ou não. Talvez fosse a cor das chamas crepitantes ou o cheiro de sangue queimado. Talvez fosse o odor da pele chamuscada pairando pelo campo de batalha. Seja qual for o motivo, isso acionou um interruptor em sua mente. Um interruptor que ele jamais soubera que existia, que nunca poderia ter percebido durante sua curta e pacífica vida até então.

O interruptor de seus instintos de combate.

Ele conseguia sentir o foco do inimigo mudar. De alguma forma, sabia que o mecanismo automático de recarga interna do Löwe havia terminado de preparar sua próxima munição. No momento em que o cano começou a girar um instante depois, ele já havia puxado os manches de controle para trás e começado a mover sua unidade em uma trajetória evasiva.

O canhão rugiu.

O projétil roçou por ele, suas ondas de choque batendo contra sua armadura. A fina chapa de liga de alumínio chiou, mas mesmo sendo fraca, isso não foi o suficiente para rompê-la. Um prédio atrás dele teve a infelicidade de ser pego no fogo cruzado. Ele soltou um gemido doloroso, derramando suas entranhas de concreto no chão.

A mira de sua unidade, seu Colosso, estava alinhada. Após esquivar-se diagonalmente para trás, a indefesa lateral da Legion ficou exposta diante dele.

Olhando à frente, o jovem Processador de onze anos, que já foi conhecido como Shinei Nouzen quando ainda era considerado um ser humano, apertou o gatilho.

Após derrotar o Löwe, envolvendo-o em uma luta quatro contra um como esquadrão, a outra equipe de dois Juggernauts novatos encontrou outro Löwe e foi imediatamente atingida.

"Kurusu?! Oh... Oh não..."

Como se estivesse olhando além da cortina de neve em pó e das fileiras da Legion, a capitã do esquadrão Halberd, a primeira unidade defensiva do trigesimo quinto distrito da frente oriental, estalou a língua. Alice Araish.

Teito Kurusu, que acabara de ser morto, era um Processador promissor entre os novatos lançados no campo de batalha com treinamento insuficiente. Ele aprendia rápido, tinha garra e coragem, e era capaz de tomar decisões claras e coerentes. Ele servia como uma espécie de líder entre os Processadores mais jovens.

Alice esperava que ele pudesse pelo menos funcionar na retaguarda em uma posição de fogo supressivo. Mas ela estava enganada. Mesmo em uma situação em que o esquadrão estava subdimensionado e abaixo de sua capacidade total de vinte e quatro membros, ela não deveria ter agrupado os novatos juntos.

A Legion superava-os em todos os aspectos, e lutar contra eles sempre era uma tarefa hercúlea. Dizia-se que apenas um em mil Processadores sobrevivia ao seu primeiro ano de serviço. Era o tipo de inferno no qual foram lançados.

O outro Juggernaut sobrevivente não podia se mover. Pensar no garoto maduro e silencioso sentado na cabine daquele Juggernaut fez Alice cerrar os dentes amargamente. Este soldado criança tinha a mesma idade que Teito, mas era muito o oposto dele - um garoto, pequeno mesmo entre seus pares. Alguma parte fria de sua mente suspeitava que ele não sobreviveria por muito tempo de qualquer maneira.

Seu Juggernaut permanecia imóvel. Com sua percepção do tempo diminuída e esticada pela adrenalina que corria em suas veias, Alice observava enquanto ele ficava parado, aparentemente encolhido diante da máquina que havia assassinado impiedosamente seu parceiro.

Não havia unidades consortes por perto para ajudá-lo. E embora Alice quisesse socorrê-lo, ela própria estava cercada por um enxame de inimigos. Já era tarde demais. Nada ajudaria. E apesar de saber disso, ela gritou:

"Nouzen! Saia da—"

Mas foi exatamente nesse momento que o Juggernaut dele se moveu. O projétil do tanque de 57 mm atingiu com precisão a parte de trás da torreta do Löwe... e foi desviado de maneira espetacularmente anticlimática.

"Não adiantou", sussurrou Shin ao observar as imagens em sua tela óptica. A armadura ao redor da torreta do tanque era especialmente espessa. Ele tinha sido ensinado sobre isso, mas, aparentemente, o armamento principal do Juggernaut nem mesmo conseguia penetrar de forma confiável a armadura relativamente fina na parte de trás da torreta.

O sensor óptico do Löwe e a mira de seu canhão se voltou para ele. Ao ver isso, Shin mudou para seu armamento secundário, um par de metralhadoras pesadas de 12,7 mm... que, é claro, também não eram de nenhuma utilidade. No entanto, ao sofrer danos em um de seus sensores, o Löwe travou por um segundo, permitindo a Shin o tempo necessário para se afastar de sua linha de fogo.

A metralhadora pesada no topo da torreta do Löwe girou para persegui-lo. Ao contrário do Löwe, a armadura frontal do Juggernaut nem sequer conseguia bloquear os projéteis de metralhadora pesada. Shin recuou para evitar a saraivada. Em seguida, desviou horizontalmente, evitando um disparo do canhão de 120 mm.

Shin fez uma pausa, respirando fundo e de forma intensa. As metralhadoras eram inúteis. Elas não tinham a potência necessária para causar qualquer dano, pelo menos contra um Löwe. Em termos de velocidade de operação, o tempo de reação do Juggernaut era lento. Era uma arma construída às pressas, lenta para se movimentar e girar, e nem mesmo possuía um sistema de mira adequado.

Agora, era impossível para ele contornar o inimigo e assumir uma posição em que pudesse mirar no topo de sua torreta ou em sua parte traseira, que tinha uma armadura relativamente fina. Ao olhar para a forma gigantesca e imponente da unidade inimiga, o olhar maduro e vermelho-sangue de Shin se tornou gélido. Seus olhos de alguma forma adotaram o mesmo frio artificial e impiedoso do sensor óptico do Löwe.

Nesse caso...

Quando ele desviou do primeiro disparo de canhão do Löwe, Alice pensou que fosse apenas sorte ou coincidência. Mas quando ele desviou de uma saraivada de sua metralhadora pesada e de um segundo projétil de canhão, ela teve que admitir que não poderia ter sido apenas sorte.

Apesar de tecnicamente ser um Feldreß, uma arma polipodal avançada, a mobilidade do Juggernaut era baixa. E assim, a unidade de Shin desviava do Löwe com movimentos lentos e preguiçosos. Ele então começou a avançar em direção a ele.

Ao perceber o que ele estava pensando, Alice não pôde deixar de tremer de terror. O canhão de 57 mm do Juggernaut era muito fraco. Talvez pudesse lidar com tipos de Legion levemente blindados como o Ameise tipo Scout ou o Grauwolf tipo Dragoon, mas um alvo pesado como o Löwe tipo Tanque era outra história. O armamento principal do Juggernaut não poderia danificar sua armadura frontal, e dependendo da distância, até sua armadura traseira era muito resistente para o projétil penetrar.

Mas se ele se aproximasse, manteria a energia cinética do seu projétil no impacto ao minimizar a distância que ele teria que percorrer. Teoricamente, fazia sentido. No entanto, um Löwe tinha uma torreta de tanque de alto poder de fogo de 120 mm, placas de aço pressurizado de 650 mm e a manobrabilidade absurda compartilhada pela maioria das unidades da Legion. Desafiar esse tipo de unidade em combate de curto alcance por conta própria parecia um ato de suicídio.

Especialmente considerando que ele era um soldado criança que tinha pisado no campo de batalha pela primeira vez naquele dia.

O Löwe mudou sua direção. A massiva máquina de cinquenta toneladas avançava silenciosamente, como se zombasse do desajeitado Juggernaut por sua tentativa atrevida de desafio. A Legion era agraciada com atuadores de alto desempenho e amortecedores que abafavam seus movimentos. Saltando de uma posição estática para sua velocidade máxima num piscar de olhos, a unidade da Legion se aproximou do Juggernaut.

O tipo Tanque brandiu sua perna em forma de estaca, tentando esmagar o inseto insolente em seu caminho, exatamente quando o Juggernaut de Shin disparou uma âncora de fio no chão diagonalmente à sua frente.

Recuando o fio, o Juggernaut deslizou pelo chão, escapando do chute direcionado a ele e deslizando para a traseira do Löwe.

E então ele disparou seu canhão. A queima-roupa.

Desta vez, mirou na parte traseira do fuselagem, uma área menos protegida em comparação com a torreta. E atirou a uma curta distância que normalmente não seria alvo de um canhão de tanque, com um timing muito preciso para o inimigo esquivar.

O projétil APFSDS atingiu seu alvo, finalmente penetrando a armadura. Destruíu o mecanismo interno do Löwe, fazendo com que o gigante metálico entrasse em chamas. Um momento depois, o fusível em seu núcleo de urânio empobrecido explodiu. Isso fez com que a munição dentro da torreta do Löwe explodisse em uma série de explosões induzidas, fragmentando o canhão com uma explosão espetacular.

"O quê...?" Ela ouviu um de seus companheiros de esquadrão exclamar surpreso através da Ressonância Sensorial.

Não podia culpá-los. Alice ela mesma só conseguia ficar olhando para a cena incrédula. A outra Legion, apesar de serem máquinas de assassinato programadas apenas para matar, também parecia congelada, como se não conseguissem compreender o que acabara de acontecer.

Chamas negras se espalharam para fora da forma metálica do Löwe, derretendo a neve ao redor deles. A luz dessas chamas lançava uma sombra carmesim sobre a armadura imóvel do Juggernaut. Era uma unidade novinha em folha, sua placa ainda em um tom de marrom claro.

Era como um esqueleto sinistro, rastejando pelo campo de batalha em busca de sua cabeça perdida.

Há cinco anos, a guerra contra os drones de combate autônomos conhecidos como a Legion começou. E quando isso aconteceu, Alice e aqueles como ela deixaram de ser humanos.

* * *

A terra natal deles, a República de San Magnolia, era principalmente habitada por Alba de olhos prateados e cabelos prateados. Aparentemente, esse era o raciocínio por trás disso. Alice não entendia muito bem. De qualquer forma, Alice e os semelhantes a ela foram expulsos da segurança dos oitenta e cinco setores administrativos e de suas muralhas fortificadas. Exilados daquele paraíso feito apenas para Alba — para humanos.

Eles foram lançados no inexistente Setor Eighty-Six. Foram forçados a viver em campos de internamento e no campo de batalha como porcos em forma humana — como Eighty-Six.

Sendo a benevolência uma de suas políticas nacionais, a República não viu necessidade de enviar civis para o campo de batalha. E apesar disso, eles não conseguiram desenvolver um drone que pudesse igualar o poder da Legion. Sua defesa nacional e seus ideais entraram em conflito, mas logo encontraram uma solução excessivamente simples.

