Ultima Iter Brasileira

Autor(a): Boomer BR


Trauma Longínquo

Capítulo 104: Submetendo-se ao Desespero

 

 

— O Prazer é todo meu. — O tom debochado e ao mesmo tempo sério da vice-diretora permeou o local trazendo um silêncio avassalador que só podia ser ignorado por causa da estranha sensação que ela emanava.

Meu olhar ficando afiado no que o suor desceu da minha testa. — Estranho pensar que estiveram me esperando tanto e nem mesmo o diretor principal está aqui pra me receber.

Mesmo diante da minha expressão firme ela deu alguns passos adiante fazendo as correntes atrás de suas pernas rasparem no chão com um som desconfortável e profundo.

— Realmente impressionante que não esteja lisonjeado por receber as boas-vindas de mim, Hartseer Jack. — Ela levantou seu chapéu um pouco pela pequena aba preta. — Talvez eu deva considerar isso como um desacato a autoridade? — Os olhos púrpuros e profundos dela se revelando.

— E-Eu duvido que isso seja realmente necessário.

Os guardas se entreolharam um pouco apreensivos com a nossa conversa e no mesmo momento um deles bateu a ponta de sua arma contra minhas costas. — Receio que eu havia dito para ficar em silêncio, tapa-olho.

Os dois guardas com certeza estavam preparados para me punir afinal eu estava tentando retrucar uma das autoridades mais respeitadas no local, entretanto pra minha surpresa a vice-diretora fez um olhar hostil para os dois antes de levantar sua voz.

— Não será preciso. Vou fazer vista grossa por enquanto já que é o seu primeiro dia aqui, Hartseer Jack. — Ela sorriu de forma maldosa. — Com isso, vamos apresentar para você os cômodos de Lacrima assim como também o mostraremos o local onde irá residir até o dia da sua execução daqui duas semanas.

Meus olhos se arregalaram. “Duas semanas?!”

Meu corpo congelou de forma repentina enquanto senti os olhares de todos os detentos e guardas no pátio pairando sob mim.

Execução, era o fim de fato e eu estava fadado a ser eliminado daqui duas semanas, mas... por que isso me chocou tanto assim?

Eu já sabia que iria ser morto logo, mas não tão rápido. O desconforto se alastrou pelo meu corpo e alma no que minha pupila tremia, mesmo eu tentando fazer uma face confiante ainda era evidente a minha apreensão.

Ao fundo a voz abafada da vice-diretora veio até mim em um tom descontraído: — Hm. Eu entendo bem esse sentimento. É pouco tempo pra alguém que deu tudo de si até o último segundo, não é? — Ela riu. — Não se preocupe, até para vermes como você existe uma pequena chance.

Eu ergui meu olhar perturbado para a face sorridente dela que continuou dizendo: — A cada 3 dias há um pequeno evento aqui em Lacrima, ele era feito de forma clandestina pelos próprios prisioneiros antes porém decidimos adotar ele como parte do nosso sistema. Se chama Armaggedon.

Os dentes afiados da vice-diretora reluziram levemente enquanto ela explicou desviando seu olhar malicioso para os corpos dos detentos jogados pelo pátio.

— O Armaggedon é como uma competição, o mais forte vence só que isso é na teoria afinal muitas vezes a inteligência se sobrepõe sob a força física de tal forma que as montanhas de músculos não têm escolha a não ser perecer.

Passos. Passos. Passos.

Ela caminhou até o centro do pátio enquanto as correntes cinzentas atrás de sua cintura se arrastaram no piso de cerâmica sujo fazendo um ruído excruciante, seu olhar ocultado pela aba negra do chapéu com um brasão de prata que fazia até mesmo os mais intimidadores detentos se ajoelharem. — Hartseer Jack, creio que já tenha passado por muita coisa até aqui. Entretanto temo que o verdadeiro desespero só pode ser experienciado por alguém quando se está participando do Armaggedon.

Um suor frio desceu pela minha testa enquanto levantei a voz para a mulher de longos cabelos púrpuros caminhando pro meio do pátio. — O que quer dizer com tudo isso?

Com um último passo ela ergueu sua perna direita dobrando o joelho, a sola de sua bota de cano longo fez uma sombra sob a cabeça de um dos prisioneiros caídos no chão. — O que estou querendo que você entenda é que não existe um destino tão cruel quanto o Armaggedon, ser dominado pelo desespero absoluto diante de um inimigo impossível de ser confrontado, aceitar a dor da sua derrota completa rendendo-se a morte. Essa é a única regra que existe no caos que tal situação propõe, ser o oprimido ou ser o que oprime. — Terminando suas palavras ela desceu a sola de sua bota com todas as forças no crânio do homem caído no chão.

