Volume 1 – Arco 1
Capítulo 3: Individualidade
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6 de junho, 3222. Torre Central.
Individualidade.
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Ao corredor, um grande estampido ecoou forte. Adrien Loiren estava passando na hora, e com uma espreita de desgosto ele observou Lyra caída ao chão. Ela tinha escorregado em alguma coisa.
— Quem foi que deixou isso aqui?! — ela questionou, enfurecida enquanto se levantava do chão.
— Não foi obra sua? Essa coisa está vindo da área de lazer. Você costuma ficar ali, não é?
Lyra e Adrien se entreolharam, desconfiados um do outro. Adrien, por sua vez, não gostava nem um pouco de androides pela experiência que teve em Alexandria, e Lyra não suportava a arrogância daquele humano. Eles eram como um repelente um do outro.
No chão, onde Lyra escorregou, havia uma “mancha” de cristal. Como se uma parte do piso tivesse sido cristalizada, ou congelada. Os rastros levavam até a entrada da área de lazer…
— Na verdade, eu estava indo até lá agora — explicou Lyra, limpando as roupas quando se levantou. Apesar de ser uma androide, ela usava um casaco azul que Elandor deu a ela, sem nenhum motivo especial. O presente serviu como algo simbólico a ela.
Adrien encarou Lyra por mais um momento, e ficou sem resposta. Apenas virou o olhar para a entrada daquele salão de lazer. Lá, havia duas grandes piscinas de água comum, um teto de painéis de vidro no topo para que entrasse luz solar. Várias mesas junto com bancos e espreguiçadeiras. Os diferentes sistemas de ar condicionado podiam ser configurados para dar o clima que a pessoa quisesse no momento.
Mesmo discutindo entre eles, Adrien e Lyra já sabiam exatamente quem causou aquilo no piso. Se olhassem direito, ao fundo na piscina, estava um indivíduo relaxando na beira. Apenas os cabelos alaranjados eram visíveis.
— De qualquer forma, vamos tirar ele dali. — Adrien e Lyra se aproximaram, tentando não escorregar de novo no cristal liso do chão. — Eu tenho um favor, acho que ele vai cumprir.
Quando se aproximaram, Atlas estava com uma expressão de suspeita, procurando por alguma coisa ao redor da piscina.
— Primeiro Atlas — saudou Lyra, fazendo uma reverência para falar com ele. Era uma das únicas ordens que Elandor lhe deu, tratar os seus semelhantes com respeito. Ela apenas não conseguia seguir essa regra muito bem com Adrien. — Loiren menor tem um pedido para você.
— Encontrei — murmurou Atlas, concentrado em um pequeno robozinho voador que fazia uma patrulha ao redor da piscina. Era como um pequeno helicóptero.
Quando o avistou, ele aderiu algo parecido com um sistema de combate. Sua mão retrocedeu para dentro do pulso, e as juntas dos braços se estenderam até formar um pequeno canhão de mão, prestes a soltar talvez um laser.
— Erm… Primeiro Atlas? — Lyra tombou a cabeça, confusa.
— Afaste-se, irmã de Aurora! Estou prestes a eliminar um animal não identificado.
— Não! É um pequeno vigilante! Não pode destruir um dos sistemas de segurança da torre!
O canhão no pulso de Atlas começou a carregar. Em vez de energia, eram pequenos cristais que formavam a forma de uma espécie de bala, que se parecia com um arpão.
— Nunca ouvi falar sobre vigilantes anões. Pode ser um fulgor! Um… fulgor bem pequeno.
— Isso não tem nada a ver com o fulgor dos infectados! — Lyra bateu o pé no chão, irritada com a inteligência de Atlas. — Não tem como eles gerarem um fulgor com altura menor que três metros.
— Mas eu nunca detectei um robozinho tão pequeno assim!
— Claro que não! Você nasceu hoje!
A discussão se encerrou quando Adrien soltou um suspiro de cansaço. Apenas ver aquela confusão fazia seus dedos formigarem.