Os Eighty-Six não eram considerados humanos, e qualquer máquina pilotada por eles não era considerada uma unidade tripulada, mas um drone.

Assim, o drone de combate tripulado, o Juggernaut, nasceu. Os Eighty-Six foram carregados neles como "Processadores". O Juggernaut foi elogiado pela República como uma arma humanitária de ponta que criava um campo de batalha sem baixas. E mesmo agora, Alice e seus companheiros Eighty-Six arriscam suas vidas todos os dias para lutar contra a Legion.

Os Eighty-Six, Processadores e outros, eram todos bastante jovens. Nos primeiros anos de luta, a maioria dos Eighty-Six adultos havia falecido, deixando apenas crianças.

Alice olhou ao redor de sua unidade de soldados crianças. Com dezessete anos, ela estava entre as mais velhas aqui. Eles estavam na base da frente leste, separada por cem quilômetros e campos minados antipessoais e antitanques das muralhas da fortaleza Gran Mur. Dentro de seus alojamentos, um prédio desbotado pela exposição ao sol e à chuva, eles se reuniam dentro de uma sala de reuniões adjacente ao hangar.

"Bom trabalho hoje, pessoal... Por mais lamentável que seja, não posso dizer que passamos por hoje sem perdas, mas todos vocês lutaram muito bem."

Cabelos pretos longos e retos. Olhos escuros e oblíquos. Alice ficou de pé na sala de reuniões, sua figura temperada pela batalha preenchendo seu uniforme de camuflagem. Ela era uma Processadora em seu terceiro ano de serviço. Um lenço azul-celeste estava amarrado em volta de seu pescoço, realçando sua beleza sem esforço.

Ela dirigiu o olhar para um canto da sala, curvando os lábios pálidos e sem adorno.

"...Shinei Nouzen. De todas as pessoas, dormindo durante meu briefing? Você tem coragem."

Ao ser repreendida, uma figura pequena que cochilava em uma cadeira no fundo da sala pulou para cima. Ele a olhou com seus distintos olhos vermelho-sangue em um gesto juvenil que combinava com sua pouca idade. Seu cabelo era uma tonalidade ainda mais escura de preto do que o de Alice, contrastando com os traços justos e mármore do seu rosto. Ela olhou para o pescoço dele, seus olhos repousando na visão desagradável de bandagens saindo de baixo da gola.

"Desculpe."

A voz dele era um pouco aguda. Ainda não tinha amadurecido. Seu tom a deixou completamente sem intenção de repreendê-lo mais, o que só fez seu sorriso sarcástico se alargar. Algo nele a lembrava de um membro da família — alguém cuja voz permaneceria para sempre aguda e inalterada.

"Bem, tudo bem. Hoje foi sua primeira batalha, então você deve estar cansado... No final, todos nós somos apenas peças de drones. Porcos como nós podem imitar os gloriosos soldados da República o quanto quisermos, mas seria pouco mais do que uma farsa."

Sendo um drone, o Juggernaut mostrava pouco respeito por seus Processadores desumanos. Sua cabine era apertada. Seu assento de baquelite era tão desconfortável e duro que quase parecia um insulto à ergonomia. E as finas placas de alumínio que serviam como sua desculpa para armadura faziam pouco para poupar seus pilotos do calor residual dos pacotes de energia ou das intensas vibrações de suas quatro pernas.

Os humanos podiam se adaptar a praticamente qualquer coisa, mas andar nos Juggernauts nas primeiras vezes era extremamente desgastante para os novatos, com seus corpos subdesenvolvidos e pré-púberes. Manobras de combate faziam seus membros doerem, tornando muitas das crianças incapazes de continuar lutando, o que consequentemente resultava em sua eliminação. E tudo isso era exacerbado pela intensidade absurda das batalhas para as quais eram forçados a marchar.

"Bem, tenho certeza de que muitos de nós estão prestes a desmaiar, então a reunião de hoje termina aqui... Nouzen, você está livre para ir dormir; apenas certifique-se primeiro de voltar para o seu quarto."

A brincadeira descontraída de Alice permitiu que os companheiros sobreviventes soltassem sua primeira risada em um bom tempo. Alguns dos novatos que foram forçados a assistir seus amigos morrerem ainda tinham expressões um pouco rígidas, mas conseguiram curvar os lábios um pouco.

Mas mesmo entre eles, ela viu o garoto de olhos vermelhos manter a cabeça baixa, sem sequer um tremor de emoção em sua expressão. Isso a preocupou.

"Posso te perguntar algo, Alice? Capitã?"

Embora a base fosse ocupada principalmente por adolescentes, os membros das equipes de manutenção dos Juggernauts eram a exceção a essa regra. A maioria deles tinha mais de vinte anos. Muitos eram ex-soldados que permaneceram no campo de batalha ou Eighty-Six feridos que foram relegados ao trabalho de manutenção. Ao contrário dos Processadores, que eram em grande parte dispensáveis e substituíveis, o conhecimento profissional de manutenção era considerado essencial e valioso. E assim, mesmo Eighty-Six que não conseguiam mais lutar não eram descartados tão facilmente.

"Sobre essa máquina. Quem estava pilotando era um novato em sua primeira batalha, certo? Posso perguntar que tipo de acrobacias a criança fez para estragar tanto o sistema de suspensão depois de apenas uma luta?"

Guren, o chefe de manutenção, perguntou isso a Alice com uma expressão amarga, apoiando as mãos em um Juggernaut em espera. Ele era um jovem de cabelos vermelhos, sete anos mais velho que ela.

Ele havia servido por três anos como mecânico na primeira unidade defensiva do trinta e cinco distrito. Ele sabia quão selvagem poderia ser a luta aqui, e se ele estava fazendo essa expressão, a unidade deve realmente ter estado em má condição.

"Foi tão ruim assim?"

"O atuador está em pedaços. Não tem sentido nem mesmo consertar; teremos que substituir tudo," ele disse, e então dirigiu seus olhos azuis para ela, como se a pressionasse por uma resposta à sua pergunta.

"Bem, acredite ou não, ele enfrentou um Löwe", ela disse.

A boca de Guren se abriu.

"...Sério?"

"Sim. E ele o derrubou sozinho. Seu motor falhou depois disso, então tivemos que cobrir para ele, embora... Foi a primeira batalha dele. Um novato — e tão pequeno assim. Dá arrepios."

Sua exasperação era natural. A maioria dos novatos em sua primeira batalha tinha sorte se não acabassem atirando acidentalmente em um colega. E com a alta taxa de mortalidade no Setor Eighty-Six, a maioria deles provavelmente perderia o almoço na melhor das hipóteses e a vida na pior. Apenas voltar vivo era um trabalho bem feito para os novatos.

A diferença de desempenho entre a unidade média da Legion e o Juggernaut era simplesmente enorme. O Império Giadiano fora um gigante tecnológico e uma superpotência militar, e construíram a Legion equipando-os com a tecnologia mais avançada e ferocidade de combate que puderam reunir. Em comparação, o Juggernaut era um pedaço de lixo defeituoso.

Sua potência de fogo era fraca, sua armadura era frágil, e sua mobilidade limitada não permitia nem mesmo pular adequadamente. Sua construção era além de imprudente; era uma arma destinada a enterrar os Eighty-Six dispensáveis, com seu único mérito sendo sua capacidade de atirar.

Até mesmo lutar contra os tipos leves Grauwolf era um desafio para o Juggernaut. Então enfrentar um Löwe, a unidade central e símbolo da força ofensiva da Legion, era absurdo... Mesmo Alice, que estava se tornando uma veterana, não estava certa se poderia fazer isso de forma confiável.

"Vou admitir que eu estava errado sobre aquele. A maioria das crianças como ele normalmente não vive por muito tempo, mas..."

Ela estava vendo cada vez mais desses tipos de crianças chegando entre os novatos. Crianças que pareciam estar faltando algo vital. Que pareciam ter matado suas emoções e desenvolvido uma indiferença a tudo ao seu redor. Crianças que evitavam interação.

Essas crianças eram as primeiras a morrer no Setor Eighty-Six. Elas falhavam em fazer com que seus camaradas as cobrissem e pareciam não se importar com sua própria sobrevivência. Na maioria dos casos, elas não sobreviviam à primeira batalha. E mesmo que sobrevivessem à primeira... não voltavam da segunda.

É claro que Alice não podia culpá-las por se tornarem assim. Quando a guerra começou e ela foi enviada para os campos de internação com o restante dos Eighty-Six, Alice tinha treze anos. Ela tinha alguma compreensão do mundo ao seu redor e desenvolveu sua própria identidade até aquele ponto.

Mas crianças como Shin tinham apenas sete ou oito anos na época. Eles tiveram armas repentinamente apontadas para suas cabeças e foram mandados para campos de internação cercados por campos minados e arame farpado, onde eram forçadas a viver como gado. Em dois anos, perderam seus pais, avós e irmãos... Nenhuma criança poderia suportar tanto e sair mentalmente incólume.

Shin tinha uma situação pior, no entanto. Ele claramente tinha sangue imperial nobre correndo em suas veias, ligando-o ao mesmo Império que criara a Legion em primeiro lugar. Pessoas como ele eram culpadas pela guerra e odiadas nos campos de internação. Era o tipo de linhagem destinada a atrair discriminação severa.

Os Eighty-Six eram alvos de discriminação, mas não eram necessariamente vítimas inocentes. O mundo sempre tinha uma maneira de ser mais cruel com os superados em número e os fracos.

"...Então, aquele garoto, Shin, foi isso?" Guren resmungou. "Você deveria cuidar dele."

Esse comentário fez com que Alice piscasse de maneira perplexa.

"Bem... eu sou a capitã do esquadrão dele, então, claro, eu vou cuidar dele. Mas por quê?"

Guren desviou o olhar dela, fixando o olhar no Juggernaut à sua frente.

"Não consigo ver exatamente isso claramente, mas... acho que ele tem medo dos garotos mais velhos. Garotos da sua idade. Todos são mais altos e têm vozes mais profundas..."

"…?"

Aparentemente, Guren tinha a habilidade sobrenatural de "ver" as emoções das pessoas. Supostamente, ele herdou isso da linhagem de seu pai de cabelos vermelhos, e se manifestava de maneira bastante tênue nele. Mas sua capacidade de ler os sentimentos dos outros já tinha sido uma bênção para Alice no passado. Ela não ia duvidar dele agora.

"Mas, felizmente, você é uma mulher. Não parece que ele tem medo de você ainda. Então, achei que deveria te contar."

"Bem, será que... alguns homens fizeram algo com ele no campo de treinamento do acampamento? Eles... o espancaram ou algo assim?"

