Volume 1

Capítulo 37: Sétima Página do Diário (2)

Mesmo após uma semana, o ocorrido ainda me assustava um pouco, principalmente quando eu lembrava das condições em que Yobaa ficou. A névoa que me cercava e simplesmente desapareceu, assim como a adaga de lâmina dupla que simplesmente apareceu em minha mão, que virou poeira e também desapareceu.

Tudo poderia ter sido apenas uma alucinação, mas todos que estavam presentes confirmaram exatamente a mesma cena: Uma fumaça escura saiu do meu corpo arremessando Yobaa o mais longe possível. Além disso, alguns afirmaram que parte da massa de névoa se condensou em uma adaga na minha mão direita.

Tudo era surpreendente e difícil de crer, principalmente como Miraa simplesmente surgiu atrás de mim, Surii me disse que não tinha notado nossa mãe adotiva até que ela tocasse meu ombro. Talvez fosse algum truque relacionado ao cajado que ela estava usando, sempre que segurava aquela coisa ela ficava diferente, parecendo outra pessoa sem senso de humor.

Pelo menos ganhei uns dias de folga das agressões, principalmente pela chegada do ano novo. O calendário do Leste era um pouco diferente do seguido nos outros reinos, tendo 360 dias divididos em 12 meses de 30 dias e mais 5 dias dedicados ao sol, seguindo um padrão solar, diferente do resto do mundo que se baseava no ciclo lunar com 13 meses de 28 dias, e um dia a mais dedicado aos deuses.

Enquanto todo mundo do Leste se arrumava para o festival do dia do sol, em que se comemorava o primeiro e também maior dia do ano, eu, entre ajudar em algumas coisas, e fugir para não fazer nada, tentava repetir a cena de criar uma adaga na minha mão, falhando exatas 214 vezes nos 3 primeiro dias, com um total de 0 acertos.

Comecei então a achar que tudo não passou de uma alucinação coletiva, e os ferimento de Yobaa foram causados por ele mesmo para pôr a culpa em mim. Era mais fácil para mim acreditar nisso do que na história de que eu tinha algum tipo de poder.

O festival do dia do sol durava os primeiros 5 dias do ano, durante esse tempo ninguém trabalhava, tudo era apenas festa e homenagens ao sol, como se a esfera brilhante e quente fosse um deus. Tudo era colorido, todas as pessoas sorriam, haviam vários tipos de comidas, e inúmeras fogueiras que faziam as noites do festival serem tão iluminadas quando os dias.

Senti que tinha até ganhado um peso, acho que nunca tinha comido tanto, mas mesmo assim sentia que algo estava faltando, era como se eu não fosse alguém dali, como se não me encaixasse, eu não me sentia como parte de nada, como se eu não tivesse um lugar nesse reino, nesse mundo. Um sentimento realmente ruim.

Perdido nesses pensamentos depressivos, eu caminhei sozinho durante toda a noite pelos corredores da Montanha Solitária, assim como a montanha eu estava solitário, me sentia um amontoado de pedras em meio a uma planície.

Carregado de sentimentos negativos, eu vaguei cada vez mais pelas escadarias de pedras escuras, quando percebi estava em uma parte do castelo que eu ainda não conhecia, maldita mania de andar por aí com a cabeça nas nuvens.

Chegando a um ponto alto do castelo, de onde se podia ver a extensão do reino em direção ao nascer do sol, vendo toda a planície sendo iluminada pelos primeiros raios de luz da manhã, todas aquelas fogueiras lentamente se extinguindo e as pessoas aos poucos voltando para suas casas.

O mundo era tão grande, e eu tão pequeno, durante esse um ano e meio eu não tinha conseguido me sentir em casa, seja na Toca dos Ratos ou na Montanha Solitária, além disso não tinha memórias de antes de chegar aqui nesse mundo.

Eu não me sentia como parte de lugar nenhum, não me sentia como alguém importante, não entendia o motivo de Miraa ter me resgatado da Grande Falha, não entendia o porquê de eu ter conseguido usar aquela coisa semelhante à névoa da Grande Falha contra Yobaa, não entendia nada, minha cabeça doía, minha mente girava, minha raiva novamente queria me dominar, meu ódio… meu sentimento mais forte… meu único sentimento.

