Volume 3

Capítulo 124: Vigésima Quinta Página do Diário (2)

O meu plano era bem simples.

Fingiríamos ser representantes de um grupo comercial do Reino do Norte buscando expandir as rotas comerciais. Então apenas cinco de nós seríamos suficientes, os demais seriam divididos em pequenos grupos e se locomoveriam em direção à fronteira para passarem em segurança.

Grupos muito grandes chamariam atenção, e caso algum grupo pqueno fosse interceptado, não colocaria todos os demais em risco. Mas seria importante que houvessem pessoas com habilidades de combate para defender os outros.

Assim que tudo foi organizado, e os grupos saíram todos, meu pequeno batalhão de resgate partiu para Utab. Nilo e seu grupo eram todos ex-ratos, e eles faziam parte de uma grande rede de informantes espalhados por todo o continente, assim como Gruder.

Não foi difícil obter informações sobre produtos e comércio do Reino do Norte. 

Segundo as notícias que circulavam, o Reino do Norte havia encontrado uma forma de produzir papel em grande escala, e por algum motivo papel era um produto caro e cobiçado por muitos. Não fazia sentido, na minha cabeça pelo menos, papel era para ser um produto simples, barato e fácil de se obter.

Mas já que era o senso comum, resolvi absorver a ideia e adicioná-la ao plano.

Então seríamos representantes de uma grande indústria produtora de papel, que buscava estabelecer uma rota comercial entre o Reino do Norte e o Reino de Prata. Nilo até mesmo conseguiu mudas de roupas tipicamente utilizadas pelos comerciantes do Norte. Eram desconfortáveis e cheiravam a flores.

A ideia de nos passarmos por comerciantes era, principalmente, para ter acesso aos nobres. Pessoas de renda baixa não possuíam dinheiro para comprar um escravo, mas também não teriam posses suficientes para estabelecer um acordo comercial.

E um grande defeito dos nobres era seu desejo de ter sempre mais. Assim eu ia me aproveitar de suas ganâncias irrefreáveis para obter informações de rotas de tráfico de escravos. Se o plano desse certo, é claro.

Quando chegamos a Utab, diferente das cidades por onde havíamos passado, fomos bem recebidos. Os guardas da cidade até mesmo indicaram uma pousada de qualidade onde poderíamos ficar.

Na carruagem íamos apenas cinco pessoas, contando comigo. Nilo, que usava uma espécie de túnica amarela e fingia ser nosso contador. Jairo, que usava um conjunto branco e duas cimitarras, se passando por segurança. Brogo usava um conjunto semelhante ao de Jairo, com exceção das espadas, e claro, usando máscara para esconder seu sexo. E o mudo, com uma túnica cinza e um chapéu enorme, sendo nosso cocheiro.

Tai-Li e outros nove caras com experiência em combate e sobrevivência ficaram escondidos na floresta para dar suporte na nossa fuga. Entre eles estavam alguns ex-bandidos, a mulher de máscara e o cara do machado.

Era gente demais para aprender o nome de todos.

Chegando na pousada que os guardas recomendaram eu percebi que a nossa aparência havia sido o suficiente para surpreendê-los. Por isso nos recomendaram o local mais luxuoso da cidade. Eu desejei que aquele lugar não sugasse o que me restava do dinheiro roubado.

Conforme havíamos ensaiado exaustivamente, Nilo fez as honrarias e me apresentou à recepção da pousada como sendo o filho mais velho de um importante comerciante do Norte, e que queríamos descansar ali por um dia antes de prosseguirmos para a capital.

O recepcionista ficou até assustado com a atuação do nosso grupo.

Foi engraçado ele pedir licença e ir correndo chamar o dono do lugar para nos receber pessoalmente. Por alguns segundo achei que poderíamos estar exagerando no teatro, mas quando vi uma escrava esfregando o chão, lembrei os motivos de estarmos ali.

Fomos levados aos melhores aposentos da pousada, o que me custou metade do dinheiro que me restava. Mas o conforto do local era surpreendente, o que só poderia ser sustentado com mão de obra escava.

Observei ainda que os escravos não eram fáceis de serem vistos, eles limpavam tudo, mantinham a organização, mas eram tratados como lixo. Todo mundo sabia que estavam ali, mesmo assim permaneciam “escondidos”.

Conforme o plano, eu iria para o quarto “ descansar”, e Nilo faria o mesmo, enquanto os outros três ficavam visíveis em ambientes de convívio da pousada, assim eu e Nilo poderíamos sair e investigar sem chamar atenção.

Mas algo quebrou o plano. O Barão de Utab havia nos convidado para um jantar em sua residência. Segundo o convite, ele considerava que era seu dever como lorde da cidade, nos proporcionar uma recepção adequada.

