Volume 1

Capítulo 49: Pós Batalhas

Apesar de ter vencido Mani, Alaric não conseguiu pôr fim à sua vida, uma vez que Erne e Dorni intervieram providencialmente no momento crucial. Exausto, seu corpo clamava por um repouso merecido, uma fadiga que permeava seus músculos e ossos. Contudo, a necessidade de reunir-se com amigos e irmão persistia como uma chama inextinguível. 

Mesmo sob o peso das dores, Alaric ergueu-se lentamente, sua ascensão marcada por gestos contorcidos até alcançar a posição vertical. Navegando com os olhos, percorreu meticulosamente o campo de batalha, cada passo revelava a cruel tapeçaria de corpos mutilados e destroços, testemunhas silenciosas da intensidade do confronto.

— Aqui aconteceu uma batalha sangrenta — declarou Alaric, avançando até chegar perto de um corpo, pertencente a uma jovem que aparentava ter recém-completado a maioridade. Ajoelhando-se, cerrou os olhos, intrigado.  — O que ocorreu com ele? Apolo, você tem alguma idéia?

"Não posso confirmar, mas parece que usaram uma arte proibida de absorção de almas", disse Apolo com pesar.

O corpo da jovem estava desidratado, suas bochechas afundadas, formando pequenas cavidades. Assemelhava-se a um tronco queimado, privado de toda a sua umidade.

— Entendo… —  Alaric não conseguia conceber a dor de ter a alma arrancada à força, embora tivesse experimentado uma dor direta na alma ao fazer o pacto com Fuxi. No entanto, a ideia de ter sua alma extraída parecia uma agonia indescritível. Ele refletiu sobre isso por alguns instantes antes de se erguer. — É triste saber que foi feito por alguém que estava do lado deles.

Alaric já tinha consciência de que aquele que cometeu esse ato obscuro estava entre os soldados inimigos. Afinal, ninguém que ele conhecia poderia realizar tal ato de absorção de almas.

— Foi a própria deusa que fez... — disse Gideon, aproximando-se quase arrastando-se, mas ainda assim mais rápido que os outros.

Alaric, agora em pé, bateu a poeira que estava sobre seus joelhos e olhou para Gideon, erguendo uma sobrancelha, incrédulo.

"Uma deusa absorvendo almas!? Ela ultrapassou todos os limites! Ela deve pagar!" Apolo parecia estressado; ouvir sobre uma divindade cometendo tais atos era inaceitável.

— Calma, está muito estressado — disse Alaric, tentando acalmar Apolo.

— Oi? Quem está estressado? — perguntou Gideon, parado à frente de Alaric.

— É... — O jovem havia esquecido que seu irmão não sabia sobre Apolo. — Eu! Estou um pouco estressado, sabe como é... Lutei muito.

Ele coçava a cabeça, e sorria sem jeito. Ainda não queria contar para Gideon sobre Apolo e, tentando evitar o assunto, desviou o olhar por todos os cantos.

— Nossa... Como foi a luta aqui? — Foi uma tentativa de mudar o assunto, mas ele realmente queria entender tudo o que havia ocorrido.

Gideon estranhou, mas decidiu ignorar. Fez como seu irmão e observou todo o campo de batalha, tocando a Escolion que estava na bainha em sua lateral. Expressou um olhar pesaroso.

— Foi uma batalha intensa, incrivelmente intensa. Todos nós demos o nosso máximo. No final das contas, fiz o que estava ao meu alcance.

Alaric assustou-se com essas palavras, pois acreditava que seu irmão não seria capaz de matar. Alias, vivia com aquela questão sobre se "matar era certo ou errado". Se por um lado estava surpreso, por outro estava receoso sobre a mente de Gideon. Então, tocou no ombro de seu irmão, com uma expressão preocupada, e disse:

— Irmão, relaxa. Eles atacaram primeiro. Se você os matou, não carrega nenhum peso, nenhuma culpa.

— O que!? Eu não os matei. Foi Aldebaram que liquidou todos esses soldados. Sério, você acha mesmo que eu teria coragem de desmembrar alguém?