— Que palhaçada, vocês dois. Se ele não está interessado, deixe-o aí. Se ele começar a destruir os sistemas da torre, Elandor vai ter que expulsá-lo alguma hora mesmo — disse, dando as costas e deixando a sala devagar.
O braço de Atlas abaixou na hora que ouviu Adrien falar. As juntas do canhão retrocederam, e a mão saiu de dentro do pulso, deixando o braço normal de novo.
— Se me tirarem daqui, vou ficar longe da Aurora?
Adrien parou de seguir em frente, e tanto ele quanto Lyra olharam surpresos para Atlas.
— Por que você se importa? — perguntou Adrien.
— Se apegou tanto a ela depois de conversar uma vez? — perguntou Lyra em seguida.
— Não… é que…
A imagem de Aurora, por alguma razão que nem mesmo ele conhecia, o fazia sentir nostalgia. Como se estivesse exatamente no lugar em que deveria estar.
Ele ficou em silêncio e não deu nenhuma explicação. Lyra deu um sorriso bobo, estudando a reação de Atlas ela deduziu que fosse paixão. Mas não compreendia como isso teria acontecido tão rápido. No entanto, Adrien pareceu não se importar muito com isso.
— Tanto faz, ele nem deve ter uma explicação. Mas já que está interessado nela, a coisa que eu iria pedir a você era que encontrasse a Aurora. Ela deve ter se empolgado demais e acabou se perdendo por aí, eu preciso da assistência dela.
Então, a sala ficou em silêncio. Lyra aguardando a resposta de Atlas, enquanto os outros dois se encaravam por cima dos ombros.
— E se eu recusar? — Atlas arriscou, com um sorriso debochado.
— Como é que é?
— A Aurora… deve estar aproveitando a liberdade dela. Se eu trazer ela aqui, você vai colocar ela para fazer seus serviços sujos. — Atlas também tinha uma certa raiva de Adrien, talvez algo que veio do passado, que a formatação não foi capaz de apagar. — E você nem manda em mim, afinal!
Adrien se virou para encará-lo de frente, colocando as mãos atrás das costas. Ele via aquilo como uma briga de territorialidade.
— Não foi você quem escolheu ser assistente dela? Se Segunda Aurora não for capaz de concluir as tarefas que foi projetada para cumprir, então ela deve ser uma androide defeituosa. Se esse for o caso, Elandor deve descartá-la e substituir por uma nova… — depois da provocação, Atlas acabou ficando sem ter o que falar. — A escolha é sua…
Com isso, ele deu as costas mais uma vez e continuou seguindo o caminho para fora. Atlas pensou por um momento enquanto saia da piscina.
— Tudo bem… acho que encontrar ela não vai ser tão difícil.
— Eu quero ir também! — exclamou Lyra, dando alguns pulinhos para perto de Atlas. — Eu posso ir também?
Atlas não sabia dizer se a empolgação dela era por sair da torre ou por ver a Aurora. Porém, mais uma daquelas estranhas sensações nostálgicas apareceu de repente, lhe dando uma resposta.
Atlas nadou até a borda, escalando com cuidado para sair da piscina.
— Ela é sua irmã, deve ser bem importante pra você… — ele sorriu de volta, enquanto ativava uma função de aquecimento. A água em seu corpo começou a evaporar, porém, o piso abaixo dele começou a cristalizar enquanto ele aquecia. — Ter irmãos… deve ser bem legal mesmo.
Lyra ignorou completamente o que ele disse, estava indignada com a forma que ele cristalizava o chão e parecia nem estar se dando conta disso.
— Eu acho melhor a gente passar na oficina primeiro, você definitivamente está com algum defeito!
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Atlas e Lyra percorreram o caminho inteiro para baixo da torre discutindo. Quando ficava entretida ou nervosa em uma conversa, Lyra costumava se exaltar demais. Ela desceu tagarelando bem alto, enquanto Atlas retrucava com poucas palavras. Estava com a cabeça cheia de cenários com aqueles pequenos vigilantes anões.