Conduzi meu ódio, me lembrando de tudo de ruim que me foi acometido, todas as minhas angústias, todos os pães mofados e a saudade dos ratos, a vontade de estar perto de Zita mais uma vez, a vontade de trucidar Jonas e matar lentamente cada um dos soldados que tramaram para me jogar naquela merda de buraco, principalmente o que fingiu se importar comigo e prendeu Zita em sua armadura de lata…

O ódio transcendeu o meu coração e inflamou pelo meu corpo, me aquecendo, me dando motivo para viver, me dando força, me dizendo em sussurros para continuar, me gritando que eu precisava sobreviver, precisava lutar. Eu precisava ser forte, ter poder e de uma arma.

Todos meus sentimentos de ódio foram interrompidos por uma sensação em minha mão direita, algo estava “crescendo” dentro dela, mantive a concentração, e vi uma adaga reta de lâmina única se condensar do nada enquanto meu corpo emitia uma névoa densa.

Naquele momento entendi, esse era o meu poder, meu ódio transformado em arma para vencer meus inimigos, minha raiva, meu “Rancor”… Agora eu só precisava aprender a controlar e também teria uma arma.

Mas por enquanto eu podia curtir o festival e me empanturrar de comidas, sonhando em um dia trazer meus amigos da Toca dos Ratos para essa terra repleta de farturas.

. . .

Alguns meses se passaram, eu não contei a ninguém o que tinha acontecido, afinal ninguém perguntou. Eu mantive uma rotina exaustiva durante todo esse tempo, acordar cedo, tomar o café da manhã assistindo o sol nascer, treinar (apanhar), almoçar, treinar (apanhar mais até vomitar o almoço), jantar, tomar banho, ser tratado por Tibee, estudar e dormir.

Entre uma atividade e outra eu treinava o controle para invocar a névoa e transforma-la em uma arma de forma rápida, e fazê-la desaparecer, não foi fácil no começo mas eu peguei o jeito na base do esforço e da raiva acumulada.

A raiva resultante das constantes frustrações da vida me auxiliavam no controle do Rancor, e o treino consumia meus sentimentos negativos, me deixando relaxado, era perfeito. Talvez fosse impressão minha, mas eu estava melhorando em combate corporal também, em breve eu seria um guerreiro poderoso, que faria os “heróis” mijarem nas calças.

Tudo que me faltava era a oportunidade da minha demonstração de poder, eu só não esperava que a chance perfeita caísse dos céus.

Mas um belo dia fui informado por Kai de que nossa mãe queria reunir todos os filhos para honrar a presença de um representante de um reino vizinho. Cheguei bastante atrasado, então preferi não atrapalhar, permanecendo fora do salão principal, enquanto Miraa e os demais conversavam com o mensageiro.

Eu assisti apenas o final e de longe, olhando por detrás da porta, de repente algo me passou pela cabeça. Eu conhecia aquela pessoa, era Leonardo, o líder dos heróis, o cara com o poder de criar raios, seria um problema se ele me visse, nada poderia me garantir que ele não estava do lado de Jonas. Ainda bem que me atrasei.

Após o mensageiro sair, a Senhora Miraa me chamou, me apressei em responder seu chamado, Surii e Baruu também foram chamadas, Miraa olhou para mim por alguns segundos com uma expressão de felicidade, aquilo de certa forma me acalmou, mas o que ela disse em seguida me excitou a alma:

— O mensageiro do Oeste veio trazer um convite para a festa de celebração de 2 anos da chegada dos heróis que será em 20 dias, e eu quero que minha diplomata, meu espião e a minha ladra se preparem para uma missão que vai mudar o destino desse mundo!

— Pois não minha mãe! — Respondemos ao mesmo tempo, Surii, Baruu e eu.

— Há um objeto escondido no Castelo de Prata, eu quero que Surii a roube, Baruu cuidará de todas as formalidades para permitir que entrem no castelo e concluam a missão, Deco será o responsável por criar uma distração… Se preparem, descansem o suficiente, depois eu vou falar com cada um para passar os detalhes do plano. Por hora estão dispensados.

Eu não entendi bem como eu criaria uma distração, mas estava muito satisfeito, finalmente poderia extravasar todo o ódio, mais uma vez senti a névoa escura tentar sair do meu corpo, segurei um pouco enquanto pensava:

Não… Ainda nãoSó espere mais um pouco

Talvez os deuses estivessem me dando uma oportunidade de brilhar.



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