Qualquer conceito de ordem pública havia desmoronado há muito tempo dentro dos campos de internação, e todos os soldados da República que interagiam com os Eighty-Six — seja nos centros de treinamento, durante o transporte ou ao comandá-los em batalha — eram verdadeiros canalhas, para dizer o mínimo.

"Bem, eu não vi nada assim, então eu não sei, mas... aposto que há uma história por trás do que aconteceu com o pescoço dele. Há uma emoção enrolada em torno de sua garganta... como uma coleira, ou uma corrente, sufocando-o sob essas bandagens."

"…"

Todos os Processadores tinham dispositivos RAID inseridos na parte de trás de seus pescoços para o Para-RAID. Isso era indispensável para sobreviver no Setor Eighty-Six, mas a forma como a República os implantava era bastante brutal e dolorosa.

O cristal nervoso quase-real estava incorporado sob a pele, mas havia casos raros em que os Processadores sofriam danos na coluna, resultando em paralisia. Esses Processadores eram removidos, é claro. E todo o procedimento era realizado sem anestesia ou qualquer desinfetante, então a ferida deixada por esse acidente nem sempre cicatriza necessariamente.

Alice sempre assumira que Shin usava as bandagens em torno do pescoço porque a ferida do implante ainda não tinha cicatrizado, mas aparentemente, não era o caso...?

"…Entendido. Vou ficar de olho nele."

No dia seguinte, Alice se viu imediatamente em uma situação preocupante em relação ao garoto.

"— Tirei os olhos dele por dois segundos, e ele saiu correndo para algum lugar. Inferno, quem sabe, talvez o Nouzen tenha ido embora por conta própria..."

Quando o capitão do esquadrão de Shin veio até ela depois da patrulha, dizendo com uma expressão pálida que o Juggernaut de Shin havia desaparecido, Alice balançou a cabeça na tentativa de evitar a enxaqueca iminente.

Graças às potentes unidades de interferência da Legion, o Eintagsfliege, tanto o radar quanto as transmissões de rádio eram completamente ineficazes. E para evitar ataques-surpresa, os Processadores tinham que patrulhar continuamente a área de combate. Às vezes, eles encontravam unidades avançadas da Legion, o que poderia se transformar em batalhas intensas. Isso tornava essas patrulhas em um trabalho de rotina estressante para todos os esquadrões.

E no meio de uma patrulha tão angustiante, o mais jovem fledgling do esquadrão havia desaparecido.

"…Entendido. Vou fazer minha tropa procurá-lo. Peça para o restante das tropas continuar com a patrulha."

Felizmente, ela encontrou o pequeno encrenqueiro antes muito tempo.

"— Nouzen."

Ao ouvir sua voz, Shin, que estava parado sobre uma pilha de destroços cobertos de neve, virou-se para olhar para ela.

O exército da República foi aniquilado pela Legion nas primeiras duas semanas da guerra, forçando os cidadãos da República a abandonar a grande maioria de seu território e se fechar atrás de muralhas fortificadas. Como tal, as ruínas da cidade que compunham os campos de batalha do Setor Eighty-Six eram desprovidas de qualquer presença humana...

... com exceção dos desumanos Eighty-Six.

Alice fez seu Juggernaut se ajoelhar e depois caminhou até ele com um sorriso amargo. Por que ela achava que ele era maduro e dócil? Olhando para ele agora, estava claro que ele era um garoto bastante agitado.

"Eu estava me perguntando o que deu em você quando desapareceu no meio da patrulha... Você nunca sabe onde a Legion pode estar à espreita. Não saia sozinho de novo."

Mesmo um Löwe, com seus cinquenta toneladas de peso, poderia se mover sem fazer barulho. Houve casos de Processadores que não perceberam a Legion que se aproximava até estarem cara a cara com as monstruosidades mecânicas.

"E andar pelo campo de batalha fora da sua unidade... Você estaria morto num piscar de olhos se uma mina autopropelida o encontrasse."

"Desculpe... Mas não há Legion na área agora."

Alice fez uma pausa, olhando confusa para o garoto. Ele parecia estranhamente confiante nisso. Shin desceu do pequeno monte de destroços e concreto reforçado. Ele se aproximou dela, seus passos abafados apesar das solas duras de suas botas de combate. O cano de um fuzil de assalto de 7,62 mm estava preso ao seu ombro, a arma claramente grande demais em proporção à sua pequena estatura.

"Então, o que você estava fazendo aqui?" perguntou Alice.

Quando ela o encontrou, ele estava agachado sobre o monte de concreto, aparentemente procurando por algo. Uma vez que ouviu a pergunta dela, seus olhos vermelhos como sangue pareciam afundar um pouco.

"... Eu queria procurar algo de Teito."

Sua resposta deixou Alice momentaneamente sem palavras.

"O corpo dele provavelmente sumiu, então procurei por um pedaço da unidade dele... Pelo menos, foi o que pensei que deveria fazer."

Shin voltou seu olhar para a rua principal das ruínas da cidade, mas além das marcas de queimaduras que persistem no asfalto, não havia mais nada. Nem o Juggernaut destruído de Teito, nem o Löwe que Shin derrubou. Nem mesmo as três unidades leves que seus consortes destruíram mais tarde. Não restava sequer um fragmento de nenhum deles.

"... A Legion tem unidades especializadas que coletam destroços... o Tausendfüßler. Eles podem limpar os restos de uma batalha desse tamanho em menos de uma noite."

Eles pegavam tudo o que conseguiam encontrar sem discriminação. Seja amigo ou inimigo. As ruínas de unidades destruídas, fragmentos de conchas, veículos e aeronaves em bases militares abandonadas. Eles coletavam avidamente tudo isso e o levavam para as entranhas do Weisel aninhado profundamente nos territórios da Legion. Os Weisel em si eram gigantes fábricas autônomas que devoravam esses destroços e os usavam para construir mais Legion, que lançavam tão rapidamente quanto a fumaça preta subindo de seus escapamentos.

Tudo para destruir seu inimigo designado: todos os humanos que não faziam parte do império que os criou.

As bases de frente da República tinham, na verdade, unidades autônomas que desempenhavam basicamente o mesmo papel. Essas bases possuíam pequenas instalações de produção e fábricas automáticas, tornando-as auto-suficientes mesmo em pleno campo de batalha. Claro, os humanos altivos se recusaram a sair da segurança de suas muralhas, o que significava que precisavam de algum tipo de sistema automático de alimentação para suprir os Eighty-Six.

Assim, para tudo o que Alice sabia, a unidade de Teito poderia já estar no forno de reciclagem de sua base... mas ela não contou isso a ele. Dizer a alguém que seu Juggernaut usava peças de reposição dos destroços da unidade de um amigo morto poderia dar a eles a sensação de que estavam canibalizando seus camaradas. E essa era uma verdade brutal que Shin não precisava enfrentar... Pelo menos, ainda não.

De qualquer forma, Alice sorriu para ele. Ela realmente havia julgado mal esse garoto. Suas expressões e emoções podiam parecer apagadas. Ele realmente parecia distante do que acontecia ao seu redor, e a maneira como evitava olhar nos olhos dela indicava sua tendência a evitar interações pessoais.

Mas ele não era completamente indiferente às pessoas ao seu redor. Muito pelo contrário, na verdade.

"…Você é doce. Você queria algo para se lembrar dele, não é?"

Teria ele se encontrado em um campo de batalha impiedoso, onde a morte espreitava em cada esquina, por esse motivo sozinho? Mas Shin balançou a cabeça suavemente.

"Eu queria avisá-lo, mas não pude."

Um leve traço de emoção brilhou por trás de seus olhos vermelho-sangue. Autocondenação...?

"Foi a primeira vez que uma unidade da Legion chegou tão perto de mim, então eu não achava que se moveriam tão rápido. Mas eu podia dizer que estava perto. Então eu poderia tê-lo avisado... e porque eu não fui cuidadoso, ele—"

Alice estendeu a mão em direção ao garoto, pousando-a em sua cabeça. Alice era alta, e Shin ainda era pequeno. A diferença de altura entre eles era bastante significativa. Com suas palavras interrompidas, Shin ficou tenso de surpresa e olhou para cima. Alice o encarou e disse:

"Qualquer pessoa que precise que os outros a alertem em situações como essas está praticamente morta."

Aquelas palavras eram sombrias e frias. Ela continuou, olhando nos olhos escarlates do garoto enquanto ele os abria lentamente.

"É esse o tipo de campo de batalha em que estamos. Se você não tentar se proteger, vai morrer eventualmente. E nem sempre estaremos aqui para cuidar de pessoas que não conseguem fazer isso por si mesmas."

O poder de fogo do Juggernaut era fraco, e sua estratégia principal envolvia várias unidades trabalhando em conjunto para atacar o flanco e a retaguarda do inimigo, onde a armadura era mais fina. Os camaradas precisavam trabalhar juntos para sobreviver neste campo de batalha. Mas, no final, era responsabilidade de cada pessoa proteger sua própria vida.

Havia momentos em que alguém ficava isolado no meio da batalha. Quando as unidades parceiras não podiam oferecer nenhum suporte. E quando os colegas de esquadrão estavam todos... aniquilados. Casos assim aconteciam o tempo todo. E pessoas que precisavam que outros as cobrissem geralmente não sobreviviam nessas situações. E a responsabilidade por suas mortes não recaía sobre aqueles que não puderam protegê-los.

"Então, não deixe que o que aconteceu com Teito pese sobre você. Não é sua culpa... Se algo, acho que ele ficou feliz em ter um amigo como você ao seu lado no final."

"..."

"Então, lembre-se dele... Essa é a maior homenagem que você pode fazer por ele."

Alice estendeu a mão em direção ao garoto, pousando-a em sua cabeça. Alice era alta, e Shin ainda era pequeno. A diferença de altura entre eles era bastante significativa. Com suas palavras interrompidas, Shin ficou tenso de surpresa e olhou para cima. Alice o encarou e disse:

"Qualquer pessoa que precise que os outros a alertem em situações como essas está praticamente morta."

Aquelas palavras eram sombrias e frias. Ela continuou, olhando nos olhos escarlates do garoto enquanto ele os abria lentamente.

"É esse o tipo de campo de batalha em que estamos. Se você não tentar se proteger, vai morrer eventualmente. E nem sempre estaremos aqui para cuidar de pessoas que não conseguem fazer isso por si mesmas."

O poder de fogo do Juggernaut era fraco, e sua estratégia principal envolvia várias unidades trabalhando em conjunto para atacar o flanco e a retaguarda do inimigo, onde a armadura era mais fina. Os camaradas precisavam trabalhar juntos para sobreviver neste campo de batalha. Mas, no final, era responsabilidade de cada pessoa proteger sua própria vida.