Chegando a recepção da torre, havia um recepcionista bem peculiar. Era uma pequena televisão com uma cartola presa no topo. A tela exibia um rostinho com um bigode bem elegante. Quando os dois chegaram, deram de cara com uma barreira de grades incrivelmente sólidas e quentes. Eram grades de energia azul escura.
A pequena televisão analisou os dois por cima, flutuando como se fosse um beija-flor curioso. Lyra já era facilmente reconhecível, principalmente pelo seu faladeiro escandaloso. Mas quando viu Atlas ali também, uma das sobrancelhas da pequena TV se levantou em suspeita. Ele observou profundamente, até se lembrar que tinha sido Elandor quem o trouxe. Logo, deu um sorrisinho com o bigode e as grades azuis se tornaram rosas.
Agora, eles poderiam passar por elas sem problemas. Era de fato uma tecnologia duvidosa.
— Eu também acho uma grosseria, os que ficam olhando e julgando a gente, só porque moramos em uma torre — disse Lyra, abrindo mais um tópico em sua lista de reclamações. — Pelo menos não passamos metade do dia pescando em um rio de mentira. Aqui na torre nós temos água de verdade!
— Grande coisa, em Alexandria também tem.
— Também não confio em pessoas que usam chapéus. Eles são os que mais encaram e ainda pensam que são discretos.
Lyra parecia ter mais um inimigo pessoal por ali.
— Pior ainda quando eles têm aqueles bigodes franceses — murmurou Atlas, apontando por cima do ombro para alguém que estava atrás.
A televisãozinha levantou uma sobrancelha com o comentário.
Saindo da torre, Lyra resolveu ficar quieta. Ela era meio tímida, então não gostava de conversar muito quando tinham vários outros androides por perto. Mas mesmo que tentasse ser discreta, não conseguiria tão fácil. Na mesma hora que os dois foram vistos saindo da torre, um amontoado de curiosos se juntou para encarar de longe, todos com expressões de surpresa. Uma das androides no meio da multidão de repente fez um sinal com os dedos, como se fosse um quadrado. Ali apareceu um pequeno painel entre seus dedos, e ela foi abrindo devagar. Encaixou os dois dentro da sua visão pelo painel, e aparentemente tirou uma foto.
Atlas se voltou para ela, um pouco incomodado. Seus olhos fixados no painel estavam processando o objeto.
— Por que ela está apontando uma barreira pra nós?
Lyra deu um tapinha nas costas de Atlas, fazendo-o continuar andando. A “selvageria” de Atlas acabava a deixando envergonhada.
— Não é uma barreira, é um holograma de safira! Ela só tirou uma foto…
— Foto? Não me lembro de o gerador de plasma ter essa função.
— Você por acaso está vendo algum gerador ali?! — ela exclamou, sussurrando. — A mecânica está nos dedos dela… ela só usou a safira para criar o painel. Seu imbecil!
Enquanto seguiam brigando baixinho, do nada uma dupla de androides jovens de repente os parou.
— Ei! Vocês dois tem um minuto?! Por favor!
— Espera, Stella! Que merda…
Era uma garota bem eufórica, aparentemente bem mais que Lyra, e um garoto que já chegou bastante desajeitado, sendo praticamente arrastado pela outra garota. Pelo jeito, ele não queria abordá-los…
— Olá! Vocês vieram da torre central, são assistentes dos Loiren, não são? Podem enviar um pedido a eles por nós? Eu e o Vegha precisamos muito de uma nova matéria nos canais da semana, e todos já estão cansados de ver notícias sobre a construção do Andriene! — explicou a garota, falando bem rápido.
Andriene era a construção em formato de globo para celebrar o aniversário de Adrien. O nome era uma homenagem clara a ele próprio.
— Nós… uhm, nós… precisamos muito… disso aí. — O acompanhante nem se esforçou para tentar convencer.
Atlas não teve reação nenhuma, apenas os observou com uma cara descontraída. Não prestou atenção em nem uma palavra que eles disseram.
— Nós, erm… o Elandor… — Lyra se atrapalhou toda de início, e já queria sair daquele lugar. Mas de repente foi salva no meio da explicação.