Bem, aquilo fazia sentido. No fundo, Alaric sentiu um alívio; resgatar a mente de Gideon seria desafiador se ele tivesse causado aquele estrago na batalha. Alaric não pôde deixar de notar o silêncio de Apolo, mas decidiu não questionar, seria estranho falar sozinho na frente de Gideon novamente.

— Bom, seja como for, só o fato de você estar vivo já significa que lutou muito bem — Alaric pousou uma mão em sua lateral, mantendo a outra no ombro de Gideon. Seu olhar focalizou-se atrás de seu irmão, onde as três figuras restantes emergiram. Retornando o foco ao irmão, não pôde deixar de notar todos os ferimentos dele. — Parece que não saiu ileso, né? Está doendo?

Ahn? — Gideon olhou para baixo, observando seu corpo, vendo os ferimentos. — Não dói tanto, são só arranhões.

Alaric sabia que era uma mentira; Gideon estava apenas tentando parecer forte. Ele desviou o olhar para o estômago de seu irmão, onde um corte na roupa revelava uma pele aparentemente congelada.

— E isso? Nova moda? 

— Isso? Foi algo diferente que aconteceu comigo. — Gideon compartilhou o evento em que adquiriu os poderes de gelo e congelou o corte, embora o poder tenha desaparecido. — Foi isso, provavelmente esse gelo irá derreter daqui a pouco.

— Entendo. — afirmou Alaric, absorvendo as informações. Aldebaram aproximou-se, sorrindo como sempre. — Ora, se não é o grande guerreiro. Você fez uma bagunça aqui.

Aldebaram chegou ao lado de Alaric, passou o braço ao redor de seu pescoço, puxando-o para perto.

— Garoto hahaha! Vejo que está mais forte... tá quase um homenzinho.

— Tenho certeza de que te venço facilmente — brincou Alaric, tentando se soltar e falhando miseravelmente. — Fala sério, que força é essa...

— Vejo que está bem... — Nadine aproximou-se com os braços cruzados, parando a sua frente. Seu olhar já baixo, desviava de forma meiga.

Aldebaram levou a boca até o ouvido de Alaric e disse com um tom de piada:

— Ela ficou bem preocupada com você... Estava tão maluca para te ajudar que quase me bateu para vir… fiquei até com medo… Hahaha! — Seu olhar estava fixo nela, fazendo-a suspeitar.

— Ei! Do que estão falando!? — Desconfianda do que era, viu-se enrubescer completamente. — Pode parar!

Alaric sorriu, olhando-a de cima a baixo. Os cabelos roxos balançavam ao relento da leve brisa, que batia naquele local. Ela não sabia onde esconder a cara.

— Para de brincadeira, Aldebaram — pediu Alaric, observando Fuxi se aproximar, mas percebendo a ausência de duas pessoas. — Onde estão Astrid e o nosso avô? Gideon? Aldebaram?

Aldebaram e Gideon se entreolharam e, em seguida, baixaram o olhar. Isso, por si só, deixou Alaric apreensivo.

— Astrid desmaiou após a batalha... — respondeu Aldebaram. — Mas ela está se recuperando; daqui a pouco, ela aparece por aqui.

— E o vovô, Alaric... — Foi um silêncio ensurdecedor de alguns segundos que pareceram horas. — Ele tentando salvar Astrid, saltou na frente da lança daquele homem chamado Erne. Ele... foi ferido, muito ferido... Astrid o levou para algum lugar, mas só ela sabe... Eu estou tão... — As lágrimas começaram a escorrer por seu rosto.

Aldebaram soltou Alaric, e ele avançou até Gideon, seu olhar era gentil e compreensivo. Assim abraçou seu irmão, que sentiu um calor reconfortante envolvendo-o.

— Tudo bem, relaxa. Ele vai ficar bem.

“Esse é mesmo o Alaric!?” Nadine não conseguia acreditar que ele era o mesmo garoto sarcástico que raramente demonstrava emoções tão delicadas. Seu olhar expressava toda sua incredulidade.