Havia momentos em que alguém ficava isolado no meio da batalha. Quando as unidades parceiras não podiam oferecer nenhum suporte. E quando os colegas de esquadrão estavam todos... aniquilados. Casos assim aconteciam o tempo todo. E pessoas que precisavam que outros as cobrissem geralmente não sobreviviam nessas situações. E a responsabilidade por suas mortes não recaía sobre aqueles que não puderam protegê-los.

"Então, não deixe que o que aconteceu com Teito pese sobre você. Não é sua culpa... Se algo, acho que ele ficou feliz em ter um amigo como você ao seu lado no final."

"..."

"Então, lembre-se dele... Essa é a maior homenagem que você pode fazer por ele."

"…Eu vou."

"Se alguém é culpado pelo que aconteceu, sou eu, a capitã... Me desculpe."

Shin balançou a cabeça suavemente mais uma vez. Alice sorriu ao ver seu gesto breve e acariciou novamente seus cabelos pretos. Ele era mesmo um garoto gentil. Muito gentil para este mundo implacável. Mas bastou um momento para Shin olhar para ela com desagrado... Aparentemente, ele não estava muito feliz por ser tratado como uma criança.

Alice o soltou, e ele deu alguns passos para longe antes de voltar os olhos para ela.

"Capitã Araish—"

"Me chame de Alice. Minha patente não significa nada de qualquer maneira."

Para esclarecer a cadeia de comando, Processadores recebiam patentes uniformes. Mas, como não eram tratados melhor nem recebiam salários condizentes, as patentes eram nominais na melhor das hipóteses.

"…Por que você está aqui, Capitã?"

Chamar uma pessoa mais velha pelo primeiro nome parecia ser um passo longe demais para ele.

"Ah, mesmo motivo que o seu... Eu pensei que o Teito poderia ter deixado algo para trás, então vim ver se há algo para pegar."

A verdadeira razão dela era que ela havia vindo procurar um pequeno brincalhão que havia desaparecido durante a patrulha, mas ela deixou isso sem dizer.

Shin inclinou a cabeça. Alice mesma havia acabado de dizer que o Tausendfüßler coletava pedaços dos destroços do Juggernaut. Ele provavelmente não entendia por que ela tinha vindo procurar coisas de Teito se ela sabia disso.

"Certo, eu ainda não contei a vocês, novatos... Bem, eu explico quando voltarmos à base. Você deixou seu parceiro ali. Entre e vamos voltar."

O Juggernaut de Shin estava agachado atrás de alguns destroços, parecendo terrivelmente abandonado.

"Esses são os marcadores de túmulos para os que morreram ontem. Teito Kurusu, Atori Laishi, Nana Ouka e Amala Kii."

Diante de seus companheiros de esquadrão — cujo número havia diminuído para catorze após as baixas do dia anterior — Alice segurou algo para que todos vissem. Pequenos fragmentos de metal, com apenas alguns centímetros de tamanho, com os nomes deles gravados. Pedaços esfacelados que encontraram, com os nomes entalhados com um prego. Bastante rudimentares como marcadores de túmulos.

Os cidadãos da República dentro das muralhas provavelmente ririam dessa desculpa cômica para um marcador de túmulos. Mas nenhum dos meninos e meninas na sala riu. Catorze pares de olhos, cada um com sua própria tonalidade única, olharam sinceramente e gravemente para esses fragmentos de metal.

Eles eram a única salvação que se poderia esperar no campo de batalha em que estavam aprisionados.

"Nós, os Eighty-Six, não temos túmulos. Nossos nomes foram riscados de todos os registros, e não deixaremos nenhum cadáver para trás de qualquer maneira. Então, esses são nossos marcadores de túmulos. Nós gravamos os nomes daqueles que morreram, e um dia, nossos nomes também serão registrados assim... Isso é prova de que existimos."

Mesmo que esses pequenos fragmentos de prova simplesmente enferrujem em algum lugar no campo de batalha, sem ninguém para lamentá-los ou mesmo vê-los. Mesmo que o vento e a areia os desgastem até desaparecerem, sem deixar vestígios.

"Façamos uma promessa, todos. Gravaremos os nomes daqueles que morreram nos fragmentos de suas unidades e teremos aqueles que sobreviverem carregá-los. Dessa forma, aqueles que sobreviverem até o fim podem levar todos os outros consigo para o destino final."

Em um campo de batalha como o Setor Eighty-Six, que havia sido dominado pela Legion, um fragmento do Juggernaut ou um pedaço de metal ou madeira era o máximo que se podia esperar.

"Vamos lembrar dos camaradas que lutaram ao nosso lado. Mesmo que seja por apenas um momento."

Alice passou três anos lutando no Setor Eighty-Six, onde a taxa de sobrevivência anual de um Processador era inferior a 0,1%. E todos que haviam lutado com ela durante esse tempo já se foram.

Provavelmente, todos nesta unidade também a deixariam para trás.

Ela olhou nos olhos claros e escarlates que a fitavam da cadeira no canto da última fila e sorriu.

Ele era como seu irmão mais novo, que havia morrido de doença no campo de internamento. Se ele ainda estivesse vivo, provavelmente teria a mesma idade que ele. Mas ele nunca chegou a essa idade.

"Eu levarei todos vocês comigo quando chegar a hora. Então, vocês... não têm nada a temer."

"Merda." Ela ouviu a voz de alguém em pânico pelo Para-RAID. E menos de um momento depois, ela viu o Juggernaut de Shin sendo envolvido por uma nuvem de sedimentos negros. Algo tinha caído do céu, perfurando a terra com uma onda de choque explosiva e lançando uma enorme quantidade de sedimentos no ar.

A força dessa onda negra lançou o Juggernaut leve pelo ar, e Shin foi impotente, sendo levado junto com sua unidade.

Os olhos vermelho-sangue de Shin se abriram. Ele piscou duas vezes, depois uma terceira vez, e virou a cabeça para olhar ao redor. Estava claro que ele não compreendia a situação em que se encontrava. Sentada ao lado de sua cama simples de tubos apertada, Alice pensou que fazia sentido ele reagir assim. Ela fechou o livro de capa dura em suas mãos e chamou por ele.

"Você acordou, Nouzen?"

"…Capitã."

Ele respondeu com voz rouca, mas seu tom e olhar felizmente estavam lúcidos. Aparentemente, ele não sofreu danos fatais no cérebro. Ele colocou a mão nas folhas desbotadas e se ergueu. Reconhecendo que estava em seu quarto nas antigas barracas pré-fabricadas, ele se virou para ela com um olhar apreensivo.

"…Por quê?"

"Sim, eu imaginei que você não se lembraria. As unidades de longo alcance da Legion… O bombardeio dos tipos Skorpion te lançou para longe, e você desmaiou. A Legion utiliza suporte de artilharia de suas linhas de retaguarda quando estão em retirada. Eles não foram mobilizados desde que você entrou, mas… aparentemente, estão ativos agora. Então, agora você sabe que mesmo se a Legion começar a recuar, não pode se dar ao luxo de descuidar."

Os tipos Skorpion eram as unidades de artilharia da Legion, armadas com canhões de projéteis de 155 mm. Eles sempre permaneciam escondidos nas profundezas dos territórios da Legion, e Alice nunca tinha visto um de verdade. Afinal...

"Os tipos Skorpion têm um alcance de trinta a quarenta quilômetros. Eles estão bem fora do alcance de detecção do Juggernaut. Não sabemos se estão lá até começarem a disparar."

As armas modernas têm uma variedade surpreendentemente ampla. Mesmo uma torreta de tanque curta, projetada para engajamentos de curto alcance, pode disparar dois quilômetros em qualquer direção, e, dependendo do tipo de munição usada, um obuseiro pode atingir um alvo a até quarenta quilômetros de distância.

Um ataque que alcança de muito fora do alcance do que se pode ver na superfície. De um alcance que alguém inexperiente em combate nem pode começar a imaginar.

Alice e os Eighty-Six não receberam uma arma de artilharia com um alcance equivalente, então, se um Skorpion aparecesse, estaria sempre fora do alcance do canhão de 57 mm de seus Juggernauts, e eles ficavam indefesos diante do bombardeio inimigo.

"E você não consegue perceber...?" Shin perguntou.

"Bem, com base na quantidade de Ameise ao redor, podemos arriscar um palpite."

A Legion também não conseguia ver quarenta quilômetros à frente. Mesmo o sensor óptico mais avançado não podia detectar algo escondido muito além do horizonte. Como as unidades de longo alcance não podiam confirmar suas trajetórias ou alinhar suas miras por conta própria, elas precisavam da ajuda de Unidades Observadoras implantadas perto do local do bombardeio.

"…"

Mas isso era um pouco demais para um novato no campo de batalha entender. Shin caiu em um silêncio pensativo, aparentemente confuso.

"De qualquer forma, estou feliz que você esteja bem... Ou é isso que eu diria normalmente, mas..."

Shin olhou nos olhos de Alice, e ela examinou suas características em troca. Suas bochechas ainda tinham os contornos redondos de um bebê, e ele tinha bandagens brancas logo acima da testa e ao redor de seus braços esguios. E havia outros hematomas e lacerações por todo o seu corpo, muitos para cobrir.

"Você está sendo muito imprudente... Quantas vezes eu tenho que te dizer? Pare de tentar lutar contra a Legion sozinho."

Todas as suas lesões eram recentes da batalha de hoje. Algumas delas eram do momento em que foi lançado para trás pelo fogo do Skorpion, mas a maioria ocorreu antes disso.

Ele se aproximou demais de um Grauwolf e desviou de uma de suas lâminas de alta frequência. E embora tenha evitado um golpe direto, a lâmina ainda roçou contra seu bloco de cockpit e estilhaçou uma tela óptica. Seus fragmentos voaram ao redor do bloco de cockpit e choveram sobre ele.

Já fazia um mês desde que Shin foi destacado para o esquadrão dela. E embora ele desempenhasse sozinho o tipo de trabalho que ninguém esperaria de um novato, ele regularmente quebrava a formação durante as batalhas e desafiava a Legion sozinho. Suas ações eram absurdamente perigosas.

Alice só podia suspirar nervosamente. Ela tinha que repreendê-lo sobre isso em cada sessão de análise, mas ele nunca ouvia.

"Lutamos contra a Legion como unidades coordenadas. Aqui no Setor Eighty-Six, não há necessidade de glória. Ninguém se importa se você conseguir o primeiro abate ou se vencer um inimigo individualmente. A imprudência é equivalente a suicídio. Coopere com seus companheiros de esquadrão."

