Volume 2

Capítulo 76: Décima Quinta Página do Diário

— O que significa ser um espião do Leste?

A pergunta de Miraa mexeu com a minha cabeça por muitos dias, e não importava a resposta que eu dava, ela não aceitava. E o pior, não me deixava desistir de responder ou me dava outra pergunta.

Então todos os fins de treinos ela vinha com a pergunta, como um ritual, o qual eu me acostumei a responder com apenas uma frase:

— Ainda não sei!

O fato de dizer “ainda” dava a ela esperança de que um dia eu descobrisse, e fazia ela parar de me pressionar. Mas eu ainda desejava achar a resposta, já que todos a quem eu perguntei não souberam responder. Até mesmo Ladii, o único espião profissional que eu conhecia não foi capaz de me responder isso.

— Esse é uma resposta que deve ser encontrada dentro de você! — Ele disse.

Eu sempre procurava Ladii quando tinha alguma dúvida sobre o tal “salto ilusório” que ele me mostrou. Não que o conceito fosse complicado, era a execução. Então ele me recomendou que eu fizesse exercícios para fortalecer minhas pernas, tendões e tornozelos.

Então acrescentei um item à minha tão fatídica rotina.

E assim durou por meses. A adrenalina de arriscar a minha vida, e a emoção de tudo que eu havia passado foi aos poucos sendo esquecida em meio ao tédio de rotina de treinos, surras, estudos e seções de cura.

Tibee já nem mais perguntava se eu estava machucado, apenas vinha no meu quarto, me curava e ia embora sem dizer uma só palavra. Acho que ela também cansou da rotina.

Alguns dias o cansaço era tamanho que eu nem ao menos tinha forças para chegar ao quarto, e ficava caído no corredor. Alguém acabava passando e me levando. Na maioria das vezes era Renee, uma vez Shiduu me arrastou pela perna, e outra vez ninguém passou, e Tibee me curou ali mesmo, já que ela não dava conta de me arrastar.

Notei que eu já não era mais tão pequeno e leve quanto há um ano, já estava até mais alto do que Surii. E ela começou a reclamar disso nas poucas vezes que ainda nos víamos. Conforme crescíamos a nossa vida foi se tornando mais corrida e puco tempo sobrava para conversar.

Meu domínio do Rancor chegou a um novo nível quando consegui criar uma adaga curta em um segundo, também aumentou a quantidade de adagas que eu podia criar, mas quanto mais eu criava, mais tempo levava. Também descobri que a minha capa poderia ser uma ótima defesa, inspirado nisso tentei criar uma armadura, mas não foi uma boa ideia, já que minha velocidade reduziu drasticamente.

— Armaduras são para pessoas fortes e hábeis com espadas longas. — Me explicou Shiduu.

Ela usava sempre um conjunto leve e colado, mas que não restringia seus movimentos. Além de algumas peças de couraça que protegiam áreas vulneráveis. Juntando isso à sua velocidade e habilidade de ocultação, ela era incrível.

Mas as vezes ela desaparecia e passava mais de uma semana fora, Baruu dizia apenas que ela estava em missão. Mas Shiduu nunca comentou nada a respeito, e sabíamos que ela era uma assassina treinada, então tipo de missão era meio óbvio.

Apesar de sermos onze irmãos, nem todos eram próximos uns dos outros da mesma forma, eu, por exemplo, me aproximei mais de Surii, Baruu e Tibee, apesar de a última odiar a forma como eu quase morria todos os dias. Mas fazer o quê?

Shiduu era muito mais ligada a Gouroo, eles também tinham muitos traços semelhantes. Já Kai, não era muito de interagir, passava o dia inteiro trancafiado na sua oficina e ser extremamente antissocial. Quanto aos outros eu passei a ver cada vez menos. Ladii dizia que cada um estava fazendo a sua parte para garantir a segurança dos cidadãos do Leste na guerra que se aproximava.

