Volume 2

Capítulo 89: Caos

Num simples estalar de dedos de Vlad, o homem recém-ressuscitado transformado em vampiro, teve suas memórias reescritas desde o nascimento até a alguns segundos atrás.

— Meu Lorde… — O homem ajoelhou-se diante do rei dos vampiros, mantendo a cabeça baixa, pois não tinha permissão para encarar Vlad diretamente. — Perdoe-me pela falta de modos em sua presença…

Drácula sorriu satisfeito e começou a caminhar com as mãos cruzadas nas costas, passando pelo homem ainda ajoelhado.

— Como eu mencionei, tudo foi um descuido meu... Portanto, não se preocupe. Agora, acredito que todas as ordens que emiti estão firmemente gravadas em suas memórias…

— Sim, sei exatamente o que fazer.

— Esplêndido. Então, comecemos. — Vlad falava com sua elegância habitual, em um tom baixo e constante, enquanto continuava a andar. — E lembre-se, não me decepcione. Se cumprir tudo corretamente, concederei a você um nome... Mas se falhar, retirarei tudo o que o torna um ser consciente, e você se tornará apenas mais um dos meus fantoches sem vontade.

Quando o rei dos vampiros, Vlad Drácula, transforma alguém em vampiro, ele tem o controle absoluto sobre cada ínfimo detalhe do corpo daquela pessoa. Isso inclui memória, personalidade, vontades e desejos, tudo ao seu bel-prazer.

Muitos dos transformados contra a vontade têm suas memórias reescritas para evitar problemas, tornando-se meros bonecos vivos. No entanto, aqueles pelos quais Vlad tem algum tipo de estima são mantidos conscientes, pelo menos até que ele decida de outra forma.

Diante da ameaça implícita, o homem engoliu em seco e levantou-se para cumprir as ordens com perfeição, evitando qualquer problema.

— Com sua licença… — O respeito ou medo sempre mantinham Vlad intransponível, sem que alguém ousasse ultrapassá-lo sem permissão.

— Ora, passe à vontade.

Com a permissão do rei, ele passou e correu até a porta do armazém, batendo algumas vezes, um tanto ansioso.

Enquanto as trancas da porta interna começavam a fazer barulho, como se alguém estivesse destrancando-as, Vlad rapidamente se desfez em fumaça escura, dissipando-se pelo ambiente. Quem observasse não notaria sua presença ali ou em qualquer outro lugar do ar.

— Quem é? — Ao terminar de destrancar, um ranger baixo indicou que a porta estava sendo aberta e, por uma pequena brecha, um homem apareceu, indagando com o rosto. — Ah, é você. O que quer? Cadê o outro?

— Ele saiu, foi mijar atrás de alguma árvore por aí…

— Cara, por que você está tão pálido? — Ele arqueou uma sobrancelha. — Parece que perdeu todo o sangue… 

— Estou simplesmente exausto. Me deixe entrar para beber um pouco de água... — murmurou. 

O amigo do outro lado da porta não viu motivos para negar o pedido; a exaustão do companheiro era evidente, quase palpável. Quando finalmente abriu a porta do armazém, revelando seu interior sombrio, o vampiro deu um passo hesitante, sua perna ultrapassou a soleira.

— Obr- Aaaaaaah!! — O grito abrupto irrompeu quando o corpo do homem começou a ser consumido por uma dor excruciante, sua pele estava se desfazendo em cinzas diante dos olhos horrorizados dos presentes. — Espero ter sido útil... Senhor... — murmurou antes de desaparecer por completo.

Vlad observava a cena do alto, ainda envolto em sua forma de névoa, enquanto os rapazes dentro do armazém corriam em pânico, alguns se aproximando para investigar o que havia acontecido. 

“Conforme imaginei”. Conforme suspeitava, alguém habilidoso e poderoso havia lançado uma magia de proteção capaz de repelir vampiros. Ressuscitar um dos homens foi apenas para testar a tese; apenas uma medida de precaução para garantir que ele não sofresse danos.

“A forma como queimou...” A magia desencadeada era indubitavelmente poderosa, lançada como uma maldição avassaladora. Somente uma bruxa ou bruxo de grande habilidade teria sido capaz de conjurar algo tão terrível, capaz até mesmo de afetar o próprio rei dos vampiros.

“Só existe uma bruxa capaz de me atingir com maldições...” Vlad conhecia bem a resposta para essa questão, e isso lhe fornecia muitas respostas sobre como os vampiros haviam escapado de seu controle.

Utilizando suas habilidades para detectar alterações na magia ao seu redor, Vlad observou a porta do armazém, onde os homens ainda estavam atônitos diante das cinzas que um dia fora seu companheiro. 