— Difícil de acreditar que aquele é o jovem Alaric, não é? — indagou Fuxi, aproximando-se dela. — Quando vi isso pela primeira vez, tive a mesma reação que você. No fim, o amor dele por seu irmão é superior a qualquer dor ou tristeza.

— Ele parece não estar tão preocupado com seu avô… — afirmou Nadine, observando Alaric ainda abraçando seu irmão. Ele parecia não ter sentido nada ao receber aquela notícia, nenhum baque, nenhum olhar melancólico.

— Cada um tem um modo de expressar suas emoções… — Fuxi baixou seu olhar melancólico. — Infelizmente ele não descobriu o dele, optando por esconder quase todas e, extravasar no sarcasmo.

No cenário sangrento do campo de batalha, entre corpos dilacerados e destroços espalhados, surgiu um comovente ato de amor entre irmãos, um apoio exclusivo que somente os dois compartilhavam. O vento soprava de maneira suave, enquanto destroços de madeira se espalhavam pelo chão, provenientes da já inexistente cabana e dos pinheiros que testemunharam o embate.

Uma nova figura emergiu à distância, seus cabelos prateados refletindo a luz solar. O olhar cansado de Astrid se fixava nos amigos e em seu pai, enquanto se aproximava.

— Astrid! — Gideon se desvencilhou de Alaric e correu em sua direção. — Está tudo bem? Algum ferimento, quero dizer, idiota! É óbvio que ela está machucada, então, alguma dor? Óbvio que também está com dor...

Gideon se atrapalhava todo. Seu olhar deslizava por cada parte do corpo dela buscando cada mísero ferimento. Não eram tantos, apenas escoriações leves.

— Eu estou bem... — Seu olhar estava baixo, mas logo se elevou com determinação. — Mas isso não importa, vamos. Precisamos ir até onde seu avô está.

Os olhos de Gideon brilharam, era difícil controlar a ansiedade, suas mãos tremiam. Ao perceber isso, Astrid as agarrou, fazendo-o corar intensamente, gesto que ela replicou com o mesmo vigor.

— O que está acontecendo entre esses dois? — perguntou Alaric, com uma mão cobrindo a boca, para Aldebaram.

— O que está acontecendo? Acho que é o mesmo que rola entre você e a roxinha aí, hahah!

Nadine captou rápido que "roxinha" se referia a ela e ficou intrigada sobre o que o guerreiro estava falando, assim avançou em sua direção, perguntando:

— Tá insinuando o que, aí? 

— Ora, o que mais seria? O amor! Hahah! 

Nadine arregalou imediatamente os olhos, sentindo suas bochechas esquentarem. Aldebaram observou o rosto dela ficar tão vermelho quanto os cabelos de Alaric. Ele não conseguiu conter os risos, enquanto Alaric permanecia alheio, sem saber como reagir. Aldebaram tinha o colocado em uma situação complicada.

— Todo mundo animado, mas vamos logo encontrar nosso avô! — disse Alaric, usando isso como desculpa para escapar da saia justa que Aldebaram criou.

Mandou bem, garoto”, elogiou Apolo, decidindo finalmente voltar a falar.

— Apolo... Por que você desapareceu? — cochichou o jovem.

Senti um cansaço repentino. Quando isso acontece, eu desapareço...”

— Entendi, depois converso com você direito. — Ele voltou-se para todos, que assentiram, e avançaram na direção onde Dolbrian estava. Deixaram para trás os arredores, escapando da desgraça que se alastrava pela área. A promessa de nunca mais voltar pairava no ar. Nadine escolheu acompanhar Alaric, comprometida com sua missão. Após alguns minutos de caminhada, já estavam consideravelmente distantes de sua cabana.

— O que você vai fazer? — indagou Alaric, observando Astrid se afastar.

— Precisamos nos apressar... — Um brilho intenso irradiou de seu corpo, envolvendo-a em luminosidade. Sua silhueta tornou-se a única coisa visível, transformando-se ao se esticar, revelando asas, uma cauda e aumentando seu tamanho, tornando-se imensa.