"…Se eu perturbar as linhas da Legion, darei aberturas para meus companheiros de esquadrão explorarem."

"Talvez sim, mas essas não são manobras que você pode fazer nesse caixão ambulante."

A armadura de liga de alumínio do Juggernaut era muito fina e frágil. Mesmo a parte mais resistente, a armadura frontal, não suportava tiros de metralhadora. No final, tudo o que podiam fazer era desviar dos ataques da Legion, mas a mobilidade do Juggernaut era muito inferior à deles. Então, embora pudessem evitar ataques de uma distância segura, não conseguiriam desviar de mais ataques em combate próximo se o inimigo tivesse eles na mira.

"Mas—" Shin tentou argumentar com uma persistência incomum.

"Nouzen," Alice o cortou com uma voz baixa.

Aparentemente, esta era uma colina na qual ele estava disposto a morrer. E provavelmente o fazia por um desejo genuíno de proteger seus companheiros de esquadrão. Mas Alice também não estava disposta a ceder. Nunca.

"Isso é suficiente. Eu não quero que nenhum dos meus companheiros de esquadrão tenha que viver com a culpa de ter um amigo morrendo para que eles possam sobreviver."

A vergonha e a covardia de viver porque alguém se sacrificou por você. E Alice ainda não havia perdido seu orgulho. Ela não era o tipo de pessoa vergonhosa que deixaria o mais jovem novato pagar o preço por ela.

"Ou será que você está realmente tentando se matar? Porque deixe-me dizer uma coisa agora, não há lugar no meu esquadrão para—"

"Eu não posso morrer."

Desta vez, foi Shin quem interrompeu suas palavras. Seu tom estava excepcionalmente afiado, contrastando com sua atitude usual quieta. Alice ficou em silêncio e simplesmente o observou por um momento. Ele baixou o olhar escarlate, recusando-se a encontrar o dela.

"Eu não posso me dar ao luxo de morrer. Ainda não. Então... eu não vou."

Seus olhos e tom estavam terrivelmente rígidos. Era como se ele estivesse falando por um senso de dever, mas havia um toque sombrio e trágico.

Como se estivesse falando de sua determinação. De sua obsessão.

"Isso tem a ver com aquela... cicatriz em seu pescoço?" — a pergunta escapou dos lábios de Alice antes que ela pudesse se conter—"...tem algo a ver com isso?"

Ela podia ver Shin prender a respiração por um momento. Ele rapidamente colocou a mão em sua garganta, apalpando-a, e quando percebeu que não conseguia sentir as bandagens, seus olhos escarlates se arregalaram. Alice apertou nervosamente os lábios vermelhos. Apenas esse gesto evocava mais do que qualquer número de palavras jamais poderia.

Guren já havia lhe falado sobre isso.

Eu apostaria que há uma história por trás do que aconteceu com o pescoço dele.

Há uma emoção enrolada ao redor de sua garganta... como uma coleira, ou uma corrente, sufocando-o sob essas bandagens.

Mas não era algo tão simples quanto uma emoção. Seu pescoço pálido e esguio tinha uma contusão irregular, sinuosa e cor de sangue. A cicatriz dava a impressão de que sua cabeça tinha sido cortada e depois costurada de volta no lugar. O que quer que tenha acontecido com ele claramente foi feito por malícia. Era uma cicatriz difícil de se olhar.

Alice notou seus olhos vermelhos e arregalados olhando para ela. Sentindo seu olhar se encontrar com esses olhos congelados, Alice ficou chocada. Ele estava aterrorizado. Esse garoto, que não mostrava o menor medo ou pavor diante da morte de seu amigo ou da intensidade do campo de batalha, a encarava com mais medo do que ela já o vira demonstrar antes.

Ele tinha medo que lhe perguntassem sobre isso. Medo de lembrar. Medo... de falar sobre isso.

"Ahh, desculpe." Alice recuou apressadamente. . "Isso foi errado da errado da minha parte. Eu não queria olhar."

Ele tinha perdido a consciência, e após afrouxar suas roupas, ela foi quem tirou as bandagens, pois pensou que elas poderiam estar o sufocando. (A República não enviava médicos, porque este era um campo de batalha de drones, e eles eram porcos humanóides.)

Ela não pretendia ver, mas viu. Era claramente algo que ele não queria que outras pessoas percebessem.

"Me desculpe. Eu pensei que você poderia colocá-las depois de acordar, mas não deveria ter pedido... Espere, não faça isso!"

Parece que Shin não estava ouvindo-a. Ele apertou os dedos, que cobriam sua garganta. Suas unhas estavam afundando na cicatriz. Percebendo isso, Alice pegou sua mão. Gentilmente, para não surpreendê-lo ou assustá-lo. E ao confirmar que ele não estava resistindo à sua pegada, ela suavemente afastou sua mão do pescoço.

Embora ele não estivesse mais tentando se machucar, sua respiração permanecia rápida e superficial. Parecia que ele ainda estava preso no gelo do pânico. Seus traços juvenis estavam rígidos e pálidos como um lençol, e suas pupilas estavam contraídas.

Seu olhar congelado estava mergulhado no passado, e ele não conseguia ver a realidade diante dele.

"...Nouzen."

Ele não respondeu.

"Nouzen. Olhe para mim."

Ainda sem resposta... Talvez ser chamado pelo sobrenome não tivesse registrado totalmente para ele.

"Shin."

Seus olhos, que estavam fixos em um ponto no espaço, oscilaram um pouco. Ele voltou sua atenção para ela, mesmo que levemente. Aproveitando essa chance, Alice continuou a falar, cuidando para manter sua voz o mais calma e controlada possível.

"Shin. Olhe para mim. Você está seguro agora. Olhe para mim."

Ela repetiu essas palavras, segurando suavemente suas mãos. Depois de um tempo... um tempo considerável, seu pequeno corpo tenso finalmente relaxou.

Ele fechou os olhos e exalou, falando ao mesmo tempo.

"...Me desculpe."

"Está tudo bem", disse Alice, balançando a cabeça vagamente.
Mencionar a cicatriz dele de forma descuidada foi um erro da parte dela. Ele não deveria ter que se desculpar.

"Eu só... me senti um pouco enjoado, só isso. Não tem nada a ver com a cicatriz.""

A maneira como ele disse isso fez Alice perceber algo. A maneira como ele estava escondendo sua cicatriz, a maneira como ele temia que os outros a vissem... Não era apenas que ele não queria que as pessoas se intrometessem ou que não queria lembrar dela.

Ele não queria que a pessoa que deixou a terrível cicatriz fosse culpada por isso. Mesmo que tenham feito isso de propósito.

Nesse caso...

Alice desfez rapidamente o lenço em seu pescoço. Estendendo as duas mãos, ela as estendeu sobre os ombros dele e colocou o lenço em volta do pescoço de Shin. Depois de dar um nó delicado, ela soltou o corpo dele.

Shin ficou tenso enquanto ela fazia isso. Ela se inclinou sobre ele, como se estivesse abraçando. Mas ao sentir a sensação suave ao redor de sua garganta, Shin piscou uma vez. Ele olhou para baixo, beliscando suavemente o tecido azul fino em um gesto juvenil.

"Dessa forma, você pode escondê-lo um pouco mais casualmente sem que as pessoas façam perguntas. As bandagens parecem muito dolorosas."

Era como uma maneira silenciosa de dizer que havia alguma lesão por baixo delas.

"...Não dói, porém."

"Sim. Mas...", disse Alice, pensando no que ela acabara de ver.

Ela honestamente não conseguia entender como Shin se sentia. Alguém o havia machucado o suficiente para deixar uma cicatriz tão duradoura e dolorosa em sua garganta. E seu coração também estava ferido por isso. Alguém apenas olhando para a cicatriz o fazia entrar em um flashback. E mesmo assim, ele insistia em não culpar a pessoa que fez isso com ele. Alice não conseguia imaginar sentir da mesma forma.

No entanto...

"...você não quer que ela chame atenção ou que as pessoas a vejam, certo? Você não quer que elas culpem quem fez isso com você, e você não quer que outros os culpem também. Você quer proteger essa pessoa, certo?"

Isso deve ter sido como esse garoto se sentiu. Essa foi a impressão que ela teve.

"...!"

Essas palavras fizeram Shin olhar para ela novamente. Por um momento... Por um único momento, esses olhos vermelhos sem emoção vacilaram tanto que parecia que ele poderia desabar em lágrimas. Alice olhou de volta para eles e sorriu. Como se estivesse dizendo que ele poderia chorar se precisasse, mas ao mesmo tempo, fingindo que não percebia a maneira miserável como suas lágrimas se recusavam a cair.

"Isso é meu pedido de desculpas por ter olhado. Você pode ficar com isso... É um lenço realmente bom, sabia. Cuide bem dele."

"Mas... isso não significa muito para você, capitã? Você sempre o usa..."

"Ah, não se preocupe com isso. Quando entrei no meu primeiro esquadrão, meu antigo capitão me deu isso. Eu tinha esse péssimo hábito..."

Ela torceu o dedo como uma garra e o moveu sobre a garganta.

"Eu ficava coçando meu pescoço desse jeito. Então ele achava que talvez eu não me coçasse tanto se tivesse algo em volta do pescoço."

Era um hábito que ela desenvolveu depois que seu irmãozinho faleceu. Ele havia sido levado pela doença, e sua morte não tinha sido nada pacífica. Ela formou o hábito de se coçar até se machucar sempre que pensava sobre isso. Seu capitão não conseguia suportar ver isso e lhe deu o lenço que se tornou sua marca registrada. Esse capitão era um candidato a piloto na Força Aérea da República. Ele foi deixado no campo de batalha depois de se tornar um Eighty-Six, e esse lenço foi uma das últimas possessões pessoais que tiveram.

Dizia-se que no passado, quando tudo o que se podia contar para detectar o inimigo eram os próprios olhos, os pilotos de caça usavam cachecóis. Não por capricho, mas porque virar a cabeça faria com que o pescoço roçasse contra a gola do uniforme. Era verdadeiramente um pedaço de equipamento essencial para os pilotos da época.

Mas depois que as torres de radar e os aviões a jato se tornaram a principal força aérea — e especialmente depois que a Legion roubou a superioridade aérea da raça humana — tornou-se nada mais do que um símbolo de saudade pelo passado ou um amuleto da sorte no máximo.

Então, se nada mais, poderia ser útil para proteger você de sua própria culpa.

Era uma lembrança para ela desde então. Seu antigo capitão terminou seu mandato naquele esquadrão e passou para o esquadrão Spearhead, a primeira unidade defensiva da primeira ala da frente leste. Um lugar onde a luta era mais selvagem. Uma das alas mais letais no Setor Eighty-Six, que consumia milhões de vidas.