Notou, porém, que não havia nenhuma agitação, presença ou movimentação incomum de mana no ar. Sendo que, uma maldição geralmente envolve círculos mágicos que se ancoram em um local específico. Portanto, na presença de um desses círculos, ocorreria uma anomalia, resultando na aglomeração de uma grande quantidade de partículas mágicas em um ponto específico.

Ainda assim, a incerteza persistia, pois mesmo com as habilidades excepcionais de Vlad para sentir, observar e antecipar mudanças na mana ao seu redor. Não conseguiu nem ter certeza absoluta da presença de um círculo mágico quando chegou. Se fosse quem ele imaginava, nunca poderia ter total confiança.

“Arriscar causa um desconforto indesejado, mas...” Mesmo relutante, viu-se obrigado a enfrentar o risco. Com determinação, ainda transformado em uma grande nuvem de fumaça negra, voou pelos céus até chegar à porta. Sem hesitar, atravessou-a, aliviado ao constatar que ainda estava intacto.

Desejando manter sua presença oculta, espalhou a  névoa, envolvendo os homens em uma cortina de confusão e desorientação. Gritos ecoaram, abafando os sons dos corpos sendo perfurados. Quando a névoa finalmente se dissipou, os homens jaziam no chão, suas vidas foram ceifadas de forma implacável, cada um com um corte limpo no pescoço, vítimas das unhas afiadas de Vlad Drácula.

— Agora... — Em um gesto amplo, Vlad abriu sua capa, revelando o forro vermelho que se agitava em ondulações como portais, liberando criaturas vampíricas. Algumas delas estavam deformadas, todas desprovidas de vontade própria, meros fantoches do rei dos vampiros. — Meus caros fantoches, façam-me o favor e busquem por qualquer indício de estranheza.

As criaturas, desprovidas de pensamento próprio e obedientes às ordens de seu mestre, avançaram pelo armazém. Eles começaram abrir as caixas ainda lacradas e inspecionavam as jaulas e gaiolas vazias, deixadas assim pela última invasão de Alaric.

Até que um sinal mental alcançou a mente de Vlad, indicando que haviam encontrado algo intrigante. O rei dos vampiros prontamente se dirigiu ao local.

— Ora, ora, o que temos aqui... — Diante dele estava uma jaula contendo o corpo seco de um vampiro, já morto há algum tempo, o mesmo que Alaric havia visto anteriormente. — O que fizeram com você...? — indagou Vlad, franzindo o cenho, irritado com a cena diante dele. Inclinou-se sobre o cadáver, sua mão tocando-o e sentindo as células imortais reagirem.

Como os vampiros eram parcialmente imortais, algumas de suas células continuavam vivas mesmo após a morte do corpo, persistindo até o fim dos tempos. Assim, os vampiros eram um dos poucos seres capazes de serem ressuscitados em plena forma, por meio de artes das trevas. No entanto, para aquele vampiro em particular, a ressurreição não ocorreria; o que Vlad desejava eram as informações contidas nas células.

E assim, como se estivesse dentro do corpo daquele cadáver, Vlad observou através de seus olhos. Estava em um tipo de laboratório, todo branco e bem iluminado, não parecia ser no armazém. Percebeu que ainda estava vivo, porém amarrado a uma cama, ao lado de outros vampiros semiconscientes. Havia uma porta à frente, por onde uma mulher entrou, ela vestia um jaleco branco que Vlad reconhecia bem, embora esse tipo de vestimenta já não fosse comum neste continente ou época.

A mulher tinha longos cabelos dourados e olhos cor âmbar. Em sua mão, segurava uma seringa, parecia conter algum tipo de líquido viscoso dentro. De repente, ela olhou para o vampiro cujas memórias Vlad estava testemunhando e avançou em sua direção. Sem aviso, injetou algo no braço dele, e após se debater um pouco, o vampiro pareceu se tornar obediente. Então, ela... ela disse algo...

Vlad arregalou os olhos, saindo das memórias, já se endireitando e correndo em direção à saída. Havia algo urgente que precisava comunicar a Alaric. Claro, ele já havia absorvido todas as células para poder investigar corretamente mais tarde.

À medida que passava por seus fantoches, estes se desfaziam em névoas escuras que se fundiam à capa de Vlad. Assim, ele deixou o armazém e se transformou em morcego, alçando voo de volta à vila.

 

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Alaric permanecia agachado diante do pálido e inerte corpo de Peng. Erguendo-se lentamente, com os olhos cerrados, trouxe o corpo consigo enquanto começava a avançar.