— Oras, novos visitantes! Por que não me chamaram logo? — Era Elandor, simpático como de costume. Ninguém prestou atenção em como exatamente ele apareceu ali. — Vamos, eu adoraria participar de sua reportagem. Faço questão de apresentá-los a torre eu mesmo.
— Legal demais! — exclamou Stella, agarrando a mão do outro, arrastando-o mais uma vez. — Vamos, Vegha! É a nossa melhor chance de ganhar reconhecimento para entrar nas seleções do Clarté Eden!
— Isso é mesmo necessário?!
Os dois estranhos foram junto de Elandor para dentro da torre, enquanto conversavam alegremente. (Com a exceção de Vegha). Os outros ao redor observavam com um pouco de inveja daqueles dois.
Lyra deu um suspiro de alívio quando eles já estavam longe o suficiente.
— Ainda bem… que bom que ele sempre aparece nos momentos mais aleatórios. Mas nós ainda precisamos encontrar a Aurora! Esse lugar é enorme! — Mas quando se deu conta, Atlas já não estava mais ao lado de Lyra. — …Primeiro Atlas?
Ela olhou para o alto, e ele estava no topo da fonte que ficava no meio daquela praça. Ele provavelmente usou seus propulsores para voar até lá em cima.
Atlas Colocou uma mão na lateral de sua testa, arrastando o dedo um pouco para cima. Estava ajustando alguma função. Até que de repente…
— AURORA? — Ele falou normalmente, mas amplificou tanto sua voz que agora parecia uma sirene. — NÓS PRECISAMOS QUE VOCÊ APAREÇA, TEM QUE ESTAR EM ALGUM LUGAR.
Os outros indivíduos observaram Atlas lá em cima como se fosse algum tipo de atração. Qualquer coisa diferente que acontecia era considerada divertida para o povo de Douceur.
Segundos se passaram, e Atlas não teve resposta nenhuma. Olhou de um lado para o outro, procurando Aurora em meio a multidão. De cima para baixo, até que se virou de costas, e finalmente avistou.
No topo da torre central, havia uma silhueta tampando a luz solar. Era uma jovem androide sentada sobre os painéis, com seus cabelos voando com o vento. Ela olhava para baixo, exatamente onde Atlas estava.
Os dois se encararam, tendo seus cabelos levados na mesma direção. Aurora tinha olhos frios, sem nenhum sentimento expresso além de calmaria. Enquanto Atlas parecia estar admirando ela naquela posição.
Lyra demorou um pouco para perceber o que estava acontecendo.
— Mas o que é que ela está fazendo ali em cima, afinal?!
Um tempo depois, quando Aurora finalmente decidiu descer da torre, eles aguardaram nos fundos do edifício. Ela veio descendo de forma suave, controlando com perfeita maestria seus propulsores de voo. Seus olhos rosados pela ametista e cabelos pretos e longos eram facilmente reconhecíveis. Quando finalmente se encontrou com os dois, ela não disse nada.
— Minha irmã! — Lyra correu para abraçá-la. Em resposta, Aurora não teve reação nenhuma. Nem se esforçou para devolver o afeto. — Você deve ter se empolgado demais… olha! Não pode ficar saindo da torre desse jeito! Você precisa estar lá quando o filho do Elandor precisar…
Ela continuou sem responder, apenas encarava Lyra com um olhar meio apático.
— Você parece séria… — comentou Atlas, olhando-a com preocupação. Mas ele acabou se sentindo meio intimidado por ela.
Olhando para aqueles dois, Aurora apenas conseguia se lembrar de uma de suas péssimas memórias… O dia em que a verdadeira Aurora morreu, pelas balas das armas de outros androides.
— Androides… são realmente irritantes.
Ela se livrou do abraço de Lyra e seguiu sozinha para a entrada da torre. Os dois ficaram confusos de início, mas logo Atlas correu para alcançá-la. Vendo isso, Lyra decidiu fazer o mesmo.
