Volume 3 – Parte I

Capítulo 44: Sonho de treinamento: Magic Moreno II

                       

Em poucos minutos, todos acordaram com a mesma crise de histeria. Jamal até vomitou. A sensação foi a mesma: morte, dor e desespero. A última a acordar foi Nymph, que veio deixar o corpo desacordado de Sashi antes de despertar.

Agora estamos na sala de convidados da casa do Executivo, com expressões apáticas enquanto a dona Eliza, a empregada doméstica de Magic, nos serve um lanche. Ela nem mesmo fez perguntas sobre o porquê de parecermos um bando de beterrabas, em estado de choque.

Completamente abalados... e derrotados.

— E então? — Nymph é a última a sentar, bebericando de uma xícara de café.

— Sinto que nunca mais serei o mesmo, minha endividada — Jamal resmunga, os olhos baixos a encararem sua bebida.

— O que aconteceu lá? — Roberto faz a única pergunta que importava.

Alicia cruza as pernas, tomando mais um gole quente do café e então repousa os dedos sobre os lábios carnudos.

— O desafio do Magic foi bem claro: sobreviver a um minuto contra mim. E acontece que vocês foram derrotados e acordaram. Simples.

— Derrotados?! Eu levei um soco e morri, minha ousada! — reclama Jamal, batendo o pé.

Ingrid segura um riso discreto ao imaginar a cena, pois foi de acordas antes de ver. Diferente da nossa companheira, Nymph não segurou a risada.

— É duro aceitar que ainda são fracos. Mas fiquem tranquilos que eu não esperava que conseguissem de primeira mesmo.

Isso é para nos animar ou nos colocar ainda mais para baixo?

— Mas então... sempre que morremos, a gente acorda? — Emma esfrega o braço e a região da clavícula direita com pesar. — Sinto que fui atropelada por um boi.

— Não é bem assim. — Nymph pausa sua fala com mais um gole e retoma pigarreando. — Caham! Então, a essa altura, já devem saber que o sono é a principal forma de acessar a fictomancia, tirando uma ou outra anomalia. — Ela lança um olhar para mim. — Então, suas mentes estão em plena atividade, vivendo, andando, ouvindo, vendo, sentindo...

— E aí, minha consagrada? Onde quer chegar?

— Quero dizer que os personas são uma extensão de seus corpos. Tudo que eles sofrerem, vocês também sofrem de forma mitigada.

Sashi olha para mim enjoada com a explicação. Seria hilário se eu também não tivesse compartilhando dos males. Para mim, seu eu deitasse em qualquer lugar naquele estado, só acordaria daqui a três dias.

— Mas então, se morremos...?

— Enquanto o fictor está dormindo, o corpo fica vulnerável e mais suscetível a danos físicos resultantes do dano mental que está sofrendo enquanto está no mundo dos sonhos. — Nymph afasta um pouco sua blusa, mostrando um hematoma ao lado do pescoço. — Um corte muito profundo, por exemplo, pode ser sentido pelo fictor mesmo depois de acordar, mesmo que ele não esteja fisicamente em seu corpo. Em alguns casos mais extremos, sequelas físicas surgem como resultado de ferimentos graves no mundo dos sonhos.

Ela se interrompe novamente e seus olhos se estreitam, ficando nublados de repente.

— Então cuidado. Se nós “morrermos” no mundo dos sonhos ou no sonho de outra pessoa, morreremos de verdade na vida real. Mas se morrermos no nosso próprio sonho, só acordaremos, como foi o caso de vocês.

— Mas não ativamos nenhum campo lúdico e não tinha nenhum tragediano por perto — observa Roberto. — Então porque acordamos?

— Pesadelos não formam campos lúdicos para se manifestarem no Mundo Espelhado e influenciarem no mundo desperto? Os personas fazem a mesma coisa a um nível inconsciente. É quase uma espécie de sonho pessoal, onde vocês estão em um casulo feito para abrigarem suas formas oníricas. Além disso... — Ela mostra o SDM. — Não sei se a Nádia explicou isso a vocês, mas colocar nós para dormir mais rápido não é a única utilidade desse aparelho.

Uma interrogação desponta sobre nossas cabeças. Alicia nota a confusão e coloca o objeto sobre a mesa, terminando seu café.

— Os SDM têm um mecanismo de proteção para os fictors. Ao perceber um certo nível de atividade nervosa e cerebral, o aparelho detecta perigo e nos acorda antes que o pior aconteça. É bem útil. Já salvou minha pele várias vezes.