— Precisamos ir até Chen... — declarou ele, dirigindo-se a Xu Ying, que enxugava as lágrimas. — Pegue o corpo de sua avó, precisamos dar ao menos um enterro digno a eles…

"Ele não parece diferente ou perturbado..." refletiu ela. Em sua percepção, Alaric deveria ter mudado de alguma forma após testemunhar tal tragédia, assim como ela própria sentia um amargor crescente dentro de si. No entanto, o que ela desconhecia era que um poço já cheio não pode conter mais, apenas transbordar, e Alaric já carregava consigo rancor suficiente para fazer transbordar o poço de seu coração.

Ainda assim, o jovem não poderia negar que estava tomado por uma estranha melancolia, algo que pensava ter abandonado há muito tempo.

Com dúvidas pairando sobre a verdadeira natureza de Alaric, Xu Ying navegou entre os corpos pálidos dos vampiros que o jovem havia abatido, até alcançar o corpo de sua avó e erguê-lo nos braços.

A pequena fada, sem ter muito o que fazer para ajudar, voou até o dedo anelar de Alaric, transformando-se no anel prateado.

Então, os dois avançaram juntos, lado a lado, dois jovens carregando dois corpos. Uma cena trágica se desenrolava diante deles, ruas encharcadas de sangue, poças vermelhas a cada esquina e centenas de corpos sem vida, tanto de vampiros quanto de moradores, espalhados a cada poucos passos. 

Vísceras expostas jaziam por toda parte; uma visão simplesmente horrenda. Descrever como horrenda ainda era pouco para evocar realmente o que se passava diante dos dois.

O cheiro de sangue seco golpeava Xu Ying como socos no estômago, causando náuseas e fazendo-a desejar tapar o nariz para bloquear a pestilência, incômoda.

Ela desviava o olhar dos corpos, ou das partes que deveriam estar dentro deles, para evitar sentir-se mal. Era uma garota comum, com uma vida comum, nunca havia sido exposta a visões tão brutais ou atos tão hediondos. No entanto, o embrulho no estômago era impossível de se evitar.

Enquanto isso, Alaric caminhava em silêncio, focado à frente, sem desviar o olhar dos corpos ou de qualquer outra coisa. Ele, por sua vez, já havia testemunhado atos tão hediondos quanto aqueles inúmeras vezes, e visto cenas igualmente brutais ao longo da vida. Mesmo assim, sentia vontade de vomitar com o cheiro podre que invadia suas narinas.

Parecia que o pandemônio havia cessado, pois os dois caminhavam sem qualquer interrupção de vampiros próximos. Provavelmente os caçadores haviam conseguido lidar com todos; os inúmeros corpos de vampiros espalhados pelo local confirmavam, em parte, esse fato.

Contudo, um vampiro surgiu diante dos dois, na verdade, um morcego surgiu e logo se transformou em Vlad Drácula.

— Alaric! — Xu Ying arregalou os olhos, assustada diante daquela visão, reação esperada de alguém que nunca havia se encontrado com Vlad antes. — Vamos correr!

Era uma ideia tola; mesmo se corressem o mais rápido que seus corpos cansados permitissem, não chegariam muito longe. Não quando o próprio rei dos vampiros estava atrás deles. Contudo, Alaric não demonstrou surpresa, apenas o encarou, curioso com a expressão tensa e incomum de Vlad.

— Se acalme — pediu Alaric, lançando uma rápida olhada para ela antes de voltar sua atenção para Drácula. — O que foi? O que aconteceu?

Inicialmente confusa com o pedido e a forma amigável com que Alaric se dirigia ao vampiro, acabou optando por confiar no jovem.

— Você precisa sair daqui, agora — avisou quase como uma ordem ao rapaz, que se viu confuso.

— Vlad? O que está acontecendo?

— Os corpos, na verdade, os cadáveres desses vampiros, quando ficam sem batimentos cardíacos por muito tempo... Explodem…

Ambos Alaric e Xu Ying arregalaram os olhos diante da informação e, sem questionar, correram, não em direção à saída, mas sim à taverna. Vlad, frustrado com a decisão impulsiva, levou as mãos à cabeça.

— Bem, concluí minha parte com êxito. Agora, o que fará a partir daqui é totalmente sua decisão… — Ele começou a se transformar em névoa, gradualmente desaparecendo. — Apenas, não morra... Seria deveras triste perder alguém tão intrigante como você.