"Já me ajudou tempo suficiente. Então, a partir de agora, vai te manter seguro."

Depois de um tempo, seu semblante voltou ao normal, e ele havia recuperado sua postura usual e calma. Alice aproveitou essa chance para perguntar:

"Acha que consegue comer alguma coisa? Está quase na hora do jantar."

Mesmo os alojamentos para os subumanos Eighty-Six tinham algumas instalações básicas. Afinal, a República via os Processadores como nada mais do que peças de um drone, então deixá-los definhar antes de serem úteis em batalha seria contraproducente. Sua sala de refeições tinha o que talvez pudesse ser descrito como a cozinha mais patética do mundo, mas tinha uma infraestrutura mínima. A sala de jantar dos alojamentos pré-fabricados provavelmente tinha alguma rachadura, pois uma brisa fria sempre soprava por ela, tornando o lugar um pouco gelado.

Enquanto Alice conduzia Shin pela entrada retangular da sala de jantar, Guren, que estava na cozinha, olhou na direção deles. Ele lançou um olhar para Alice, piscando seus olhos azuis com dúvida, e então voltou seu olhar para Shin, erguendo uma sobrancelha. No início, Alice não sabia do que ele estava surpreso, mas então ela percebeu. O lenço.

"Vejo que o pequeno acordou. Isso é bom."

"Sim. Sinto muito se o deixei preocupado, Mecânico-chefe".

"Melhor mesmo. Nouzen, pelo amor de Deus, você poderia parar de abusar do seu Juggernaut assim? As peças que foram arrancadas são uma coisa, mas o sistema de suspensão está batendo de novo."

"...Desculpe." Shin pareceu se retrair com suas palavras a princípio, mas conseguiu essa resposta.

Ao ver isso, Alice percebeu algo. Aparentemente, ele tinha dificuldade com pessoas mais velhas. Como outros soldados infantis em sua adolescência ou membros da equipe de manutenção em seus vinte e poucos anos, como Guren. Ela notou que nunca o viu se aproximar ou falar com membros mais velhos do esquadrão, a menos que eles falassem com ele primeiro.

Os Processadores do sexo masculino tinham uma taxa de sobrevivência mais alta graças à sua resistência, e garotas como Alice, que sobreviviam muito além da expectativa de vida, eram raras. Talvez seja por isso que ele parecia tão isolado aqui. Os outros meninos novatos da idade dele todos haviam morrido semanas atrás.

Guren, que havia apontado isso desde o início, deu de ombros diante das reações de Shin, mostrando que não se importava muito.

"Então, Chefe. O que temos para o jantar?" Alice perguntou a ele de forma brincalhona, observando o avental que ele usava sobre seu macacão.

"Bem, Princesa, a culinária de luxo de hoje incluirá um ensopado das deliciosas rações sintetizadas de nossa pátria orgulhosa, com um lado de rações sintetizadas mexidas. Por favor, antecipe uma refeição de sabor verdadeiramente transcendental."

Enquanto Guren falava, ele levantou um prato de alumínio que tinha quatro blocos parecidos com argila descansando sobre eles. Este era o alimento sintetizado produzido diariamente pela fábrica de produção anexa à base. Ao contrário da descrição elaborada de Guren, a única comida fornecida aos Eighty-Six eram blocos de sustento com uma aparência monótona, e só havia uma variedade.

Enquanto Shin ouvia a troca animada entre eles, ele sorriu um pouco. Era um sorriso realmente pequeno, que não se refletia em sua voz, mas foi o suficiente para fazer Alice arregalar os olhos de surpresa.

Ela não conseguia se lembrar de tê-lo visto sorrir antes. Talvez ele finalmente estivesse relaxando um pouco, pela primeira vez neste mês.

A única coisa natural servida nessa cozinha era um bule de chá, feito com a fervura do capim que crescia na área em vez de folhas de chá. Os dois aceitaram as canecas de chá e encontraram lugares vazios ao lado da mesa comprida. Como os alimentos sintetizados que recebiam, serviam também como rações de combate, não precisavam ser cozidos e não havia necessidade real de os Processadores comerem em um horário determinado ou em grupo.

Mas a menos que fosse extremamente misantropo, a maioria dos Processadores preferia fazer três refeições por dia com seus amigos. E como as rações sintetizadas que recebiam nem pareciam comida, preferiam tentar "cozinhar" algo que pelo menos parecesse comestível, mesmo que fosse apenas por uma questão de decência.

Os Eighty-Six eram considerados gado subumano, e, portanto, a República não achava que necessitavam de algo tão refinado quanto cozinhar. A comida que recebiam seria boa apenas para o propósito pragmático de fornecer os nutrientes necessários para trabalhar. Mas se aceitassem obedientemente a vontade da República dessa forma, os Eighty-Six realmente se tornaram nada mais do que componentes de armas.

Assim, mesmo que fosse pragmaticamente sem sentido, Guren cortava a comida deles em formatos mais apresentáveis e arrumava os pratos com talheres. Essa era a sua modesta forma de resistência. O máximo que podiam fazer na sua desculpa patética de uma cozinha era ferver água, mas tentavam servir chá e substitutos de café, esforçando-se de alguma forma para melhorar suas refeições.

Como parte desse esforço, Guren despejou algum tipo de molho marrom nos blocos de comida sintetizada. Isso era novo. Ele exalava um aroma doce, e Shin mergulhou o garfo nele uma ou duas vezes antes de levar à boca. Ele mastigou... e ficou rígido de maneira desconfortável.

"...Bem, ele pode tentar melhorar o sabor o quanto quiser, mas essa papa vai continuar sendo papa", disse Alice com um sorriso morno.

Sim. Essa comida sintetizada não apenas tinha uma aparência ruim, mas também tinha gosto de lodo. Após cinco anos nos campos de internamento e no campo de batalha, os Eighty-Six haviam se acostumado a esse sabor com relutância. E ainda assim, o fato de alguém ainda poder, depois de todos esses anos, ficar pasmo com o quão ruim ela era, era impressionante de sua própria maneira.

Tinha gosto de... nada. Como algo que nem remotamente se assemelhava a comida. Devido à sua forma, a maioria das pessoas o descrevia como tendo gosto de explosivos plásticos. E talvez isso fosse preciso. Era de alguma forma uma harmonia milagrosa entre o sabor do plástico e o sabor de explosivos. Uma espécie de harmonia repugnante que causava ânsias.

A propósito, explosivos plásticos reais aparentemente são levemente doces, mas são tóxicos e letais quando consumidos. Alice estava grata por não estar familiarizada com nenhum idiota corajoso ou desesperado o suficiente para realmente prová-los.

Shin mastigou a não-comida em sua boca com uma expressão estranha e duvidosa e conseguiu engolir com um pouco de chá antes de finalmente dar sua opinião.

"...Não é novidade que tem gosto ruim, mas... Hmm, o tempero de hoje está especialmente..."

Alice também levou um pouco à boca e ficou em silêncio por um momento.

"...Acho que entendi. O molho combina tão bem que realmente piora. Que tipo de tempero é esse, afinal? Eu não conheço esse condimento."

"Molho de soja e açúcar!", alguém gritou da cozinha, fazendo com que Alice estremecesse.

"Mais coisas estranhas...? Qual é o gosto?"

Shin inclinou a cabeça curiosamente. Era verdadeiramente um gesto infantil, um lembrete de que ele realmente era um garoto no início da adolescência.

"A propósito, de onde vêm esses temperos? As fábricas de produção só fazem comida sintetizada, e acho que os transportes aéreos não os entregam, também..."

Alice piscou por um momento. Ela já não havia contado a ele?

"Ah... acho que não fomos lá desde que você entrou... Na verdade, perto da fronteira do Setor, há algumas ruínas de cidades abandonadas. Então, nós conseguimos isso nos depósitos das lojas e casas de lá".

"…?"

Ele não parecia entender e, em vez disso, inclinou a cabeça para o outro lado.

"Quando evacuaram os civis após o início da guerra, isso foi feito às pressas. Há muitas coisas que eles deixaram para trás. E nas ruínas da cidade, você pode encontrar todos os tipos de mantimentos enlatados e de longa conservação."

Ao vê-lo levantar a cabeça surpreso, Alice não pôde deixar de sorrir. Aquela gororoba insípida deve ser realmente ruim se até esse garoto indiferente está pedindo algo diferente.

"Mas não podemos fazer expedições lá com muita frequência... Tenho certeza de que você entende agora, mas as patrulhas no Setor Eighty-Six ocupam o dia inteiro."

A Legion tinha uma maneira de evitar a detecção de radar, então os Eighty-Six tinham que passar seus dias em patrulhas para evitar surpresas.

"Então, eventualmente, teremos que te ensinar a caçar e cortar animais também... Mas é assim que temos esse molho qualquer."

Além de coelhos selvagens, veados e javalis, o Setor Eighty-Six tinha galinhas, porcos e vacas selvagens que haviam escapado de fazendas. Pássaros e coelhos eram relativamente fáceis de pegar, mas todos os Eighty-Six e a equipe de manutenção tinham que colaborar quando se tratava de caçar e esfolar presas maiores. Lembrando dessas ocasiões, Alice curvou os lábios em um sorriso agridoce.

"...Eu queria que os outros novatos pudessem experimentar também... Todas as pessoas nos campos têm apenas comida sintetizada, não é?"

Como os campos de internamento estavam cobertos de campos minados e arame farpado, nem animais selvagens podiam se infiltrar, e todas as plantas comestíveis foram esgotadas nos primeiros dias do internamento. Crianças como Shin, que estavam nos campos desde pequenas, podem não ter memórias de ter uma refeição decente.

Shin não pôde responder diretamente às palavras de arrependimento de Alice. Em vez disso, ele olhou ao redor da sala de jantar relativamente tranquila e suas muitas cadeiras vazias e sussurrou:

"...Há muito menos de nós agora."

"Sim."

Eles perderam mais dois na batalha de hoje, reduzindo o esquadrão original de vinte e quatro Processadores para apenas doze. Chegaram ao ponto em que o esquadrão precisaria de mais pessoas ou de uma reorganização.

"Isso é inevitável. A luta nesta área é bastante brutal."

O combate com a Legion nunca foi fácil, mas as batalhas em alguns setores eram mais implacáveis do que em outros. O Trigésimo Quinto Setor era um desses campos de batalha. Mas Alice mordeu os lábios assim que disse isso. Ela tinha acabado de tratar aquelas mortes como ocorrências cotidianas... Como ela poderia dizer algo assim?

"...Não, isso não é verdade. Não era inevitável."