Os três seguiram para dentro da torre, e enquanto subiam em silêncio, puderam ouvir as nítidas vozes de Stella entrevistando Elandor e mostrando os lugares da torre. Aurora já podia imaginar que Adrien não estava gostando nada disso, e por algum motivo, essa ideia a deixava inquieta.
— Espera! — Lyra quebrou o silêncio quando já estavam no meio da torre. — Vocês são literalmente novatos. Não sabem nada sobre como ser uma boa assistente! Precisamos ter certeza de que vocês são bons o suficiente para não decepcionarem o Adrien e correrem o risco de serem substituídos.
— Você acha… que eu não sou boa o suficiente?
— Claro que não! Você acabou de ser projetada, não possui nenhuma experiência com tarefas básicas ou complexas. Sinceramente… o Adrien é um moleque muito difícil. Ele não vai pegar leve com você. Por isso… — Lyra puxou uma pequena agendinha de seu casaco, com uma fileira de anotações. — Você vai ter que aprender comigo os seus pontos fortes e fracos!
As dúvidas de Lyra sobre as capacidades de Aurora a faziam se sentir culpada por dentro. Talvez, pelas memórias que tinha do seu pai. Esse sentimento acabou fazendo Aurora aceitar esse pedido peculiar.
Lyra se via em uma posição bem mais importante, agora que era praticamente responsável por aprimorar as habilidades dos dois como serventes. Isso a deixava bem animada também, por mais que não tivesse de fato muita experiência quando o assunto era servir ao Elandor.
Ela levou os dois primeiro à cozinha, para ver suas habilidades de culinária. Androides não precisavam comer por necessidade, então era apenas um hobbie bem raro. Porém, pelos Loiren serem uma família de humanos, era necessário que seus serventes soubessem cozinhar com perfeição pois esta era uma das necessidades principais de seus mestres.
— Nossa primeira lição vai ser preparar um bolo comum! A receita mais medíocre que eu consegui encontrar. Não precisa ter nenhuma decoração, recheio, tamanho específico ou qualquer outra coisa. Só precisa se parecer com um bolo e ter o gosto de um bolo de cenoura casual. Nada difícil, não acham?
Ela já tinha preparado os ingredientes, e colocado uma pequena página de instruções do passo a passo de “um bolo comum, medíocre e casual” abaixo das tigelas de cada um.
— Tem… muita coisa aqui… — disse Atlas, já se decepcionando ao ver a mesa cheia de sacos de farinha, bolsas mecânicas com ovos, açúcar e mais uma variedade de coisas. Ele não foi projetado para fazer esse tipo de serviço…
— Ah, vamos lá! Se eu consigo, vocês também conseguem.
Aurora não fez nada de início, e apenas observou o que Atlas iria fazer primeiro. Ele pegou o ovo e o encarou, buscando formas de como abrir aquela coisa. Era frágil, e continha uma espécie de líquido dentro…
— Como é que eu abro isso daqui? Não tem instruções na embalagem.
— Sério?! Como você ainda se considera uma máquina inteligente?! — Lyra cruzou os braços, fechou os olhos e se acalmou. A burrice dele acabou transformando sua antecipação em raiva. — É só você… rachar o ovo na mesa…
Atlas olhou para o ovo, e então olhou para a mesa. Aurora e Lyra o olharam fixamente, enquanto ele encarava o ovo processando seu próximo movimento. Logo, ele finalmente entendeu.
Ele pegou o ovo e jogou na mesa. Quando quebrou, os respingos da queda sujaram praticamente todos os itens que estavam por perto.
— VOCÊ É IDIOTA?!
Ele cruzou os braços, a encarando com desgosto.
— Você é uma péssima professora.
Mas logo os dois se calaram quando Aurora decidiu pegar o ovo. Agora, era a sua vez de mostrar que tinha aprendido alguma coisa. Encarou o objeto, e os outros dois encararam ela…
No fim, ela fez a mesma coisa. Porém, jogou o ovo dentro da tigela.
Foram-se alguns segundos de silêncio, os três encarando o ovo com as cascas quebradas boiando na tigela com expressões desapontadas.