Alaric e Xu Ying, cada um carregando um corpo nos braços, corriam a toda velocidade em direção à taverna. De repente, sem aviso, Alaric viu um vampiro próximo inchar rapidamente. A região do peito dele começou a avermelhar-se, como se estivesse ficando incandescente. Estava prestes a explodir.

Sem hesitar, o jovem lançou-se na direção de Xu Ying para tentar a deslocar. Poucos milésimos de segundo depois, sentiu uma onda de choque o acertar enquanto ainda estava no ar, seguida por um estrondo ensurdecedor. Seu corpo foi arremessado, sem qualquer controle, por alguns metros. Ele tentou apertar o corpo de Peng contra o peito, mas não foi capaz de continuar o segurando. Assim, sem qualquer proteção, bateu de costas na parede de uma casa próxima, atravessando-a como se fosse de papel.

Xu Ying, graças ao empurrão do jovem, acabou caindo atrás de um muro de tijolos em construção, protegendo-se da explosão. No entanto, o corpo de sua avó acabou ficando no meio da rua.

— Vovó… — Ela havia caído desajeitada e, ao tentar alcançar a avó com a mão, sentiu outra onda de choque acertar a parede de tijolos. 

Não era apenas uma, nem duas, muito menos três; eram dezenas de corpos explodindo.

A vila transformou-se em verdadeiro show de carnificina, com direito a rojões de carne e ossos. Em cada canto, rua, esquina ou metro, para não dizer centímetro. Uma nova explosão varria tudo e todos em ondas de choque devastadoras.

Os corpos dos moradores, mesmo após a morte, pareciam incapazes de encontrar descanso, sendo violentamente arremessados contra as paredes. Os vivos, próximos às explosões, eram despedaçados, enquanto os que estavam um pouco mais distantes eram lançados sem direção, atirados contra alguma parede próxima e morrendo.

Xu Ying foi forçada a testemunhar o corpo já sem vida de sua avó despedaçar-se em milhares de pedaços, incapaz de evitar que o sangue daquela que amava atingisse seu rosto, manchando sua pele pálida com um carmesim macabro. Ela já não possuía forças para limpar o rosto, nem mesmo para emitir um grito de pavor. Parecia estar petrificada, uma mera estátua sem reação, enquanto o caos se desenrolava ao seu redor.

As casas e estabelecimentos começaram a ceder gradualmente, suas estruturas rachando e, por fim, desmoronando. Algumas pobres almas que tentavam e conseguiram escapar das ondas de choque tinham as esperanças de sobrevivência cruelmente soterradas, esmagadas por pedaços das paredes que desabavam ao redor e em cima delas. Enquanto isso, as casas de madeira, por sorte ainda de pé, eram devoradas pelas chamas vorazes que se alastravam após as explosões, queimando tudo no caminho.

Por um breve instante, a vila foi engolida por uma nuvem densa de poeira fuligem, resultante tanto das explosões quanto dos escombros das construções desmoronando. Os gritos desesperados daqueles que sofriam eram abafados pelo estrondo ensurdecedor das explosões e das estruturas caindo, criando uma cacofonia de terror indescritível, inferno seria pouco para o que ocorria naquela vila.

Tudo ao redor era reduzido a nada, e no meio do caos, o desespero não encontrava espaço para sequer existir, pois o que predominava era um sentimento que não podia ser reduzido a um mero desespero: uma mistura que ia além do horror e do desamparo.

Por um milagre do destino, o abrigo improvisado onde Xu Ying se encontrava resistiu ao colapso iminente das estruturas ao redor. Após alguns minutos de relativa calmaria, ela ergueu os olhos, hesitante, e então, lentamente, levantou-se, o coração martelando no peito enquanto tentava compreender a magnitude da destruição que a cercava.

— O que... — A voz mal saía, apenas fragmentos de sílabas tremidas escapavam de seus lábios trêmulos. — Al... Aric...

Ao desviar o olhar para onde o jovem havia sido arremessado, notou a estrutura desmoronada se mover, como se alguém embaixo tentasse desesperadamente sair. Num pequeno explosão de tijolos arremessados para o alto, o jovem emergiu, passando a mão na cabeça em uma tentativa de clarear a confusão.

— Peng... — O corpo do guarda já não existia, assim como o da avó da garota, despedaçado por culpa de um cadáver de vampiro próximo. — Merda... Espera, Chen!

Sem nem verificar se Xu Ying estava totalmente bem, Alaric correu na direção do que antes era uma bela taverna, agora reduzida a destroços.

— Chen! — Alaric, impelido pelo desespero, se enfiou em meio às paredes já caídas e algumas ainda em pé, mas prestes a ruir a qualquer momento. — Chen!