O som rígido e quebradiço do impacto firme que estremeceu os arredores fez meus ossos vibrarem levemente.

Em um piscar de olhos abaixo da bota dela estavam diversas rachaduras na cerâmica e o que deveria ser a cabeça do pobre prisioneiro era apenas um amontoado de vermelho destorcido e pedaços da mesma cor espalhados, uma possa de sangue gigante se formou enquanto fragmentos de respingos foram vistos não só nos arredores como nas roupas da vice-diretora também.

Meu coração acelerou.

Mas dessa vez não foi por causa do vislumbre terrível da carne e o sangue em exposição completa, mas sim devido a quem estavam a expondo, Detainee Current a vice-diretora da prisão chamada Lacrima.

Armaggedon.”, comprimi os lábios em nervosismo enquanto fechei meus punhos trêmulos. “O que diabos seria isso? Um jogo mortal, uma luta até a morte?”, pensamentos escorrendo pelas rachaduras em minha mente.

Foi então que de forma abrupta um som familiar me arrancou de dentro do tornado de dúvidas.

Um vulto prateado rugindo entre os ventos em minha direção.

Gh! Merda! — Sem pensar duas vezes puxei todo o peso do meu corpo para o lado na esperança de me esquivar.

Um dos guardas teve atrito comigo fazendo seu corpo ser jogado junto ao chão.

Booom!

A mesma cacofonia destrutiva de antes, a mesma de quando Detainee esmagou a cabeça daquele prisioneiro no chão engoliu o cenário ao meu redor junto de poeira aos ares.

A respiração ficando pesada enquanto meu corpo colidiu com a cerâmica fria de forma brusca.

Uma risada esquisita perfurou a nuvem de sujeira — Chihihi! Que ótimos reflexos Hartseer Jack! talvez o Armeggedon realmente seja uma boa oportunidade pra você.

“Que diabos foi isso?! A minha execução é só em duas semanas!”, rangi os dentes em desconforto antes de virar as costas pro chão, meus pulsos doendo com os grilhões de metal ao seu redor limitaram demais a minha queda.

Erguendo o olhar até a silhueta da Detainee eu senti cada pulsar do meu coração bombeando sangue para o resto de meu corpo.

Os longos fios púrpuros dela dançando levemente enquanto seus passos suaves a guiaram em minha direção, em sua mão direita um pequeno bastão estava acoplado à uma longa corrente que se estendia até uma grande esfera repleta de espinhos afundada na parede de concreto.

“Mas que caralhos! Ela tirou uma clava do nada.”, mordi o lábio em choque.

Ela poderia ter me esmagado por completo com essa clava, acho que não exista nenhuma regra atrelada a minha execução que não possa ser quebrada por essa mulher.

 

[Incis Katulis]

 

Um clima abafado e a luz intensamente quente do sol castigava meus cabelos e pele enquanto me vi na beira do grande precipício com uma face cética.

O calor intenso parecia estar derretendo meus neurônios cada vez mais só que toda essa transpiração não era só por causa das altas temperaturas.

“Precisamos fazer alguma coisa, precisamos fazer alguma coisa, precisamos fazer alguma coisa”, essa mesma frase se repetia em diferentes tons e velocidades em minha mente me envolvendo em um cenário de ruídos e rabiscos dolorosos que me perfuravam de forma invisível.

Meus olhos viajaram pela cratera gigante que foi deixada em metade do quarteirão.

A muitos metros atrás de mim estava Zakio que assim como eu estava com seus pulsos presos firmemente a grilhões de prisioneiro, alguns membros da guilda o seguravam e outros se aproximavam de mim.

Passos. Passos. Passos.

A voz firme da figura de cabelos longos se aproximando de mim passou por cima dos meus ombros: — Temo que isso também seja obra dele no fim, os acontecimentos se atrelam de forma que não haja um argumento válido mais.

Rangi os dentes. — Tch! Eykrill, eu ainda não consigo acreditar em tudo o que estive vendo os últimos tempos. — Meus olhos lacrimejando, — O meu pai, v-vocês ignoraram a ausência dele e a queda da guilda também. — meus punhos se fechando firmemente. — Tudo isso por causa de uma acusação à um garoto que nem sequer sabia direito o próprio nome, agora está nos dizendo que ele também foi responsável por isso?!

O capitão Eycrill me encarou com seu único olho profundo de forma fria antes de virar a cabeça na direção do precipício diante de nós. — Creio que você não esteja desprovida de raciocínio ou até mesmo das suas capacidades oculares senhorita Incis, mas como pode ver de algum modo essa cratera gigante que apareceu aqui no continente de Seraph é muito semelhante a que surgiu em Leycrid também.