— E então? Vamos viver sendo nocauteados por você até milagrosamente sobrevivermos a um minuto e esperar a boa vontade do deus cearense ali para nos treinar? — Ingrid volta a questionar com mal humor.

Alicia suspira.

— Acho que podem não ter percebido, mas há um porquê de terem que passar por isso antes de chegarem até o Magic.

— E que motivo seria esse? Espero que valha meu ombro quase deslocado — Emma se queixa, os lábios retesados.

A assessora ri com descontração antes de responder.

Ela se levanta de repente e agradece à dona Eliza pela merenda.

— Agora temos que voltar pro meu apartamento. Já está ficando tarde e o caminho de volta é longo.

— Ué, mas já vamos? — Jamal coça a cabeça.

— Você não ia...?

— Irei explicar sim. No nosso próximo encontro, talvez, quando conseguirem completar o teste.

Levantamos acabados com o soar do despertador de três celulares. Seis da alvorada. Depois de acordar cedo, dormir mal por causa das dores, uma sessão de caminhada — segundo Alicia, fazia parte do teste — e pegar mais dois ônibus lotados de trabalhadores preocupados e sonolentos, estamos de volta ao apartamento de Magic.

Dessa vez, não durmo. Voltamos à cobertura do prédio de classe alta de Magic para o mesmo teste.

Tentar não morrer para Nymph.

Sem sucesso até agora. Essa tem sido nossa rotina por quase uma semana.

Nymph já havia nocauteado o Rei de Latão, fazendo seu persona sumir com o dano cavalar de um soco que deforma todo o seu tronco. Jamal parte para uma briga de socos desesperada com a mulher gato, mas leva um gancho bem encaixado e vai de Vasco logo em seguida.

Zeppelin aproveita a breve distração para usar as correntes de suas lâminas para prender a assessora.

— Agora! — A empregada caolha berra.

Yatsufusa aparece instantaneamente sobre ela e brande sua nodachi para um ataque letal. Sua máscara é a do demônio vermelho com presas proeminentes e o rosto irado. Enquanto isso, Sashi aguarda a uma distância segura.

—『Oni no kata: Kage Sorou Kakutsuchi!

Só que o ataque não chega a conectar. Na verdade, Yatsu sequer consegue completar sua técnica. Nymph move o corpo e seu movimento é o suficiente para arrebentar as correntes de Zeppelin. Ela puxa uma das pontas soltas e traz a persona de Ingrid até ela, esbanjando sua força anormal.

— Uooooh!

Girando a empregada guerreira como um peão, Zeppelin é arremessada contra Yatsufusa, ainda no ar. Os dois caem juntos e embolados.

— Droga! Tenha mais cuidado, mulher! Não vê que me atrapalhou? — O mascarado reclama, ajeitando a máscara no rosto.

— Não enche! Você que não foi rápido o bastante! — retruca Zeppelin com a mesma petulância.

— Os dois estão discutindo? — Sashi observa a briga deles com cara de paisagem

— Ei, cuidado!

Os dois brigões são pegos de surpresa pela investida da mulher gato, que se torna apenas um borrão preto e branco aos meus olhos. Com os braços abertos, ela derruba tanto Yatsu quanto Zeppelin ao mesmo tempo. Ambos desaparecem no chão.

Agora só restava nós três.

— E então? Acha que pode sobreviver por um minuto sozinha, samurai?

Sashi estala a língua e prepara a katana. As chamas violetas lentamente se mesclam ao seu cabelo, conferindo às mechas sua icônica aura violeta luminescente. Ela brilha em chamas.

— Uou! — Nymph bate palmas. — Vocês realmente são diferentes dos outros. Acho que o homem enlatado lá foi o mais perto além de você que percebeu.

Reticências despontam na minha cabeça. O que ela quer dizer com isso? Para não quebrar o clima, só sorrio com confiança. Sashi segura uma risada, pegando meu pensamento.

— Eu disse que havia um motivo para este teste estar acontecendo e sua reação agora me mostrou que posso contar a vocês. — Engulo em seco, com expectativa. — Mas, antes, se me permitem

Sem qualquer aviso prévio, ela avança até nós. Com os punhos em guarda, ela soca a katana de Sashi para cima com o punho esquerdo. Com o direito, ela encaixa um soco fulminante na boca do estômago de Sashi o qual provoca uma explosão de ar atrás dela.

Nesse momento, sinto minhas tripas se remodelarem dentro do corpo e a pressão obriga o café da manhã de mais cedo a voltar por onde veio. Sashi desmaia com a potência do golpe e seu corpo começa a ficar translucido.