— O que está acontecendo!? — exclamou Nadine, protegendo os olhos com a mão. A intensidade da luminosidade rivalizava com a dos braceletes quando ela os descobriu pela primeira vez.

— É sua forma de dragão! — gritou Gideon, correndo em direção a Astrid, esbarrando sem querer em Nadine, que se recuperou rapidamente.

— Seu irmão está ansioso mesmo — comentou Nadine, firmando-se após o choque e dirigindo-se a Alaric.

— Eu também estou — afirmou Alaric em tom seco.

— Está? — Sua atitude não dava essa impressão, mais parecia que ele estava quase sendo compelido a isso.

— Se acostume, esse garotinho às vezes parece mais uma pedra hahah! — caçoou Aldebaram.

Tsc… Que seja, vamos logo — disse Alaric, avançando atrás de Gideon.

Aldebaram dirigiu-se a Fuxi, que permanecia ao seu lado com um olhar sério, apesar de parecer indiferente ao que se desenrolava.

— Está bastante silencioso, não acha? — comentou Aldebaram, cruzando os braços.

— Simplesmente não tenho contribuições a fazer — Fuxi começava a se sentir fora de lugar entre eles, expressando-se com certa raridade.

Aldebaram observou-o com certa apreensão, mas logo suspirou e o chamou para seguir em direção a Astrid, movimento que ambos seguiram.

— Montem! — solicitou Astrid, já em sua forma de dragão. Sua determinação era evidente.

Gideon não hesitou e subiu, Alaric parou para observar, e Aldebaram, após passar, preparava-se para subir, mas então olhou para Fuxi.

Ehh… Você não vai conseguir se manter lá em cima sem cravar suas unhas. Então vou te pegar no colo... se não se incomodar... Ha,ha…

— Não me importo, mas sou mais alto que você, e com certeza bem mais pesado — informou Fuxi, que era alguns centímetros mais alto que Aldebaram, mas logo percebeu seus pés perdendo o contato com o solo. — O que!?

— Leve como uma pena! Hahaha! — Aldebaram ergueu-o acima de sua cabeça e saltou sobre Astrid. — Prontinho!

Alaric observava boquiaberto, testemunhando aquela força colossal. Mesmo machucado e enfraquecido, o guerreiro levantava Fuxi, um Lycaion, com impressionante facilidade.

— Que força incrível... — Ele arqueou as costas, olhando para Nadine ao seu lado, que parecia hesitante, balançando a cabeça negativamente. — Não vai subir?

— Não, obrigada... Ha,ha. — Nadine coçava os cabelos, rindo sem jeito, mas logo percebeu que, assim como o lobo, também não tocava mais o solo. — Ehh... O que!?

— Confortável, senhorita? — Alaric a segurou no colo com facilidade, mostrando que, mesmo sem força para levantar um Lycaion, erguer Nadine era outra história. Com um sorriso confiante, aproveitando o momento, saltou para as costas agora transformadas de Astrid.

E assim, a majestosa Astrid em sua forma de dragão bateu as asas, movendo a massa de ar de maneira que a neve subisse e as árvores balançassem como se enfrentassem uma considerável ventania. Esse movimento se repetiu até ela alçar voo, iniciando a ascensão em poucos segundos.

— É... Não me deixe cair... — Nadine agarrou os braços de Alaric com firmeza, encarando-o seriamente.

O jovem ao ver sorriu de forma sarcástica, e ameaçou soltá-la, quase causando um ataque cardíaco nela, que revidou com um tapa no peito dele.

Hahah! Tinha que ver sua cara, hahaha!

— Idiota! Eu vou... eu vou... — Ela não conseguiu formular uma resposta; o medo a impedia.

Aldebaram, que estava atrás de Alaric com Fuxi em suas mãos, segurou o lobo com apenas uma mão e cutucou os ombros do jovem com a outra. Ao atender ao chamado, Alaric virou-se e viu o guerreiro com um sorriso zombeteiro. Logo todos voltaram sua atenção para frente com as palavras de Astrid:

— Estamos chegando, pessoal. Preparem-se.



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