A morte de pessoas nunca é inevitável. Crianças da idade de Alice lutando e morrendo de maneiras terríveis não podiam ser inevitáveis. Como alguém poderia dizer que era?

"Capitã?"

"Desculpe. Não é inevitável. Todos sobreviveram até agora, e cada um deles era um mundo por si só. Perder essas vidas não pode ser inevitável."

Mesmo que pensar assim pudesse tornar mais fácil sobreviver neste campo de batalha. Talvez ficar tão desgastado e dessensibilizado a ponto de completa insensibilidade fosse uma bênção. Mas mesmo assim...

"Eram seus amigos. Pessoas que você nunca quis perder... Desculpa."

"Não se preocupe..." Shin balançou a cabeça lentamente e, em seguida, olhou para ela, como se tivesse decidido algo. "Capitã... Se você pudesse prever quando os tipos Skorpion estão lá..."

Surpresa com a mudança repentina de tópico, Alice o encarou de volta com surpresa enquanto Shin continuava a falar desesperadamente.

"Se você pudesse prever os ataques... Se pudesse dizer o que a Legion vai fazer, isso faria com que o resto do grupo não precisasse morrer...?"

Alice piscou surpresa algumas vezes antes de rachar um sorriso cínico.

"Se pudéssemos de alguma forma fazer isso, talvez."

Mas se pudessem fazer isso, Alice e honestamente qualquer um dos outros Eighty-Six que vieram antes deles já o teriam feito há muito tempo. Shin parecia prestes a dizer algo veementemente, mas ela levantou a mão para detê-lo.

"...Hmm. Desculpe, mas recebi uma transmissão do Comando. Conte-me sobre isso em outro momento."

Shin ainda parecia ansioso para dizer mais alguma coisa, mas ele assentiu e se retirou.

"...Sim."

Alice encerrou a conversa e deixou a sala de jantar rapidamente porque a outra pessoa havia ativado o Para-RAID unilateralmente. Ela não queria que Shin ouvisse sua troca com eles. Não queria que ele ouvisse sua voz fria.

"...Demorou para responder, porca."

"Peço desculpas, Handler One. Estava cheio lá dentro."

A voz autoritária do outro lado da Ressonância era a oficial comandante deles, uma soldado da República, protegida confortavelmente dentro das paredes.

O Para-RAID era um dispositivo de comunicação que usava o inconsciente coletivo para transmitir sentidos e fala. Obstáculos como distância, impedimentos físicos e interferência eletromagnética eram impotentes diante dessa tecnologia inovadora.

"Lotado? Pareceu-me que você estava brincando com um cachorrinho fofo. Um pouco pequeno demais para levar para a cama, não acha? Ou estava pensando em adestrá-lo mais cedo?"

"Você é um lixo desprezivel", Alice cuspiu.

O oficial riu agradavelmente. Provocar um cachorro de uma distância onde ele não pudesse mordê-lo provavelmente era o melhor passatempo que ele poderia pedir.

"Desprezando-me quando sou gentil o suficiente para lhe dar uma atualização? Ousada... Há sinais de um grupo avançado da Legion em movimento. Eles provavelmente lançarão outro ataque em breve, então elimine-os assim que os detectar."

Um calafrio dominou Alice enquanto ela retrucava:

"...Espera. E quanto aos reforços de Processadores que eu pedi? Nosso número de combatentes está reduzido a menos da metade. Um grupo do nosso tamanho não pode..."

"Pare de agir como coitadinha, sua porca. Seus números estão diminuindo apenas porque vocês não teriam esperança de derrubar eficientemente a Legion mesmo se suas vidas inúteis dependessem disso. Você realmente espera que seres humanos percam tempo com manchas inferiores como você?"

Alice quase desafiou ele a realmente tentar liderá-los por uma vez e ver o que realmente aconteceria, mas conseguiu se conter. Depois de deixar todo o combate para os Eighty-Six e se fechar atrás dos muros, a República não tinha absolutamente nenhuma intenção de lutar nesta guerra. E apesar de ser seu dever e trabalho, esse Controlador não se incomodaria em realmente comandá-los em batalha.

Seria melhor se ele nem mesmo Ressonasse. Ouvir um Controlador rir enquanto assistia seus amigos morrerem como se fosse algum filme de ação era uma humilhação que Alice já havia experimentado antes. E, se ela pudesse evitar, preferiria não passar por isso novamente. Nunca.

"Sua resposta, porca."

"—Entendido, senhor."

A primeira unidade defensiva do Trigésimo Quinto Setor, o esquadrão Halberd, nunca retornou daquela missão.

Mas isso era uma ocorrência comum no Setor Eighty-Six. O hangar estava vazio e oco, com todos os Juggernauts que abrigava até o dia anterior agora desaparecidos. Olhando ao redor do hangar estéril e vazio, Guren suspirou pesadamente.

Ele daria qualquer coisa por um cigarro agora. Especialmente em momentos como esses. Mas, é claro, sendo este um campo de batalha para porcos humanóides, ninguém entregava esse tipo de mercadoria aqui.

Este era um campo de batalha de morte certa. O único destino dos Eighty-Six era lutar e morrer. Então, neste ponto, ver outros morrerem nem deveria ser doloroso. Parecia um desfecho inevitável. Pelo menos, era assim para o grandioso e orgulhoso Alba que estava em segurança atrás dos muros.

Deslizando ao longo da coluna em que estava apoiado, ele afundou no chão de concreto.

"Puta que pariu, que merda..."

Quando a guerra começou, ele costumava se sentar na frente de todos os registros de manutenção, se atormentando sobre se ele e sua equipe haviam cometido algum tipo de erro. Mas ele havia parado agora. E há muito tempo havia desistido de tentar criar alguma modificação que tornasse esses caixões de alumínio mais seguros.

Naquela época, ele não pôde deixar de se perguntar se não havia mais nada que poderia fazer para ajudar aqueles que morreram... Se, talvez, pudessem ter mudado as coisas. Mas não mais.

Não havia nada que ele pudesse fazer. Ele havia percebido isso agora. Depois de ver todas aquelas mortes, todos aqueles corpos empilhados diante dele com tanta facilidade displicente, essa realização se cravou em seu coração como uma estaca.

Somos impotentes. Não temos força para reverter nem um iota desse destino imposto a nós. E os Eighty-Six, sendo os miseráveis desumanos que são, não têm permissão sequer para ter o privilégio de pensar que podem.

Ouvindo os passos inquietos de um par de botas de segurança, os membros da equipe de manutenção ergueram preguiçosamente as cabeças. Seus rostos estavam por fazer, desde quando perceberam que ninguém voltaria naquela manhã. Um dos membros da equipe entrou correndo no hangar vindo da entrada que levava aos alojamentos.

"Guren," ele disse.

"O que você quer...? Não há mais nada para se preocupar, certo?"

O membro da equipe estava claramente sem fôlego e parecia totalmente perplexo. Depois de lutar para falar entre as respirações ofegantes, ele finalmente disse.

"—Um deles acabou de voltar."

Guren arregalou os olhos em incredulidade.

O dossel do Juggernaut estava mal montado e, mesmo quando fechado, deixava uma pequena abertura ao longo do corpo da unidade. Mas mesmo assim, essa lacuna desapareceria se o dossel fosse pressionado no lugar. Aparentemente, o juggernaut continuava se movendo mesmo depois que sua fonte de energia encalhava e o combate terminava.

Enquanto a neve caía e derretia contra a unidade, Guren pegou uma barra de metal e a enfiou na pequena abertura que restava no dossel. Usando-a como alavanca, ele forçou o dossel a se abrir.

E ao olhar para dentro... ele engoliu em seco levemente.

"...Capitã."

Assim como havia surgido no leste, brilhando com resplendor em desafiante desafio às emoções da equipe de manutenção, o sol prosseguiu egoisticamente para se pôr no céu ocidental. A luz do crepúsculo era um carmim escuro enquanto uma sombra se estendia pelo campo nevado, iluminado pelo brilho da noite.

Ele pisava na neve acumulada durante a noite, aparentemente inconsciente de Guren e do resto da equipe de manutenção que se apressava em direção a ele.

O Juggernaut estava lento em comparação com outros Feldreß, mas ainda era mais rápido que um humano, sem falar de um menino pré-adolescente. Um dia inteiro e uma noite haviam se passado desde que ele havia partido. E durante esse tempo, ele havia marchado sem parar, provavelmente abrindo mão do sono. Ele havia passado sorrateiramente pelo Legion à espreita, arrastando seu corpo exausto o tempo todo.

Seu uniforme de camuflagem era grande demais para seus membros curtos. Seus cabelos pretos e lenço azul estavam úmidos da neve. E, mais impressionante de tudo, eram aqueles olhos vermelhos sangue, que se destacavam mesmo na luz carmesim do crepúsculo.

"Nouzen..."

Mas nenhum deles se aproximou dele. Todos, incluindo Guren, ficaram parados enquanto o observavam com a respiração suspensa.

Ao som daquela voz, Shin parou e olhou para cima. Ele estava olhando para baixo para um objeto redondo que carregava contra o peito manchado de sangue.

Estava coberto por um pano vermelho com sangue descolorido. Apenas metade de suas belas características permaneciam, mas o tamanho deixava claro o que era.

Era a metade da cabeça da Alice.

Foi uma visão que fez Guren duvidar da sanidade do garoto, mas seus olhos vermelhos sangue não mostravam sinais de loucura. Pelo contrário, na verdade. Estavam claros até de uma maneira quase cruel. Seus lábios estavam cerrados, como se estivesse contendo a raiva, mas suas bochechas, sujas de poeira e sangue, estavam secas de lágrimas.

Mas quando ele fixou seus olhos macilentos em Guren, parecia que seu olhar amaciava um pouco com alívio. Mesmo assim, Guren e os outros não podiam se mexer. Provavelmente se perguntavam como e por que, mas sua lógica não era tão difícil de intuir.

O corpo humano é pesado. E embora ela fosse uma garota, era alta e a mais velha do grupo, o que só a tornava mais pesada. Shin, pequeno como era, não poderia carregar o peso de uma pessoa inteira. E depois de uma batalha com a Legion, seu corpo provavelmente não estava em condições de ser transportado de qualquer maneira.

Então, pelo menos, ele tinha que trazer de volta uma parte dela. Como não podia retornar com todo o corpo, ele provavelmente pensou que pelo menos poderia trazer a cabeça decepada.

Essa não era uma ideia que uma mente sã poderia conceber. Era um produto da loucura entorpecente do campo de batalha. Mas em seu cerne não havia nada além da bondade de um garoto que queria levar uma amiga para casa. E assim, a verdade era...

