Volume 4
Capítulo 154: Trigésima Primeira Página do Diário (1)
A custo de muitos ferimentos e algumas vidas, conseguimos retomar Parva.
Meu corpo havia chegado ao limite e minha mente estava exausta. Assim que senti o abraço de Miraa, desmaiei. O cansaço estava tentando me dominar desde muito cedo, e tudo que passei sem ter praticamente nenhum tempo para descansar, foi demais para alguém de apenas 14 anos.
Em breve eu faria 15, e já tinha feito tanta coisa. Tinha passado por tantos momentos ruins. Tinha sofrido demais, treinado exaustivamente, quase morrido algumas vezes e sido levado ao meu limite tantas vezes quanto podia lembrar.
Quando acordei estava jogado em uma cama, sem roupas e cheio de curativos. Tibee estava sentada ao lado da cama com uma expressão de cansaço, havia sangue em suas roupas e muito material de curativo em uma cesta no chão.
Eu não era o único ali que estava em recuperação.
Havia mais de uma dezena de camas semelhantes, onde outras pessoas cheias de ferimentos se recuperavam. O local era grande e ventilado, pelo menos, ou aquele tanto de gente quase morta em um mesmo lugar traria um mal cheiro desgraçado.
A maioria dos guerreiros que me acompanharam na investida suicida acabaram com ferimentos graves. Apesar de alguns terem morrido na batalha, os sobreviventes estavam felizes pela reconquista da cidade.
Eu era o mais ferrado entre os sobreviventes, com ferimentos graves e uma hemorragia que deu trabalho para ser controlada. Se não fosse por Tibee talvez eu não tivesse sobrevivido.
Tibee me explicou toda a minha situação física, desde quanto sangue eu tinha perdido, a quantidade de ferimentos sofridos e até o tempo estimado para minha total recuperação. Sem contar que ela me proibiu de treinar por mais de um mês, e isso era uma coisa boa.
Mas ela ressaltou que eu poderia, e deveria, continuar estudando normalmente, e isso não era bom. Eu não gostava de estudar, achava chato, mas de repente me veio o pensamento de que se não fosse pelas aulas que tive, não teria conseguido viajar pelo continente ou bolar o plano de fingir ser do Norte.
Se eu fosse capaz de saber mais coisas, poderia fazer mais. Inexplicavelmente, senti uma vontade de estudar, como se algo dentro de mim estivesse dizendo que obter conhecimento seria fundamental para o meu futuro, seja lá qual fosse esse futuro.
Quando tentei me mexer, senti meu corpo inteiro reclamar e a dor me paralisar totalmente. Foi horrível. Me senti mais relaxado quando uma mão gentil afagou meus cabelos, era Miraa.
Ela estava sentada em uma cadeira ao lado da minha cama, em silêncio. Parecia bastante cansada, mas sorria gentilmente, igual quando nos conhecemos. Aquele sorriso me acalmava, era como se me fizesse esquecer todos os problemas e dissesse que estava tudo bem.
Tibee continuava falando sobre o quanto eu era desleixado com minha própria segurança e que se insistisse em avançar em direção ao perigo sem pensar, acabaria morto, em uma vala ou sendo devorado por urubus como um animal sarnento e sem dono.
Além de uma excelente médica, ela tinha uma capacidade dramática admirável.
Quando cansou de falar, brigar e me xingar de idiota, Tibee saiu e Shiduu entrou. Senti um calafrio. Por alguns segundos ela não disse nada, apenas me encarou com sangue nos olhos.
— O que você acha que fez? — Shiduu explodiu — Matou dezenas de pessoas, raptou a Su e saiu atacando o reino vizinho! Cê tem problema, moleque?
Se não tinha problemas antes, agora tinha. Ah, talvez ela quisesse dizer problemas mentais.
— Eu estava confuso… — Tentei explicar — E eu não sequestrei ninguém!
— Eu fui porque quis… — Uma voz com tom doloroso veio de uma das camas próximas
— Não tente defender ele, Su! — Shiduu reclamou.
A pessoa que tinha falado era Brogo, eu estava tão acostumado a usar apenas o apelido para me referir a ela que nem me lembrava mais do seu nome oficial.
— Então vocês duas se conheceram enquanto eu estava dormindo?
— Somos primas. — Shiduu disse como se fosse a coisa mais normal do mundo.
— Essa foi a coisa mais aleatória que conseguiu pensar? — Questionei.
— Não, é sério. — Shiduu revirou os olhos em desdém — Fala pra ele, Su.
— Verdade… — Brogo parecia não estar em condições de falar.
Espera.
Brogo já tinha passado por coisa pior e sobreviveu. Quando eu achei ela naquele porão, estava pendurada na parede por pregos cravados em sua carne. Até suas pálpebras haviam sido arrancadas e depois cresceram de novo.
Então, como ela poderia estar tão mal?