Ela... vai desaparecer? De novo? Não.

— Sa-Sa-Cof-Cof-Sashi!

— Relaxa, man. Ela não vai sumir se é isso o que pensou — tranquiliza Nymph, arqueando as sobrancelhas. — Só a botei para dormir um pouco.

Solto o ar que prendi nos pulmões, ainda tossindo e sentindo dores terríveis na barriga. Fico ali tentando me levantar, mas não consigo.

— Ei. — Ela vem até mim, o olhar tão duro quanto rocha. — Vamos cair na porrada. Você e eu.

— Mas..., mas, eu...

— Não se preocupe. Não vou te matar, a menos que venha com esse papo de “não bato em mulher”. — Nymph gruda seus olhos aos meus, mortalmente séria.

Engulo em seco e até isso me provoca dor, mas concordo com a cabeça. Com um impulso, me levanto do chão, as pernas a bambearem.

Ela monta sua guarda com punhos altos e a perna levemente flexionada para frente, a postura básica de uma lutadora de Muay-Thai. Seus rabos balançam vigorosamente atrás dela.

Enquanto a mim, me organizando como consigo, levanto os braços de forma desajeitada para o combate.

— Pronto?

— A-a-acho que sim — pigarreio.

Sem a velocidade sobre-humana de antes, ela vem até mim como uma pessoa no mundo desperto faria. Seus socos se reduzem a uma potência realista, mas ainda o suficiente para rebocar um frango como eu na porrada.

Ela vem para cima e desfere dois socos diretos, os quais consigo bloquear.

— Acha que vai conseguir sobreviver ao treinamento do Magic, mesmo se passar por mim? — Nymph questiona de repente.

Devolvo com um gancho de direita. Ela defende.

— Não sei. Mas não tenho escolha, tenho?

Ela manda um cruzado de esquerda. Sinto o vento do seu punho ao me afastar.

— Pode desistir.

Arrisco um chute. Sem efeito.

— Não posso fazer isso. Não é uma opção.

Aproveitando o chute, ela avança e me dá um encontrão que me derruba sentado no chão.

— Argh!

— Então por que está se limitando desse jeito?

Me levanto com dificuldade, erguendo os braços para voltar ao combate.

— O que quer dizer com isso?

Sem se dar ao trabalho de responder, ela vem para cima com tudo. Dessa vez, sinto seus punhos mais pesados e impiedosos contra meus músculos já debilitados. Solto grunhidos e ouço CRECS angustiantes sempre que tento bloquear suas investidas.

— Você sabe bem o que estou dizendo.

Performo um lateral de direita, mas ela é mais rápida em agachar. Um soco de resposta vem em seguida em meu estômago e faz cambalear para trás.

— Urf, urf! Não... sei!

Mais um direto. Dois, três. Ela contem os três e devolve uma cotovelada na minha têmpora esquerda, balançando meu mundo.

— Você não confiar 100% no seu persona, não é?

Nymph afasta meus punhos desajeitados e suas agressões, me dando uma ombrada para me empurrar para trás.

— Arf, urf... E o que... você sabe sobre mim?

— Sei o suficiente para saber disso. — A assessora mantém seus braços erguidas em uma guarda blindada. — Acha que ela não é capaz de lidar com as dores e o perigo.

— Não é verdade! — Corro até ela e a soco com toda a força que tenho. Arfando, observo ela segurar meu punho com os antebraços unidos.

— Não? Então porque puxa o fardo para si mesmo o tempo todo?

— O que?

De repente, ela abre a guarda e agarra meu braço, me jogando no chão com um movimento de judô. Solto um grito de dor e aperto o rosto, as dores percorrendo meu corpo como ondas de calor.

— Você acha que pode poupar ela e a si mesmo da dor, mas esse não é o caminho. Não só isso. — Nymph solta meu braço e se afasta. — Se dependesse de você, não gostaria que ninguém se machucasse. Percebi isso todos esses dias, quando assumiu várias vezes o corpo do seu persona.

— Para... de falar merda — tusso, as palavras sufocadas pela dor.

— Como eu poderia estar errada, man? — Uma sombra paira sobre seus olhos felinos enquanto ela me encara. — Está confuso porque não consegue decidir se seu inimigo é mal ou não?

Meus pensamentos freiam de repente. O mundo ao redor congela e só consigo me concentrar em Nymph agora.

— O que você... acabou de falar?