Guren se viu rangendo os dentes involuntariamente.

A verdade era que deveriam elogiá-lo. Parabéns por trazer pelo menos Alice de volta, deveriam ter dito, você realmente se importa com seus colegas de esquadrão. Deveriam tê-lo agradecido, elogiado pelo que fez.

Se nós... Se eu... Se Shin... Se Alice... Se os Eighty-Six fossem pelo menos humanos...

Droga. Guren olhou para o céu. Deus, oh, Deus... O que...?

Que pecado cometemos...? Por que temos que dizer isso a ele...?

"Nouzen, você... não pode fazer isso."

Shin piscou os olhos vermelho-sangue de uma forma que parecia quase inapropriadamente infantil. Sua expressão mostrava que ele claramente não entendia do que Guren estava falando. Mas Guren olhou para ele e continuou falando.

As palavras de Guren foram impiedosas. Palavras que iam contra o bom senso e a decência humana. Mas isso era algo que ele não podia permitir.

Shin sobreviveu, sozinho. Ele sobreviveu, mesmo que fosse o único a fazê-lo. E assim, Guren não podia deixá-lo morrer depois disso.

"Alice não pode voltar para a base assim... Não podemos recolher os corpos dos Eighty-Six. Você já sabe disso. Os Eighty-Six não têm túmulos... e não temos permissão para cavar nenhum."

Este era o campo de batalha humanitário e progressista com zero baixas, do qual a República se orgulhava tanto. E a República não permitiria que ninguém ou qualquer coisa despedaçasse sua fachada de infalibilidade. Baixas que não existem não podem ter túmulos. Não podem cavar túmulos para alguém que nunca morreu - pelo menos no que diz respeito aos documentos. E assim...

"Então você não pode fazer isso. Não podemos deixar você trazer a Alice de volta para a base."

"... "

Ele piscou seus olhos vermelhos sangue. Na confusão. Na perplexidade. Guren cerrava os dentes enquanto o observava. Sim, ele conseguia perceber. Shin estava se agarrando à sua sanidade por um fio. Todos os seus companheiros de esquadrão - todos os amigos com quem ele tinha vivido, mesmo que apenas por alguns meses - haviam morrido diante de seus olhos no espaço de uma única noite. Assassinados em uma atrocidade impiedosa e unilateral.

Como ele poderia permanecer sã? Enlouquecer parecia ser o curso natural das coisas. E enquanto ele vacilava à beira da insanidade, só podia se agarrar ao dever de devolver seus camaradas para casa. Ele só podia tentar proteger sua mente se agarrando à sua ética humana.

“... Mas—”

“Sem 'mas'... Você lembra do que a Alice disse, né? Você até fez uma promessa. Ela não disse isso porque você não deixa corpos para trás; é porque você não pode enterrar ninguém, independentemente de eles deixarem esses corpos para trás ou não... É porque o máximo que alguém pode fazer é deixar seus nomes para trás.”

Seus olhos vermelhos sangue se arregalaram.

Façamos uma promessa, pessoal. Vamos esculpir os nomes daqueles que morreram nos fragmentos de suas unidades e fazer com que aqueles que sobreviverem os carreguem.

Assim, os que sobreviverem até o fim podem levar todos os outros consigo para o destino final.

Isso mesmo. Ele finalmente entendeu por que a Alice... por que os Processadores que sobreviveram por anos no Setor Eighty-Six diriam isso. Mesmo que lutem até a morte, nunca terão um marcador de sepultura. E assim, aquela promessa era a última consolação diante desse destino. Não havia maior salvação que pudessem esperar, e não teriam nada melhor.

Mas ainda assim ele balançou a cabeça lentamente. Era negação ou rejeição, ou...?

"Mesmo assim... não há razão para não fazermos só porque disseram que não podemos. Não precisamos ouvir o que os cidadãos da República que nem estão aqui diriam—"

"Não podemos," disse Guren, cerrando os dentes.

"Mas—"

Por que esse pirralho não escuta? Ele ainda não tem ideia... nem noção da pura malícia do Setor Eighty-Six. Ele nem tentará entender a dor daqueles que têm que dizer essas coisas!

"Não podemos porque não podemos! Se começarmos a desafiar o que eles dizem e cavar covas, e a República descobrir, o que você acha que os porcos brancos farão?! Eles vão te matar, é isso! Mesmo crianças Processadoras como você!"

Os cidadãos da República podem ter se trancado atrás dos muros, mas isso não significa que nunca foram ao campo de batalha. Eles entregavam suprimentos aos Processadores e registravam as atribuições das unidades. Os soldados iam até o Setor Eighty-Six para realizar essas tarefas.

E até mesmo os coletores de lixo, os Scavengers — esses também eram feitos pela República. Quem diria que eles não tinham algum tipo de dispositivo de vigilância? Quem sabia onde os porcos brancos tinham olhos, e se por acaso encontrassem uma sepultura proibida, estava claro o que poderia acontecer.

"Eles não vão matar membros da equipe de manutenção como nós porque não podem nos substituir. Vocês são os únicos que serão descartados. E não apenas aqueles que cavaram as covas — eles vão eliminar toda a unidade! Você entendeu? Se alguém cavar uma cova e for descoberto, a República vai matar cada criança designada para esta unidade! Todos! E será tudo por sua culpa!"

Por um momento, os olhos carmesins de Shin se arregalaram e congelaram, como se tivesse sido atingido por um raio. Guren ficou surpreso com sua reação excessiva e se calou.

Por um segundo, parecia que seus olhos vermelhos não estavam mais olhando para Guren, mas para algo muito, muito distante. Para algum objeto de medo e obsessão, e até emoções profundas de autocondenação e penitência.

Mas no momento seguinte, Shin abaixou a cabeça e deu um passo para trás, como se quisesse esconder o terror em seus olhos congelados. E com o olhar no chão, ele sussurrou com uma voz que desaparecia.

"... Desculpe."

Guren balançou a cabeça. Ele tinha ido longe demais, e Shin não tinha nada pelo qual se desculpar. A verdade era que Shin fez o que era certo, o que qualquer ser humano faria. Mas nem Shin, nem Alice, nem Guren, nem ninguém ali era humano. Era só isso.

"Nouzen."

Guren se aproximou dele, mas Shin se afastou, como se quisesse proteger Alice em seus braços. Sua expressão endureceu à medida que a dor inundava seus olhos vermelhos. Ele não conseguia encarar Guren.

"Eu não estou abandonando-a", disse Guren. "Eu vou devolvê-la à terra... Não ao campo de batalha — eu não posso ir tão longe, mas eu vou enterrá-la em algum lugar longe daqui."

Mesmo assim, este era o Setor Eighty-Six, e a Legion poderia estar em qualquer lugar. Era um ato imprudente, mas Guren não disse isso.

"..."

"Eu cuido do resto... Você fez bem em voltar para cá."

Ele estendeu a mão e pegou o embrulho com os restos de Alice. Desta vez, Shin não resistiu.

"Whoa, calma aí."

No momento em que o peso saiu das mãos de Shin, toda a tensão escapou de seu corpo. O garoto cambaleou, e Guren o segurou com uma mão. Aparentemente, ele tinha desmaiado... Tanto o cansaço quanto a tensão mental o empurraram muito além do limite.

"Guren." Um dos membros da equipe se apressou até ele.

"Desculpe, você pode cuidar dele? Deixe-o descansar, pelo menos por hoje."

Deixando Shin com o membro da equipe, Guren caminhou para o leste enquanto a escuridão do crepúsculo se instalava no céu como uma cortina. Ele carregava consigo os restos silenciosos e sem vida de Alice. Naquele momento, ocorreu-lhe que Shin não tinha derramado uma única lágrima.

De alguma forma, ele conseguiu escapar das linhas de patrulha da Legion e alcançou as ruínas de uma igreja, onde enterrou os restos de Alice em um jardim de rosas.

"Você finalmente está do lado daqueles que deixam os outros para trás, não é, Alice?"

Havia tão pouco restante de Alice; o buraco que ele cavou para ela era pequeno. E com a queda de neve do inverno, não havia flores que ele pudesse oferecer a ela. Mas os Eighty-Six não tinham sepulturas para começar. Alice sabia disso muito bem.

"Deixar uma criança pequena como ele completamente sozinho...? Você é uma mulher terrível, sabia disso?"

Todos os Processadores são terríveis dessa maneira, sinceramente.

A cada seis meses, quando termina o prazo de um esquadrão, ou sempre que um é aniquilado, a unidade é dissolvida e reorganizada. Agora que o esquadrão Halberd foi aniquilado, com exceção de Shin, seus membros seriam completamente substituídos por novos, enquanto Shin seria designado para um novo esquadrão.

Guren acompanhou Shin até um avião de transporte cheio de soldados em uniformes azul-prússia que posou para levar o garoto sobre os campos minados para sua próxima zona. Nos braços do garoto havia um feixe de pano. Ele o carregava da mesma forma que carregava a cabeça de Alice antes, mas desta vez estava cheio de fragmentos de metal. Ao ver isso, Guren abriu os lábios.

"Nouzen, isso é—"

"Fui o último a sobreviver", ele respondeu, com a voz rígida e direta.

Shin se recusou a olhar para Guren desde então. Ele não disse uma palavra para nenhum dos membros da equipe de manutenção desde que voltou do campo de batalha.

Shin parecia estar evitando os vivos, como se não tivesse tempo para se incomodar com eles. Como se estivesse usando esse tempo para enfrentar e lembrar de seus colegas de esquadrão falecidos. O feixe que ele carregava continha fragmentos metálicos com os nomes de seus vinte e três colegas de esquadrão mortos gravados neles. Um vento frio misturado com neve soprou pelo campo de batalha, mexendo no lenço azul ao redor de seu pescoço.

A última lembrança e lembrança de Alice, rica com seus sentimentos. Por um momento, seus olhos vermelhos sangue, que se recusavam a olhar para Guren, pareciam se contorcer de pesar. Amargamente e impotente. Mesmo assim, Shin ainda não derramaria uma lágrima.

"Fiz uma promessa com o Capitão Araish e o resto do esquadrão. Uma promessa entre mim e todos que morreram. Então eu levarei todos eles... para meu destino final."


Nota do Tradutor

Azure: Hello pessoal desculpe a demora para sair novos capítulos porem tinha muita coisa para fazer e organizar por esse motivo tivemos essa demora para estar postando mais coisas mais só para tranquilizar vocês o Volume 11 já está com a tradução bem avançada, pois estamos traduzindo com 3 pessoas la na Katzenfallen então queria pedir o apoio de vocês entrando no nosso Discord, pois estamos com a meta de bater 200 membros até março conto com vocês pessoal! Arigatou!




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