— Isso foi… um pouco melhor, eu acho.
Lyra deu uma limpada na mesa, trocou as tigelas e os ingredientes para algo um pouco mais fácil. Agora havia sacos de macarrão na mesa, dentes de alho em um pote, tomates em um recipiente de vidro e mais alguns temperos enchendo a mesa. Enquanto ela preparava tudo isso, Aurora e Atlas apenas assistiam completamente desinteressados.
— Vamos para a segunda tentativa! Desta vez um pouco mais simples. — Ela ergueu um dedo para o alto enquanto explicava, bem pomposa. — Macarrão ao molho de tomate. Eu já imaginei que vocês não se dariam bem com minhas anotações, então dessa vez vou dar as instruções eu mesma!
Aurora e Atlas não se opuseram contra, não tinham muito o que fazer de qualquer forma. Lyra pegou uma panela preta para fazer uma breve demonstração. Colocou água pela torneira, que era quadrada, e pôs a panela bem no centro da mesa. Um pequeno altar se ergueu, servindo como uma chapa quente com pequenas saídas para o fogo poder fazer o macarrão ferver.
— Enquanto ferve, vocês só precisam preparar o tempero!
Ela começou separando os ingredientes: três dentes de alho, uma cebola, e um punhado de folhas frescas de manjericão. Com uma velocidade meio turbinada, ela picou a cebola em cubos pequenos com uma mão, enquanto na outra pegou os dentes de alho, jogou ao alto e fritou a casca de cada um com um laser que saiu de seus olhos. Depois das cebolas, ela picou o alho também. Um aroma de tempero queimado estava tomando a cozinha.
Em outra panela, ela jogou um fio generoso de azeite, e então colocou os ingredientes que havia feito lá dentro. Pegou uma colher de metal e mexeu a panela tão rápido que o som de óleo crepitando era incessante.
— Nós… não podemos fazer algo mais simples? — perguntou Atlas, observando a velocidade com que Lyra fazia as coisas.
— Mas isso é simples!
Para finalizar, ela foi pegar o recipiente com os tomates. Mas enquanto abria o recipiente, acabou escorregando e os tomates foram aos ares…
O recipiente cairia no chão e se despedaçaria, e alguns tomates provavelmente parariam dentro da panela fervente. No entanto, no breve instante entre o impacto de Lyra com o chão, um vulto repentino passou por cima dela e os tomates foram levados.
Assim que Lyra finalmente caiu, olhou para o alto e viu Aurora segurando o recipiente com todos os tomates no lugar. Ela pegou tudo no ar tão rápido que até mesmo Atlas ficou confuso. Sua cabeça virando de onde ela estava antes para onde está no momento, boquiaberto.
— Como é que…!
Ele ia dizer alguma coisa mas acabou perdendo a fala.
Vendo isto, Lyra acabou tendo uma outra ideia.
Não muito tempo depois, eles agora se encontravam no salão de músicas. Onde Ucho dava suas aulas de violino ao Adrien casualmente. Lyra se posicionou no altar para demonstrar como se fazia, e obrigou os outros dois a observarem com mais dois violinos nas mãos. Atlas de cara já não conseguia posicionar o instrumento no ombro corretamente.
— Bom, um dos hobbies do nosso pequenino Loiren é tocar este instrumento. Então, nada mais justo do que os serventes dele aprenderem como funciona também. Desta vez, será mais simples; vocês podem ler o jeito que eu toco e apenas replicar.
Aurora e Atlas não responderam, mas soltaram um resmungo sincronizado. Ao mesmo tempo, ajustaram os violinos nos ombros para começar.
Assim como Lyra havia descrito, era uma tarefa bem simples. Androides tinham a capacidade de observar, catalogar e replicar movimentos. Porém, a maneira em que ela cozinhava era um tanto exótica demais para ser copiada tão fácil. A forma em que tocavam violino era bem mais lenta, sendo assim ideal para que os dois pudessem replicar perfeitamente. E assim estava acontecendo; conforme ela tocava a melodia, os outros dois acompanhavam em uma sincronia tão perfeita que estavam mexendo o arco exatamente ao mesmo tempo.