Eu achava muito legal e tinha vontade de fazer a minha parte também, não ficar o dia inteiro treinando e ensaiando teatro. Eu queria ir às linhas de frente, entrar em batalha, ser reconhecido como um herói do Leste.

— Mas nem está tendo batalha alguma. — Shiduu me explicou um certo dia — É sempre assim, ameaças vazias, manobras militares, jogo de espionagem, juntar informações e reunir aliados. Depois é que começam as batalhas, mas aí não é lugar para crianças.

— Não sou criança! — Reclamei — E quando as batalhas começarem, estarei lá. Você verá.

— Então quer mesmo estar nas linhas de frente? — Shiduu riu — Pensei que fosse um espião de Miraa, não um guerreiro bárbaro…

As palavras de Shiduu despertaram a pergunta que Miraa havia me feito.

— Então o que significa ser um espião do Leste?

Shiduu coçou a cabeça e fez uma careta, como se houvesse dito algo que não deveria.

— Aaah… — Ela olhou para os lados como se procurasse garantir que ninguém nos ouvia — Não posso te dizer a resposta, mas posso te ajudar a encontrá-la.

Tenho certeza d que meus olhos brilharam naquele momento.

— Tá bom, como acho a resposta?

— Venho há um tempo reunindo umas informações, e Miraa está organizando uma missão muito importante, deverei levar mais algumas pessoas como suporte, e vou te incluir. — Ela explicou — Posso tentar convencer ela dizendo que pode ser importante para o seu aprendizado em campo.

Eu não conseguia responder, apenas concordava coma cabeça, tamanha era a minha felicidade. Depois de tanto tempo treinando, finalmente estava na hora da minha habilidade ser reconhecida.

Me deixando apenas com a promessa, Shiduu saiu e não a vi por três dias. Mas para a minha felicidade ela tinha boas notícias. Miraa havia concordado que eu fosse na condição de suporte na missão de Shiduu. Gouroo e Surii também iriam, o que me animou mais ainda.

Com uma criança que eu era, imaginava que seria algo divertido, e acabei não levando em consideração os avisos de Shiduu sobre o quão sério deveria ser nos dias em que estaríamos fora.

Prevendo a possibilidade de que a minha empolgação pudesse pôr a missão a perder, Shiduu reuniu todos os oito participantes um dia antes de sairmos e explicou os detalhes:

— Há uma denúncia que comerciantes estão usando caravanas para transportar escravos por dentro do Reino do Leste, e isso é proibido. Toda e qualquer forma de escravidão, transporte de escravos, negociações ou semelhantes são crimes pesados com punições severas. O nosso trabalho é verificar a informação, caso seja verídica, capturar os culpados, libertar os escravos, e caso venhamos e entrar em combate, vocês total permissão de matar. Mas não devemos agir antes de verificar a informação, e sim, essa última parte foi para o Deco.

Todos me olharam rindo.

— Tá… entendi….

— Então faremos assim, — Shiduu continuou — Eu e Surii entraremos na caravana e verificamos se há algum escravo, Gouroo e Deco serão o suporte para a possível captura dos culpados, caso seja verdade a informação. Os outros quatro guardas ficarão nas sombras e só entrarão em combate em último caso, para não perdermos o elemento surpresa.

Todos concordamos, e cada um seguiu para um lado, para finalizar os preparativos, mas como Shiduu parecia duvidar da minha inteligência, ela pediu para que eu ficasse e repetisse o que ela havia dito. Eu tive que repetir três vezes.

Assim que terminamos de organizar tudo, nos reunimos em frente ao portão principal da Montanha Solitária, Miraa foi pessoalmente nos desejar um bom resultado na empreitada.

Quando os meus companheiros de aventura foram saindo, minha mãe me chamou e me abraçou, em seguida deu um beijo em minha testa. Fiquei muito feliz e a abracei de volta. Quando finalmente a larguei e dei as costas para sair ela disse mais uma vez.

— Deco, meu filho… qual o significado de ser um espião do Leste?



Comentários