Volume 3

Capítulo 134: Vigésima Sétima Página do Diário (2)

— V-você… é um monstro?

Aquela pergunta me deixou feliz, de alguma forma. Ele estava com medo de mim? Estava me comparando a um monstro? Isso me fez rir, ri muito. Acho que não ajudou muito…

Acabei baixando a guarda.

Senti meu corpo ser jogado ao ar. Minha culpa, por ter dado as costas a Anne. Mas o pior era o assassino correndo em minha direção, demonstrando uma mudança de planos. E, claramente, eu não era o único capaz de lutar mesmo com medo.

Antes de cair, criei uma armadura sem aberturas, para evitar um ataque antes de chegar ao chão. E ao mesmo tempo que senti o impacto da queda, desfiz apenas as partes das pernas e dos braços. O suficiente para corrigir minha postura defensiva sem me arriscar.

O meu inimigo já estava bem próximo, então inverti a estrutura, desfazendo a armadura no corpo e cabeça, e fazendo um par de manoplas a tempo de parar o ataque dele com as mãos.

Em seguida girei mais uma vez sobre o calcanhar esquerdo, tentando sair do campo de visão dele. Mas aquilo custou um pouco caro, e a dor leve, gerada pelo uso excessivo nas primeiras vezes, se intensificou. Acabei por dar dois passos para trás tentando manter o equilíbrio.

Então fui acertado.

Um corte rápido no ombro direito, que só não acertou meu pescoço porque meu corpo estava em queda para a esquerda. Mas ainda acertei um chute no me agressor, e ambos caímos em direções opostas.

Outra pedra veio em minha direção. Anne devia gostar de fazer isso, já que a mansão do Barão de Utab estava ficando cada vez mais ventilada. Desviei mais uma vez, girando em direção aonde o assassino restante estava se levantando.

Atraí toda a névoa de rancor que estava espalhada, e também as armas que tinha usado, todo o poder que eu tinha externalizado durante a luta, e condensei ao redor dele, isso conseguiu restringir seus movimentos por tempo suficiente para atravessar o crânio do assassino com uma lança de Rancor.

E esse foi o limite do meu poder.

Pelo menos eu tinha conseguido me livrar dos assassinos, mas enfrentar uma heroína, com o tornozelo doendo, não era meu plano para o fim de semana. Principalmente porque ela começou a desmontar a mansão do Barão, jogando as pedras em mim.

De dentro da mansão, várias pessoas olhavam assustadas, dentre elas estavam os nobres. Até mesmo alguns guardas da mansão, mas nenhum tinha coragem de intervir. Sorte minha.

Do lado de fora eu corria de um lado para outro desviando das pedras que vinham em minha direção, e ao mesmo tempo tentava me aproximar de Anne para atacar. O problema era que se eu me aproximasse de forma descuidada, seria capturado pelo poder dela.

O que eu tinha de cauteloso, Anne tinha de descuidada. Foi assim que ela tirou a maioria das pedras da parede lateral da mansão do Barão. O problema é que a estrutura se tornou insustentável, porque ela só tirou de baixo. Talvez seu poder não alcançasse as pedras arremessadas, ou ela só estava desesperada para me acertar.

A mansão ruiu.

Toneladas de pedras vieram abaixo, na direção em que estávamos. Foi apenas uma das paredes externas, mas não foi uma cena bonita de se ver. Lá dentro haviam pessoas gritando, algumas tinham se machucado, mas como o desabamento foi para fora, nada grave aconteceu.

Anne estava perplexa com o que tinha causado por puro descuido. Iffy estava caída no chão, trêmula. E eu estava de pé, acima dela, segurando um bloco de pedra com auxílio de um esqueleto de Rancor, não deu tempo de fazer a armadura completa.

Ambos poderíamos ter sido esmagados, ou talvez só Iffy, mas agi por puro impulso e a salvei. Eu não tinha nada contra ela, a garota ainda havia me ajudado e, diferente de Anne, ela não precisava morrer.