Estava tudo indo perfeitamente bem, porém, este não era o plano original de Lyra…
De repente, em um movimento para voltar o arco ao topo do violino, ela subiu com tudo e então arremessou o arco em direção ao rosto de Atlas. Ele nunca esperaria por um movimento assim, por isso, não teve uma reação imediata. Quando percebeu o objeto voando em sua direção já seria tarde para esquivar ou segurá-lo.
Mas foi salvo por Aurora, que saltou para agarrar o arco no ar e deslizou até aterrissar no tapete branco. O arco sequer foi jogado em sua direção, mas ela teve velocidade o suficiente para o feito mesmo assim.
— Foi o que eu pensei… — sibilou Lyra, com uma face aliviada.
— O que foi isso?! — surpreendeu-se Atlas com a ousadia de Lyra.
Aurora permaneceu quieta, observando o arco na mão. Lançou um olhar um pouco ameaçador a Lyra, como se estivesse duvidando um pouco das atitudes dela.
— Nada demais! — retorquiu Lyra. — Agora, acho que tenho quase certeza sobre uma coisa. Mas para afirmar isso, ainda há um teste final!
— Não! Tô fora. Cansei dessa coisa de “testar”.
Ele jogou o violino no chão de qualquer jeito, mas por sorte o tapete acabou amortecendo um pouco a queda. Aurora também já estava de saco cheio e apenas acompanhou Atlas, calada como de costume.
— Espera! Seu idiota, você não vai precisar fazer nada. Dessa vez o teste é só para a Aurora.
Atlas se virou para ela e resmungou. Então, olhou para a Aurora, esperando a resposta dela. Ela abaixou a cabeça e pensou por um momento.
— Tudo bem, se você acha que isso vai nos ajudar com o Adrien.
Foi a maior frase que Aurora disse até então.
Os três subiram até o topo da torre pelo elevador. Lyra os levou até um terraço para fora da torre, no topo. Ali havia um grande campo com diferentes marcações feitas com nanotecnologia, então podiam ser remotamente alteradas de acordo com o esporte. Mas eles não usariam essa função no momento.
— Eu costumo praticar aqui um pequeno treino de velocidade e coordenação no ar. Os Loiren não costumam usar muito esse campo, e como Elandor me deixou livre para fazer o que eu quisesse, eu fiz desse campo o meu espacinho de estudos! — Ela chegou entre os dois, discreta, sussurrando: — Adrien não pode descobrir que eu pratico para fazer as tarefas com êxito… ele me julgaria como incapaz…
Aurora afastou o braço de Lyra e caminhou até o centro do campo, observando ao redor. O piso era alaranjado, com grandes mastros com bandeiras brancas nas pontas. O campo era cercado por uma barragem de mármore preta enfileirada, como se fossem vários bancos uns em cima dos outros.
Aurora de repente se sentiu arrependida de ter a seguido até ali.
— Tá, o que você quer que eu faça aqui?
Lyra saltitou para um dos cantos do campo, onde ao lado de uma das bandeiras repousava um pequeno robozinho voador com asas amareladas. Seus pés deram duas delicadas batidas no chão, e o pequenino imediatamente levantou as pequenas garras do chão e abriu as asas. O som que fazia enquanto voava era semelhante a um besouro.
Ele pousou bem sobre a palma da mão de Lyra, e ela o exibiu aos outros dois.
— Esse não é um daqueles vigilantes suspeitos?! — acusou Atlas. Não gostava nada da aparência daquelas coisinhas.
— Hum-hum! E é exatamente isso que nós vamos usar. Vejam as asinhas dele! — O besourinho abriu as asas assim que Lyra as mencionou. — Eu as turbinei em um nível que o deixasse com um voo muito mais aerodinâmico, controlado e principalmente; veloz. É importante ter esse tipo de habilidade quando se for pescar em uma das gaiolas na cidade. O objetivo é simples, tentar capturá-lo no ar!