— Eu ouvi sobre seu amigo — revela ela, a voz em ritmo melancólico. — Não sei como foi até agora, mas são raros os casos em que o vilão é bem definido em uma luta. Existe quem é mais forte ou mais fraco, quem é a presa ou o caçador. Mas a intenção entre eles é quase impossível julgar. Ou você acha que se tiver qualquer motivo para considerar aquele que você quer salvar mal, vai conseguir lutar sem hesitar?

Me mantenho em silêncio, ainda sentado no chão. Nymph estreita os olhos mais uma vez e ordena:

— De pé!

Tomo um leve susto, mas obedeço. Ou tento. Estou com tanta dor que nem mesmo sei se vou conseguir voltar para o condomínio dela depois de hoje.

Ergo os braços e ela avança mais uma vez.

Seus socos são como canhões avassaladores contra mim. Só posso me defender da melhor forma que consigo agora.

— Você tem medo de se ferir, ferir a Sashi ou seu amigo.

Mais uma sequência de três socos e um chute nas costelas. Solto uma golfada de saliva, quase caindo de novo, mas me mantenho de pé por um milagre.

— Tem medo de ser o vilão da história.

— Não... eu... eu só...

Ela salta e dá uma voadora, me levando á beijar o chão de novo. Não sei se aguentaria continuar nesse ritmo.

— É a mesma coisa com seu grupinho, mesmo que só conheça eles a pouco tempo. Sente que confia neles e eles em você. — Nymph suspira, balançando os punhos. — No fundo você quer fazer tudo sozinho. Não suporta a ideia de eles também ficarem em perigo ou se ferirem por sua causa.

— Não... não é isso! É natural que você... queira o bem daqueles que está do seu... lado — balbucio, sem conseguir levantar.

— Não, não é verdade. — Ela salta e cai sentada em cima de mim. Cuspo mais um filete de saliva, o estômago fervendo. Aquela menina é como um peso de 200 quilos!

Sinto que morrerei esmagado.

— Pode inventar a desculpa que quiser, mas não consegue vê-los da forma que são. Não consegue suportar a ideia de vê-los como seus iguais. Você... aquele com um dom único e especial, assolado por um destino fatídico e com um grande propósito em mãos... quanta besteira!

— ...?!

Ela agarra meu pescoço com força. O ar começa a faltar e a força dos braços e do corpo é drenada de mim. Não... consigo... respirar.

— Gurp! Cof, cofh!

— Não pense que um mirradinho como você, mesmo tendo tido o reconhecimento do Magic, vai conseguir fazer tudo sozinho. Acha que vai poupá-los da dor enquanto você carrega seus fardos por conta própria? — Ela franze o cenho. — Deveria retribuir melhor a confiança que a Sashi e os outros depositam em você.

— Gof! Eu... não...! Arg

E ela solta meu pescoço e aproxima seu rosto perigosamente do meu. Seus olhos ferais se fixam aos meus com intensidade e brilho. Naquele momento, tanto Nymph como toda aquela situação são indecifráveis para mim. Até mesmo a dor excruciante que estou sentindo em todos os lugares é um mero detalhe.

— Você... acha mesmo que quem teve a coragem de dar o primeiro passo vai conseguir se manter ileso para sempre? — Ela faz uma pausa, esperando uma resposta que não viria. Então, prossegue: — Não! Machuque os outros. Machuque a si mesmo. Chafurde na lama, mas continue a avançar! Não se limite por causa desses detalhes! É assim que um pupilo do Executivo mais forte da Mandala deve se portar!

— Nymph...

Não tenho uma resposta para nada daquilo além do silêncio. Me sinto exposto como um nervo. Nu. A única coisa que consigo fazer e olhar para o rosto dormente da Sashi, a metros de mim, com um doloroso aperto fantasma no peito.

Como posso ser tão criança?

Nymph se levanta, ficando ao meu lado. Me obrigo a virar a cabeça lentamente para ela. Agora estou em meu estado mais lamentável; estatelado como um pano de chão, totalmente derrotado, não tenho mais forças para mover sequer um dedo.

E então, a menina gato sorri de orelha a orelha e levanta um polegar positivo.

— Ah, e meus parabéns! Você passou no teste.

Minhas sobrancelhas se arquearam e foi impossível conter a confusão e o espanto.

— Quê... eu... passei?

— Você sobreviveu contra mim por um minuto. Mais de um minuto, na verdade.

— Mas..., mas...

Ela levanta um indicador sobre os lábios com o olhar confidente.

— Não fale nada. Considere isso como um presente dele...

Ela expira profundamente, observando minha persona desacordada, como uma autêntica humana, e então conclui:

— ... De um sigma para outro.  



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