Ele vasculhou cômodo por cômodo, revirando os entulhos enquanto gritava, clamando por um vislumbre de esperança no caos que os envolvia.

Até que encontrou um corpo já envelhecido e correu para tentar o socorrer. Era Chen.

— Chen! — Ao chegar, começou a sacudir o corpo em busca de alguma resposta. — Acorde!... Acorde…

— Alaric… — Xu Ying chegou logo atrás do jovem e testemunhou a cena. Seus joelhos não suportaram e cederam. — Por que…? Por que esse pesadelo não acaba…? Por que estão levando todos de mim…? Alguém! Responda…! Por favor…

Alaric olhou para ela, que começava a desmoronar em lágrimas amargas, e então voltou sua atenção para Chen, que já não parecia mais estar entre os vivos.

“O que…” Havia algo sob o corpo ferido do barista. Com cuidado, Alaric moveu-o para revelar os belos cabelos vermelhos da criança que havia resgatado há pouco tempo.

— Você ainda está viva…? — Como resposta, a garotinha moveu as pálpebras, despertando.

— Onde… onde estou? — De repente, ela arregalou os olhos e se levantou. — O moço! Cadê ele?

Alaric abaixou o olhar, e ela observou os arredores, notando o corpo de Chen ao lado, já sem qualquer sinal de vida.

— Ele… — Os olhos dela brilharam; não de felicidade, mas sim de duras lágrimas que tentavam ser contidas. — Ele está dormindo…? Ele está, não está? Ei, moço… responda, ele está dormindo, certo?

Talvez fosse a inocência infantil de uma criança desafortunada, ou talvez uma estratégia para enfrentar a dura realidade. Seja o que fosse, não havia mentira capaz de protegê-la de um possível trauma.

Entre lágrimas, Xu Ying aproximou-se da criança, mesmo com o corpo clamando por descanso, ajoelhou-se para ficar na altura da garota e a abraçou com ternura.

— Ele está dormindo… Um sono confortável… com belos sonhos…

Alaric observou admirado com aquela demonstração de força e determinação da jovem, que mesmo destroçada e com o coração partido, ergueu-se para consolar a pobre criança. Enquanto ele, que já testemunhara a morte tantas vezes, ficou incapaz de proferir uma única palavra, ficou calado como um fraco, ele se sentia patético.

A criança parecia quase paralisada, suas mãos soltas não retribuíam o abraço, e seus olhos refletiam apenas o vazio. 

— Que bom... — murmurou com dificuldade. — Ele se jogou em cima de mim... Papai me disse que quando alguém nos ajuda, devemos agradecer... Quando ele acordar, quero agradecê-lo…

— Tudo bem… Agora, vamos sair daqui. Ele precisa de silêncio para descansar… — disse Xu Ying gentilmente, desfazendo o abraço e erguendo-se, então, ofereceu-lhe a mão para guiá-la.

— Uhum… — respondeu a garotinha com um leve grunhido de concordância, estendendo a mão para a jovem e voltando-se para o jovem, ainda paralisado. — Você vai vir também, moço…?

Parecia mais um pedido, uma súplica do que uma simples pergunta. Ela sorria, mas Alaric, acostumado a sorrir falsamente, conseguia discernir a forçada natureza dequele gesto.

— Claro… Jajá eu vou… — murmurou ele.

Assim, Xu Ying avançou sem olhar para trás, levando a criança consigo para fora do local, que parecia prestes a ruir.

No cômodo restaram apenas Alaric e Chen. Ele olhou ao redor e notou duas canecas e uma garrafa de cerveja ainda cheia. Ele as pegou.

— Você sempre dizia que um vendedor não consome os próprios produtos… — Ele encheu uma das canecas e a colocou ao lado do corpo de Chen. — Mas acho que não te sobrou muitos produtos… então… Será nosso último copo… minha última vez de afogar as mágoas… em um lugar tão belo como seu bar… Quero dizer… taverna…

Alaric encheu sua caneca e contemplou seu reflexo no líquido âmbar. O rosto, inicialmente quase apático, começou a se distorcer em melancolia, como se uma onda de tristeza o invadisse novamente. Uma única lágrima caiu sobre o reflexo em na caneca, o bagunçando, assim como sua própria mente.

— Ehhh… eu estava conseguindo conter o choro desde a morte de Peng… mas parece que não consigo mais segurar, não é verdade…? — Ele levou a caneca aos lábios. Enquanto o líquido amargo saía da caneca e descia pela garganta, às lágrimas salgadas saíam dos olhos claros e desciam pelas bochechas… — Adeus Chen… foi muito bom te conhecer e obrigado por tudo… 



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