Aurora encarou o besourinho enquanto ele batia suas asas sem levantar voo, apenas para exibi-las. Sem hesitar muito, ela se aproximou, aceitando o desafio com um gesto positivo com a cabeça.
Lyra e Atlas logo tomaram posições mais afastadas no campo, enquanto Aurora permaneceu no meio. Ela ajeitou a saia para que não atrapalhasse muito enquanto estivesse no ar.
— Sinceramente, eu sempre demoro bastante para capturá-lo… por isso, essa é a melhor maneira de testar essa “individualidade” exótica que minha irmã nos mostrou.
Sem mais demora, Lyra fez um pequeno sinal positivo com a outra mão, e o besouro disparou no ar. Ele era tão rápido que não conseguia mudar a direção proporcionalmente, então dava de cara com o chão e paredes no caminho. Mas a cada vez que isso acontecia, ele ricocheteava e voava para outro lado.
No entanto, a velocidade e forma aleatória que ele ricocheteava pelo campo era quase imprevisível. A cada segundo estava indo para um lado contrário do anterior.
— Eu… pensei que você tinha dito que o voo dele era aerodinâmico — comentou Atlas, observando de braços cruzados.
Aurora permaneceu parada, apenas olhando o besouro indo de um lado para o outro. Ela deu um passo à frente quando o pequeno estava prestes a passar na frente dela. Habilmente ela ergueu o braço para agarrá-lo, mas ele conseguiu desviar a direção e passar por baixo do punho de Aurora.
Com isso, ela decorou a trajetória dele. Os propulsores nos pés dela turbinaram com tudo, dando um grande arranco na mesma direção. Mas quando estavam chegando à parede, o robô alternou o caminho para o alto. Mas isso não foi suficiente para impedi-la; ela usou a parede como base, saltou e ligou as turbinas para o alto.
Os dois foram subindo e fazendo várias curvas seguindo uma rota em espiral. O ar estava ficando mais denso pela velocidade em que subiam, e isso fazia o pequeno perder velocidade. Quando percebeu, a mão aberta para agarrá-lo estava logo em sua cola…
Ele foi bem rápido em mudar a trajetória mais uma vez, fazendo todo o caminho para baixo. Aurora teve que fazer uma curva muito brusca, mas isso visto de longe não parecia nada para ela. Os dois desciam com tanta velocidade que se assemelhavam a duas agulhas cortando o vento no caminho, com um assovio estridente conforme vinham mais rápido.
Lyra estava entretida demais em observar o desempenho de Aurora, que nem percebeu que os dois estavam mergulhando bem na direção dela. Eles eram rápidos como dois jatos de caça, era impossível sair do caminho a essa altura.
Percebendo a situação, Atlas corajosamente entrou no caminho para protegê-la.
A preocupação de Atlas no fim não foi necessária, antes mesmo que pudesse olhar de volta para o alto, sentiu o vento passando por baixo de sua orelha. Os dois lentamente se viraram para trás, e ali estava Aurora, com o punho fechado. Quando o abriu, pequenas migalhas do que antes era o robozinho de Lyra foram caindo ao chão.
— Meu besourinho!
A expressão foi de surpresa para desespero muito rápido. Enquanto Atlas continuava a encarando, sem saber como reagir a Aurora naquele instante. Ela apenas o encarou de volta, com o mesmo olhar frio de antes.
— Que perda de tempo — disse uma voz vindo do saguão.
Era Adrien, vindo com as mãos atrás das costas com um olhar julgativo.
— Eu achei que tinha dado uma tarefa para vocês. Não esperava os encontrar aqui brincando de pega-pega… Mas, já que trouxeram ela de volta, acho que vou deixar passar. Aurora terá que vir comigo agora, é um assunto importante. De preferência, sozinha.
Mesmo afetada pelo estado em que seu besourinho foi deixado, Lyra não deixou de se impressionar com os resultados…
— Ela levou só quarenta segundos… minha irmã… mesmo com esse core de ametista, eu nunca vi alguém ser tão veloz…
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