Joguei a pedra para o lado e desfiz o esqueleto de Rancor. Não era o momento para desperdiçar meu poder assim. O problema foi manter o equilíbrio, algo estava errado com minha perna esquerda, que não bastando o desgaste sofrido pelos giros no jardim, agora havia sido acertada no tornozelo por uma das pedras.

Caí sentado enquanto sentia uma dor muito forte dominar meu tornozelo. A última vez que senti uma dor assim, tinha quebrado um osso. E não era bom perder o movimento de uma perna durante a luta com alguém tão perigoso quanto Anne.

E antes já estava difícil, agora seria praticamente impossível vencer.

Por que mesmo eu ainda estava tentando vencer? Meu objetivo era só comprar tempo, e isso estava garantido. Eu já havia chegado ao limite, e estava com o tornozelo ferrado também, e se todos os guardas da mansão se juntassem à luta, meu fim seria rápido.

Fugir não seria vergonhoso. Não depois de matar seis assassinos e fazer uma heroína se mijar duas vezes.

Senti que meu poder havia retornado um pouco, só o suficiente para fazer uma bota prendendo a perna esquerda, para poder correr mesmo com o tornozelo quebrado. Ia doer, com certeza, mas não cair era o importante.

Dor era parte da minha rotina.

Então corri. Usei a velha tática dos desesperados. Deixei tudo para trás e corri na direção oposta à mansão, sem me importar com o que ficava para trás. Afinal, meus amigos estavam à frente.

Infelizmente, correr com uma perna quebrada não era muito fácil. Eu seria pelo menos cinco vezes mais rápido se estivesse com as pernas em bom estado. Ouvi passos atrás de mim, denunciando que alguém me seguia.

Uma olhada rápida e confirmei que era Anne.

Um minuto atrás ela estava morrendo de medo, agora vinha atrás de mim. Por que não ficou lá de boas? Poderia até dizer para todo mundo que tinha me feito fugir com o rabo entre as pernas, o que não seria totalmente uma mentira.

Eu precisava despistar ela logo. O ponto de encontro seria no bosque a poucos quilômetros da cidade, e não seria seguro deixar ela saber a direção que eu queria ir. Lembrei de um córrego que passava próximo à cidade, então mudei de direção.

Água é uma boa forma de apagar seus rastros, Shiduu dizia.

Outra olhada para trás e vi algumas tochas. Parecia que os guardas se juntaram à caçada pela minha cabeça. Agora sim eu teria que fugir mesmo. Então vi o reflexo da lua nas águas do córrego, bem lá na frente.

Suportei a dor e aumentei a velocidade. Corri com tudo que me restava de energia no corpo. Um pouco mais de Rancor havia retornado, mas eu precisaria para a fuga.

Depois que eu pulasse naquelas águas, ninguém mais seria capaz de me capturar. Eu só precisava criar um capacete à prova d’água, assim ia poder respirar sem precisar colocar a cabeça para fora.

Quando finalmente cheguei à margem, me joguei sem medo. Mas meu corpo parou no ar, flutuando. Anne havia me capturado. Agora sim eu estaria ferrado.

— Um covarde… Fujão… — Anne disse, arfando — Isso que você é…

Não respondi, preferi liberar aos poucos a névoa de Rancor, mas mantive atrás de mim, só por precaução. Em poucos minutos os guardas chegaram, Iffy também, mas Anne me mantinha a uma certa distância, até me levantou a uns quatro metros do chão.

Eu fiquei lá, flutuando acima da margem do rio. Olhando para baixo era possível ver o barranco, se eu caísse em terra firme seria doloroso…

— Anne, pare, por favor! — Iffy pediu — Você sabe que eu nunca concordei com a escravidão, deixar ele ir é a única coisa que posso fazer, e para isso você precisa me ouvir…

— Ele é um criminoso! — Anne respondeu.

— Por favor…

— Por que? — Anne lacrimejou — Você não pode…

— Eu te amo!

Não ouvi mais nada, apenas senti meu corpo ser atraído pela gravidade. Criei uma armadura com o que me restava de Rancor, e torci para sobreviver ao impacto.



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