Volume 3

Capítulo 109: Vigésima Segunda Página do Diário

Quando acordei de novo, Brogo estava sentada do meu lado. A garotinha que parecia estar se recuperando de ferimentos que não deveriam ser recuperáveis, me encarava ansiosa.

— Ufa! — Ela exclamou — Ainda está vivo…

— O quê..?

— Está bem? — Ela perguntou — Você dormiu por dois dias inteiros, eu tive que ensopar um pedaço de pano e espremer na sua boca, senão teria morrido de sede.

Realmente, eu estava com sede, e muita, mas muita fome mesmo. Acho que nem nos tempo de rato senti tanta fome. Talvez quando fiquei preso na grande falha e me vi obrigado a comer mato e beber lama…

Ah droga! pensamentos ruins de novo. Pensa em coisas boas, pensa em comida gostosa, o nascer do sol, em Zita… Ah, Zita… Como será que ela está? Será que ainda poderei vê-la? Espero que sim. Ah droga, divaguei.

Percebi que ela estava falando.

— … aí fui na cidade e consegui uma comida. — Ela mostrou uma sacola com uns pães começando mofar — E também umas roupas.

Olhei para a outra sacola, enquanto isso lambrava do tanto de pão mofado que comi enquanto era um rato. Saudades daquele tempo, não precisava me preocupar com as coisas que aconteciam aos outros.

— Eu também consegui algumas informações…

— Informações?

— Você não está buscando os escravos que foram trazido para cá?

Eu já nem sabia o que buscava. Mas talvez essa fosse uma oportunidade de me redimir. Pensei um pouco no que fazer, mas não conseguia chegar a uma decisão. Minha cabeça estava mais confusa do que uma briga de bar.

— Briga de bar! — Exclamei.

Brogo me olhou com uma expressão penosa, tentei juntar palavras para explicar a ela o que aquilo significava. Não consegui.

— Eu vou explicar o que significa, mas primeiro diga as informações que conseguiu. — Disse pegando um pão e mordendo.

— Existe uma cidade grande a uns dois dias de viagem a pé, mas também dá de ir descendo pelo rio. — Ela falou, animada — Disseram que lá é um centro de venda de escravos, e que o lorde da cidade é um dos maiores comerciantes de escravos da região.

— E como você descobriu isso?

— Enquanto fingia comprar roupas, eu perguntei a algumas pessoas. Disse que queria escolher um escravo para me fazer companhia em minhas tarefas diárias.

— Sério? Tipo… Ah, não sei.

Ainda não consegui juntar as ideias.

— Então? — Brogo me olhava com uma cara bem mais fofa do que quando a conheci — Vamos salvar eles?

— E como faríamos isso?

— Da mesma forma que você me salvou.

— Eu matei pessoas…

— Eles teriam te matado, acho que o nome disso é legítima defesa.

— Você não tem medo de mim? Não acha que sou um monstro?

— Não sei. Sempre convivi com pessoas perigosas, pessoas más, muita gente cruel… Mas nunca com alguém que salva a vida de outras pessoas, principalmente arriscando a sua.

Aquilo me tocou, mesmo em meio a todo o meu sofrimento e a confusão que a minha mente estava, eu senti um pouco de felicidade.

— Geralmente as pessoas só pensam em dinheiro e na sua própria felicidade. Eu aprendi que o nome disso é egoísmo.

— Para uma criança, até que você é bem inteligente.

— Na verdade eu devo ser mais velha do que você uns três ou quatro anos, mas devido estar sempre precisando regenerar alguma parte do meu corpo, digamos que, não pude crecer corretamente…

— Como assim regenerar. — Aproveitei para tirar uma das dúvidas que tinha — Já vi que suas pálpebras, dedos, lábios e ferimentos não apenas cicatrizaram como recresceram. Mas isso não deveria ser impossível?

— É meio complicado…

— Pensei que apenas o fígado humano pudesse recrescer…

— É uma “coisa” que simplesmente acontece com o meu corpo, não importa qual parte seja cortada, desde que não seja a cabeça, vai crescer de novo. Desde criança eu fui assim, minha irmã também era, mas fomos separadas há muito tempo.

— Então você tem uma irmã?

— Sim, o nome dela é Yu.

— Yu e Brogo? Por que seus pais lhe deram um nome tão diferente?

— Meu nome não é Brogo, é Su.

— Su é um nome fofo. — Deixei escapar um sorriso, e parece que ela gostou do elogio — Mas Brogo não é um nome tão ruim.

Ela me olhou confusa.