— Um convite para jantar na casa do Barão de Utab? — Nilo assustou-se — Isso é bom ou ruim?

— É bom, porém, arriscado. — Respondi — A ganância de um nobre é a melhor forma de fazer ele dizer o que queremos.

— Vamos torcer que não dê errado…

— As chances são grandes.

— De dar certo ou errado?

— Errado…

— Desconfiei…

— Quanto ao plano, vamos improvisar.

Assim que o sol se pôs, fomos em direção à mansão do lorde da cidade, o Barão de Utab. Uma residência digna de ser chamada de “opulenta”, uma palavra que aprendi no Leste e significa algo como: “Desnecessariamente grande e decorada”.

Fomos bem recebidos, até um jantar maravilhoso foi preparado para nós. Mas o que me deixava mais ansioso era a conversa que deveria vir depois da janta, ali estaria o destino de muitas pessoas. Eu não poderia errar uma palavra.

As outras pessoas da família do Barão não estava presente no jantar, apenas alguns nobres gordos e cheios de piadinhas de duplo sentido. É claro que eles não perderiam a chance de lucrar.

E o momento chegou.

— Papel, hein! — Ele coçou a barba longa — É um produto que tem muito valor, e longe de mim querer monopolizar, mas adoraria fazer parte dessa magnífica rota comercial providenciando suporte logístico.

Não respondi, fingi estar pensando. Eu já esperava esse tipo de proposta, mas não poderia dar a resposta que já tinha pronta, caso contrário ele ia desconfiar.

— Temos bastante espaço para armazenagem, e nossas estradas são as melhores do reino. — Um dos nobres adicionou — Utab seria o melhor ponto de distribuição de papel para o reino, e quem sabe, para o continente inteiro.

Era o momento da minha resposta pronta. Respirei fundo e segurei o nervosismo.

— Além de vender papel, nós queremos comprar um tipo de produto que não existe no Norte… — Fingi estar segurando as palavras.

—Metal? Especiarias? Poções..? — Um deles instigou.

— Mão-de-obra… — Respondi — De um tipo que não tem lá.

— Você quer dizer escravos? — O Barão perguntou, com uma expressão séria — Pensei que a escravidão era proibida no Reino do Norte.

— É sim! — Respondi calmamente, lembrando das aulas de teatro no Leste. Finalmente aquilo estava sendo útil. — Por isso mesmo meu pai preferiu não vir pessoalmente. Se for descoberto o seu envolvimento nessa rota, será a ruína da família.

— E você não tem medo? — Um dos nobres mais novos perguntou.

— Não.

Todos eles sorriram felizes. Eu havia dado àqueles nobres duas oportunidades de lucrar, não haviam motivos para eles recusarem. Então o Barão me pediu para aguardar alguns momentos enquanto eles discutiam os pormenores da negociação, como se um acordo fosse inevitável.

Eu agradeci, e fui levado a uma antessala, onde Nilo estava. O mordomo disse que a filha do barão viria para nos conhecer, e que ela tinha mais ou menos a mesma idade que eu e Nilo.

Não demorou muito e ela chegou, a garota era magra e sorridente. Usava um vestido azul claro e um colar dourado. E atrás dela vinha outra garota, de cabelo curto e roupas mais casuais.

— Olá! — Ela disse movendo o corpo levemente para a frente — Meu nome é Iffy. E essa aqui é a minha amiga, Anne. Ela é uma heroína!

Iffy apontou para outra garota, que vinha chegando mais atrás. Lembrei dela, do dia em que tudo aconteceu. Ela estava lá no dia que fui jogado na Grande Falha, e por mais que não fosse a culpada, eu senti ódio dela.

E não fui o único. Ela me olhou por alguns segundos como se não acreditasse no que estava diante dos seus olhos. Em seguida fez uma cara de nojo, e puxando Iffy pela mão, se afastou de nós sem dar uma palavra, saindo pela mesma porta que haviam acabado de entrar.

— Que mal educada! — Nilo comentou — Achou que a gente ia roubar a amiguinha dela? Poderia pelo menos dizer “oi” antes de sair.

— Acho que isso é um problema… — Falei baixo.

— Sim, falta de educação é um problema!

— Não… Anne é o problema!

— Sim, ela é mal educada!

— Ele me reconheceu…

— Aaaaaah… Que merda, hein!

— Acho que teremos que apressar as coisas…

— Vou avisar os outros.

— Vou dar cobertura…

Pela primeira vez em muito tempo eu estava com uma péssima sensação. Como se tudo estivesse prestes a dar muito errado. Mas preferi não dizer nada a Nilo, tínhamos um plano a seguir e pessoas a resgatar.



Comentários