— O que aconteceu com a Brogo? — Perguntei a Shiduu.
— Sabe que ela pode se regenerar, né? — Shiduu falou mais baixo e com tom confidencial — Ela doou sangue para todo mundo nessa sala, então está meio anêmica. E tivemos que tirar um pedaço do fígado para colocar em um cara mudo aí.
Assustador pensar que ela foi capaz de doar sangue para tanta gente. E mais ainda pensar que ela teve um pedaço do fígado retirado em um mundo onde a anestesia é uma magia para reduzir a sensibilidade do paciente.
Pelo menos me reconfortava saber que o mudo psicopata estava vivo.
— Beleza, entendi. Agora me conta aí como é essa história de serem primas.
— É uma longa história… — Shiduu pegou a cadeira que Tibee estava antes e sentou-se.
Ela me contou uma história do tempo de sua infância. Era uma história bem longa mesmo, mas falava sobre povos que viviam no deserto do Reino do Sul, eles não tinham casas e viviam viajando de um lugar para outro levando mercadorias.
Um desses povos era especialista em encontrar formas de sobreviver no ambiente árido, e ficaram conhecidos como o “clã do oásis”, ou ainda, os Du. O outro povo eram guerreiros poderosos e temidos, o “clã do escorpião”, ou Kan.
Ambos esses povos eram respeitados pelas pessoas do Sul, mas eram temidos pelas pessoas de fora. Os Du tinham habilidades de sobrevivência e os Kan de combate, isso os faziam parte da força principal da aliança militar do Sul.
Mas a notícia do nascimento de gêmeas com habilidades de cura entre as pessoas do clã Kan fez a ganância de pessoas de muito longe ser despertada. A cidadela onde o clã residia foi atacada do dia para a noite e a maioria das pessoas ali foram dizimadas.
Por mais que um clã seja conhecido como um dos melhores na arte da guerra, civis ainda são civis. E a diferença esmagadora na quantidade de soldado inimigos foi o que causou a ruína do clã.
As duas crianças foram salvas e levadas em segredo até o acampamento do clã Du, com quem ficariam até que pudessem chegar ao Reino do Leste, onde uma pessoa da confiança de um dos comandantes do Sul cuidaria delas.
Mas os batedores inimigos conseguiram rastrear a caravana do clã nômade e lançaram um ataque noturno, matando todos os adultos que encontraram. Como os Du não eram guerreiros, nem tivera como oferecer resistência.
Durante o ataque, os adultos mandaram as crianças se esconderem. Enquanto Yu se enterrou na areia com ajuda de Shi, a quem chamava carinhosamente de prima, Su foi capturada por aqueles caras.
Quando Shi-Du saiu do seu esconderijo, não encontrou mais Yu ou Su, mas encontrou um bebê em meio aos corpos retalhados e as tendas em chamas. Momentos depois os dois foram achados por Miraa, a quem a caravana se dirigia para entregar as duas garotas especiais.
Por causa de Su-Kan e Yu-Kan, dois clãs do deserto do Sul foram praticamente extintos. O bebê que foi achado era Gouroo, o arqueiro do Leste. E todo esse passado era o motivo de Shiduu ter escolhido ser uma assassina e estar investigando os traficantes de escravos.
Ela contou ainda que levou anos até descobrir pistas que levassem ao verdadeiro culpados, e que nunca esperou que uma das garotas estivesse debaixo do seu nariz o tempo inteiro.
Aquela história foi surpreendente, jamais imaginei que Shiduu tivesse um passado tão triste. Por mais que soubesse que Brogo já tinha enfrentado muita merda ao longo de sua vida, aquilo ainda foi mais pesado do que qualquer coisa que eu poderia imaginar.
Dois clãs inteiros eliminados por culpa da ganância de um punhado de pessoas com muito dinheiro? Ser humano não cansava de me surpreender.
Miraa se levantou e foi até Shiduu, dando um abraço em minha irmã adotiva, ela fez um carinho na cabeça de Shiduu. Eu entendi que ela se preocupava com todos nós por igual, mas não queria nos prender.
Percebi que Shiduu chorava.
Não parecia ser a mesma pessoa sempre animada e meio violenta que eu estava acostumado. Miraa também chorava. Então Miraa disse algo para Shiduu e ela saiu do local.
Se voltando para mim, Miraa disse:
— Fico feliz que esteja bem. — Sua voz revelava cansaço — Não faz ideia do quanto eu fiquei preocupada quando Shiduu relatou o seu sumiço.
Eu não tinha palavras para me desculpar. Em meio à minha ambição de salvar as pessoas que eram escravizadas, jamais pensei em quem havia ficado na Montanha Solitária.
— Mas fiquei orgulhosa do que fez. — Ela continuou, para minha surpresa — Algumas pessoas estão ali fora esperando para te agradecer, sabia?