—Você teria mais medo de ser atacada por alguém chamado Brogo ou Su?

— Brogo é, com certeza, mais assutador.

— Nomes assustadores nos fazem parecer mais fortes. — Completei — Meu nome, por exemplo, é André, um nome sem muita força. Mas todo mundo me chama de Deco do Leste, ninguém tem medo de um André.

— André parece muito assustador…

— Mas Deco é mais ainda.

— Não acho. Deco é nome de heroi, nome de quem resgata pessoas e as ajuda.

Confesso que aquelas palavras me pegaram de surpresa, depois de tudo que fiz ela ainda me considerava um herói. Ela me viu até tentar matar pessoas inocentes, inclusive me impediu de ir até o fim.

E agora estávamos nós dois, sozinhos em meio a uma floresta desconhecida, em uma região que eu não fazia ideia de onde ficava. Eu devia ter corrido muito…

— Ah! — Percebi algo importante — Como me achou?

— Como assim?

— Eu meio que saí correndo, né? Como você me achou? Como conseguiu me alcançar?

— Eu meio que tentei te parar, mas você me arrastou, então me prendi no seu corpo até você desmaiar.

—… — Tentei dizer algo, mas me deu um branco imaginando a cena.

— Eu usei isso aqui… — Ela mostrou o chicote negro do mercador — Tentei controlar a força para não te ferir…

Ver aquela coisa me trouxe de volta muita dor, principalmente por causa da forma que Finii foi partida ao meio na minha frente. Senti um gosto amargo na boca, mas enfiei um pedaço de pão mofado para disfarçar o que sentia.

— …mas aí você continuava caído, então fui na cidade e consegui comida e roupas limpas. Ou quase limpas…

Acabei divagando e não prestei atenção ao meio da história, mas seria muita crueldade pedir que ela recontasse. Principalmente porque eu poderia acabar divagando mais uma vez. Então apenas acenei com a cabeça, em satisfação, e fiz um carinho na cabeça dela, torcendo que não tivesse perdido nada importante.

— Olha… — Ela fez uma careta — Isso é fofo e tal, mas devo lembrar que sou a mais velha aqui.

— Mas podemos usar essa sua carinha de criança para conseguir vantagens. — Sugeri — Quem negaria algo a uma criancinha tão fofinha.

— Isso me lembra… — Ela fez uma careta — Antes de ser vendida ao mercador, eu fui forçada a fazer coisas com caras que me achavam fofa,… Sabe? Coisas adultas, se é que me entende… ah, droga. O que eu estou dizendo, você é uma criança.

— Ah… — Isso me assustou — Acho melhor não tentar conseguir vantagens…

— Nah. — Ela deu de ombros — Desde que eu não tenha que passar a noite com um gordo fedido outra vez, eu não me importo. Se for um musculoso e cheiroso eu vou com todo gosto.

Mais uma vez ela conseguiu me deixar sem palavras.

— Oh sim, esqueci que você ainda é uma criança. — Ela disse com um sorrisinho.

Fingi que não ouvi e mordi outro pedaço de pão mofado. Não era muito tarde, então pensei que daria de fazer algo útil antes da noite.

Como as dores estavam diminuindo, resolvemos partir o mais rápido possível, mas demos a volta para não sermos vistos na vila, foi ideia de Brogo para não chamar atenção. Usando as roupas que Brogo conseguiu seria mais fácil nos misturarmos aos habitantes locais do que com as roupas típicas do Leste que eu usava, ou do que os farrapos que Brogo vestia antes.

Ela já usava um conjunto masculino, que deve ter roubado de um adolescente, e uma capa lona e fina, com capuz. E para mim sobrou uma calça surrada, camisa simples com umas manchas e remendos, e um casaco grosso com bolsos internos, mas fiquei com as minhas botas que estavam melhores do que as que ela conseguiu.

Assim que me visti, fomos até nosso próximo destino.

A caminhada foi curta até amargem do rio, e lá tinha um trapiche improvisado, onde algumas pessoas colocavam caixas em barcos, Brogo disse qu tinha ouvido falar daquilo, eram suprimentos para a guerra, cada vila estava colaborando. Até crinças estavam sendo alistadas para executar tarefas arriscadas.

Isso me deu uma ideia.

E com a desculpa de que nós dois iríamos para a guerra, subimos a bordo. Parece que ninguém nesse mundo se importa com o bem estar das crianças, pois simplemente no mandaram subir e ainda me deram um esfregão para limpar o convés do barco.

Pelo menos eu não precisaria de dinheiro para chegar até a cidade.



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