O pior é que ele estava absolutamente certo, essa cratera gigante que tomou o quarteirão de complexos governamentais das forças armadas locais quase que por inteiro era basicamente a mesma que vimos em Leycrid.

— Eu compreendo, compreendo que há muitos indícios... mas... — Minha voz se prendendo dentro da garganta.

Não havia muito a se fazer se parar pra pensar, eles já haviam levado Jack pra longe, aquele garoto já estava condenado e talvez nunca mais o veríamos. Foi tudo em vão.

Nesse impasse o capitão Eykrill analisou minha expressão de forma fria com seu tapa olho oculto pela grande mecha de cabelo negra por cima.

O sol escaldante banhava os destroços de prédios e casas que foram obstruídas e arrastados pro centro da cratera colossal do outro lado do precipício eram vistas algumas máquinas Vyer autônomas com suas grandes carcaças de metal desenterrando entulhos em busca de corpos ou sobreviventes enterrados.

— Você sabe o quão grave a situação ficou Katulis Incis, os seus poucos companheiros que se propuseram para nos dar informações sobre o caso também demonstraram uma forte insistência contra as nossas acusações. — A face de Eykrill com a pele de sua testa franzida em conjunto a suas sobrancelhas, uma expressão que esculpia um ódio ardente. — Desde o princípio todos vocês estiveram agindo dessa forma, se apegando tanto aquela raça suja chamada Lost.

No que as palavras dele cessaram minha voz saiu rasgada em fúria: — O que diabos você sabe sobre os Lost?! Sabe pelo menos como diabos saímos de dentro daquela reencarnação de Dungeon na mansão Blazeworth?! Foi por causa do Jack! Por causa de um dos Lost que você tanto despreza que nós estamos todos vivos agora.

A mão de Eykrill se transformou num borrão quando minhas palavras calando minha voz.

Paft!

Um impacto súbito colidiu contra minha bochecha deixando logo em seguida uma queimação em minha pele.

— S-Seu filho da... — Ergui meu olhar cansado pra ele que me observou relaxando uma das mãos atrás das costas.

— Os Lost são uma ameaça completa ao nosso mundo, fico realmente entristecido com o fato da filha de um dos homens mais fortes que já pisou nessas terras ter se rebaixado a tal ponto. Em Mythland sempre funcionou assim e até o seu pai altruísta sabia disso, existem certos tipos de seres nesse mundo que não importa quanto tempo tente lutar por eles, alguma hora sempre irão revelar sua verdadeira natureza e assim cavarão sua cova de novo e de novo. O preconceito racial só existe por que ele se deixou nascer.

Nesse momento eu poderia jurar que meus dentes eram como presas afiadas rangendo suas pontas umas nas outras.

“Esse homem... não é da guilda que meu pai criou, ele não é, nunca poderia ser!”, comecei a duvidar de mim mesma.

A guilda feita com o intuito de melhorar o mundo onde vivíamos, uma irmandade suprema com o objetivo de unificar raças e povos de diferentes tipos em prol de um futuro brilhante livre das limitações que Zykron nos impôs... se transformou nisso.

Nesse instante eu havia compreendido uma coisa.

— Nós nunca tivemos chance alguma nessa batalha. — Pensei em voz alta perfurando Eykrill com meu olhar que poderia queimá-lo vivo com todo meu ódio. — O Jack já foi, ele era a desculpa perfeita no final das contas. Como você mesmo disse né capitão Eykrill, no final as verdadeiras intenções sempre são reveladas e bastou um deslize do meu pai pra todos vocês virarem ratos imundos correndo atrás do queijo! A ordem acabou, a honra foi jogada no lixo e agora todos almejam o topo.

— Sua desgraçada. O que diabos você fez durante todo esse tempo desde o desaparecimento do seu pai então? — Eykrill deu um passo adiante antes de parar e me olhar profundamente. — ficou presa com um Lost inútil e quase comprometeu os valiosos membros da sua equipe inteira enquanto todos nós estávamos preocupados lidando com a desordem e o caos que o seu pai de merda causou.

E como se não bastasse toda essa falácia esse verme maldito cuspiu na minha cara.

Meus olhos se arregalando com uma raiva fulminante percorrendo cada fibra do meu ser.

Eu fiz de tudo, eu sei que fiz de tudo e dei o meu melhor, mas foi por esses tolos? Foi por isso que meu pai e eu lutamos todo esse tempo?!

A imagem de Jack e Zakio lutando contra aquela assassina, Layaka chorando, essas memórias pulsaram em minha mente trazendo todo ódio de dentro fazendo-o emanar ao meu redor como fogo.

“Tudo isso não foi em vão, vou fazer você pagar Eykrill.”, pude sentir o desejo de sangue me rasgando por dentro mais uma vez.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora