Volume 2

Capítulo 34: Meu boneco de lata... II

                             

Um... coração?!

O coração do Rei de Latão? É um objeto de metal no formato de coração, com um reloginho no centro, pernas e braços, e uma corrente partida no topo. Aquilo não tem olhos ou qualquer outra coisa além de uma boca que serve para cantar a música.

Levanto a cabeça e me surpreendo com algo que ainda não tinha visto: a portinha no peito do persona está levemente aberta, como uma caldeira recém-aberta. Lá dentro, uma corrente arrebentada balança.

Essa coisa... veio de dentro dele? Então...?

— Acho que essa história está bem próxima de acabar, não é? — O Rei de Latão diz, andando até mim. — Mas ainda há muito o que sentir, então não percamos tempo.

Ele corre até mim e me ameaça de um chute, mas Sashi desaparece lá atrás e se coloca entre mim e ele, bloqueando o chute com a katana. Os dois passam algum tempo disputando força, faíscas brotando do roçar entre os metais.

Algumas partes da Sashi estão translúcidas e isso é um claro aviso de que o último ataque foi terrível tanto para ela quanto para mim. Mais ataques como aquele seriam desastrosos.

— Sashi!

— Calebe — Sashi diz, ofegante. — Vai atrás do coração dele que eu cuido do latinha.

— Ah? Curioso. Está tão confiante ou desesperado que está até delirando. Como exatamente sua manifestação consciente irá conseguir capturar uma parte do meu persona?

— Ah, você não sabe nada sobre mim, Reizinho. — Ignoro a tontura, balançando a cabeça para forçar os sentidos a cooperarem e corro na direção do coração dele. — Deixo ele pra você, Sashi!

O Rei de Latão me olha com certa curiosidade. Mas Sashi força ele para trás, girando a katana em um ataque giratório com as chamas. O persona enlatado se defende e agora contra-ataca com chutes e socos mais rápidos.

Enquanto sinto os tremores de Sashi trocando golpes com o corpo principal, meu foco é o coração. Aquela coisinha minúscula, do tamanho de um relógio despertador, ao me ver começa a correr em zigue-zague, pelo canto das paredes como se estivesse desorientado.

Será que ele ao menos sabe para onde está indo? Talvez ele esteja controlando essa coisa também.

— Que foi, Calebe? Você não disse que ia me pegar? ♪

— E vou, seu merdinha!

Ele escapa de uma das minhas tentativas e saltita para se livrar de outra. Ele é muito ágil e eu ainda estou meio tonto e fraco por causa do último impacto na barriga. Nem sei como ainda estou conseguindo correr.

Merda!

— Você me pega! Ui! Você não me pega! Muito lento! Muito lento! ♪

— Filho da... urf! Urf! Droga!

— Se você não me pegar eu vou me sentir tão animado que vou querer cantar — Ele para a alguns metros de mim, saltitando. Os ponteiros do relógio no centro do seu coração se mexem até alcançarem os exatos 18:30. — Meu boneco de lata bateu com o peito no chão! ♪

Droga, droga, droga, droga! Eu tenho que me defender! O pensamento instintivo é fechar os braços em uma posição defensiva.

Sashi escuta de longe e faz o mesmo, mas o ataque potente no nosso tórax, amassando nossos pulmões, nos joga para longe. Os pulmões ardem tanto que mal consigo respirar. Tusso e pigarreio na tentativa desesperada de buscar algum ar, mas tudo dói tanto que mal consigo...

Sa... Shi!

— Levou mais de quatro horas para fazer a... ♪

TUMP! TLICK!

—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Equinócio: Divisor Horizonte Primaveril!

Operação...?!

Quando parece que ela vai cair após o ataque esmagador sobre nosso peito, Sashi se mantém de pé, fica em guarda e consegue executar sua técnica antes da segunda parte da música.

Ela saca a katana e a arma lampeja no ar com um corte de fogo luminoso intenso, criando uma onda de impacto quentíssima. O corte foi invisível, sendo interpretado pelos olhos mundanos — como os meus — apenas como uma fissura violeta luminosa no meio do espaço, que aparece e some em questão de segundos.

E logo após, vem o impacto. Uma onda de pressão varreu ar e pedras atrás do Rei de Latão, o jogando a metros longe, até ele parar na parede. A pressão é tão grande que me faz rolar vários metros até parar no paredão, sentindo algo agredir meu pescoço com um puxão violento e então arrebentando de vez.

— Uuurgh! Aaargh!

A plateia enlouquece.

— Incrível! Que poder destrutivo! — A Executiva princesinha exclama, os olhos brilhantes.

— Impressionante! — O mordomo esbugalha os olhos. — Mas...

— Que reviravolta inusitada — diz o Executivo reizinho.

Nádia não diz nada, apenas sorrindo com os braços cruzados, soltando talvez um suspiro de alívio.

— Arf, arf, argh... — Sashi se apoia na sua katana, mas se mantém de pé. — Acabou?

Enquanto isso, o Rei de Latão está sentado de costas para a parede, seu corpo amassado e partido ao meio desaparecendo aos poucos. Um tremor passou por mim quando me dei conta do que a Sashi fez... do que nós fizemos.

Será que... matamos o maluco?! Ele não tá se mexendo e vai desaparecer.

Toco meu pescoço institivamente com o ardor na lateral dele e sinto algo faltando, que até agora não tinha me dado conta. O colar da mamãe! Essa não! Cadê, cadê?! Onde está?! Onde foi parar?! Merda! Ela vai comer meu couro com farofa!

E o pingente fujão está a poucos metros de onde caí, brilhando em uma cor rosa e única. Eu a pego do chão e a observo atentamente para ver se não quebrou ou rachou em algum lugar, rezando para que minha mãe não me escalpelasse quando visse, e só por isso eu noto aquele... “brilho” único que a pedrinha emana.

Essa coisa sempre brilhou assim?, me pergunto enquanto admiro as cores rodopiantes e quase místicas da pedra, indo e voltando e cores rosa, violeta e azul celeste. Que negócio... bizarro.

De repente dois olhos surgem, um com um uma bola e outro com um “X” no lugar da pupila, parecendo serem feitos de puro neon, debaixo de nós e do persona caído prestes a desaparecer. Uma luz forte nos cega por um instante e o mundo desaparece em um piscar de olhos.

Quê...?!

E então, de repente, estamos em um corredor. Meu corpo, diferente de antes, está sem dor e completamente inteiro. Sashi a mesma coisa e ela abre e fecha os punhos, os encarando com surpresa no olhar.

— O que aconteceu? — pergunta ela. — Me sinto curada e forte de novo.

— Se eu for parar para tentar entender tudo o que acontece com a gente nesse lugar, vou acabar doido — respondo, com olhos marejados.

— Uma luta interessante, Musashi! — Uma voz nos assusta, vindo de trás.

Yatsufusa está de pé a poucos metros de nós, a nodachi quase em ponto de saque. Ele está usando sua máscara de raposa e seu olhar está ameaçador como sempre. O que esse doido está querendo fazer naquele lugar?

— Ah, velho. De novo isso?

— A sua luta com aquele homem de metal — Ele saca lentamente a nodachi, brandindo-a para nós. — Me deixou de sangue quente!

— Só ir tomar um banho que esfria — respondo, sarcasticamente. — Acabamos de quase morrer e não quero passar por isso de...

— Em guarda, Musashi!

— ...!

— ...?

Embainhada. A nodachi de Yatsufusa está embainhada e ele volta andando de costas para onde estava. Seu olhar está estranho: seus olhos estão vítreos e ele está como se estivesse hipnotizado, ou em algum tipo de letargia repentina.

Que merda foi essa?

— O que deu nele? Será que ele caiu em algum efeito desse lugar? — Sashi questiona.

— Pode até ser, mas... onde exatamente é esse lugar? — Essa é a única pergunta que importava.

— A arquibancada. — Outra voz familiar vem até nós pelo largo da passarela.

Sashi recua até mim e fica em posição combativa, a mão pousada sobre a empunhadura da katana. Quem vem até nós é o Rei de Latão, também completamente recuperado. Sem um arranhão, um amassado, nada!

— Você!

— Veio terminar a luta? — Sashi pergunta.

— Quero parabeniza-los pela vitória — diz ele, com tristeza conformada. — Eu perdi para o seu persona, Calebe. Perdi para você. Seu ataque foi muito poderoso e meu deu muito mais danos do que eu conseguiria recuperar.

Sashi alivia mais o corpo. Quando percebo que ele não tem intenção de nos ameaçar é que paro para prestar atenção onde estávamos. E de fato, olhando melhor, através de uma janela flutuante desconexa da parede, consigo ter a visão panorâmica da arena que só seria possível para uma pessoa da arquibancada.

A arquibancada! Estamos mesmo na arquibancada, ficou impressionado como aquele lugar parece com um corredor do que uma arquibancada de estádio. E nada daquilo podia ser visto pelo lado de fora.

— Calebe — O Rei de Latão anda até o nosso lado, observando os próximos nomes serem sorteados no painel. — Agora que estamos aqui, tenho que dizer que nunca senti um poder igual ao seu em todo o tempo que descobri sobre esse poder.

Sashi ri, lisonjeada. Enquanto a mim, apenas fico em silêncio, observando atentamente o painel.

— Você também tem uma habilidade bem peculiar — Sashi retruca. — Se não tivéssemos descoberto sobre como ela funciona, provavelmente teríamos perdido.

O homem de lata sorri levemente com os lábios metálicos.

— Mentirosa. Acho que nunca tive uma chance contra você para começar — murmura ele.

— E agora você tá falando normal por quê?

— Ué... como assim?

— Por que tu tava atuando? Quero dizer, falando parecendo um personagem de fábula? Já estava para te socar eu mesmo ao invés da Sashi!

— Ah?! — O Rei de Latão geme.

— Ah, você ia ficar com toda a diversão mesmo, seu chato? — Sashi reclama com as sobrancelhas franzidas.

— Não, não. Só ia dar um soco ou dois — digo, dando de ombros. — Você podia ficar com o resto. Se bem que cortar metal não é bem o que eu gostaria de ver você fazendo com essa katana.

— Minha arma corta qualquer coisa e permanece afiada como sempre! — Sashi balança sua arma com maestria invejável. E invejavelmente exibida. — Não precisa se preocupar.

— Mas não conseguiu nem arranhar a superfície de uma careca. — Solto a fala com ar de deboche.

Sashi retorce o rosto em uma expressão cômica de raiva e bate o pé. Seguro uma risada com a mão na boca.

— Aquele cara não é normal, ora! Você pode me culpar por isso?!

— Não, mas posso culpar quem encera a careca dele — brinco. — O cara fez um serviço tão bem feito que parece blindada!

— Ahahahaha!

— Mwhahahaha! — Eu e Sashi paramos a conversa e olhamos para o Rei de Latão se acabando de rir do nosso lado. — Desculpe, desculpe. É que eu não consegui aguentar.

— Eu sei. O Calebe tem um gosto tão ruim para piadas que, de tão ruins, se tornam boas.

— Ei!

— Na verdade, estou impressionado como consegue conversar consigo mesmo de forma tão natural e não parece insano. E depois diz que eu que estou atuando!

Eu e Sashi nos entreolhamos enquanto ele ri.

— Acho que aquele seu último ataque acertou a cabeça dele com força, não acha não, Sashi?

— Mas eu mirei no centro do peito dele, onde ficava o coração.

— Tem certeza? Eu...

— Certo. Já pode parar com isso, Calebe.

— O quê, maluco? A Sashi é minha persona, mas ela tem sua própria personalidade e consciência.

— Mwahahaha... muito bom, muito bom. Agora tá dizendo que por acaso o seu persona é autossuficiente? Não acha que só o fato de estarmos em uma realidade paralela dessa, dentro de um prédio abandonado no centro de São Paulo, não já é insanidade o suficiente não?

— Na verdade, sim. A Sashi é autossuficiente.

— E em um ato de autossuficiência, eu digo que você é estranho pra cacete — diz Sashi com um olhar de desdém.

— Mas isso é impossível! Quer dizer, você pode apenas estar separado seu corpo do persona e...

— Na verdade, nesse exato momento, estou bem acordado.

— ...

     

As demais lutas foram até que rápidas e, quando me dei conta, o evento já tinha acabado. Yatsufusa venceu facilmente seu oponente, um homem peixe com âncora que foi feito de sushi diante de sua nodachi.

Houve outros ainda que me chamaram atenção: Uma menina vestida de empregada, de cabelos verdes e tapa-olho, armada com uma espada e uma foice conectadas por uma corrente. Ela também terminou sua luta bem rapidamente e sua habilidade, mesmo tendo sido vista por nós, permanecia um mistério, tanto na aplicação como no conceito.

Outro que se destacou foi um rapaz de pele escura e dreads maneiros que possuía uma habilidade bem impressionante de luta usando magnetismo e boxe. Suas manoplas gigantescas, capazes de segurar um poste como se fosse um taco, permitiam a ele um combate agressivo com atração e eletricidade. Paguei pau mesmo.

Quando o evento acabou, todos fomos dispensados e voltei para frente do prédio junto com a Sashi. Curiosamente, olhei o relógio e não tinha se passado nem mesmo um minuto desde que entrei naquela realidade psicodélica e louca criada por alguém. Era como se o tempo tivesse parado.

Chego em casa só o pó da rabiola, todo ferrado. Mesmo que aquele lugar tenha curado meus machucados e os de Sashi, sinto como se um caminhão tanque de seis eixos tivesse passado por mim e depois dado ré.

Preciso dormir.

BLAAAM!! BOOM!

A sala de casa treme violentamente com a batalha que acontece lá fora. Sashi está lidando com alguns pesadelos tamanho família na avenida em frente de casa, criando oscilações de energia e tremores sutis que só alguém com uma percepção bem treinada poderia detectar. No meu caso, eu já estou tão acostumado com tudo aquilo que nem consigo ter energia ou saco o bastante para me importar.

Ao deitar, fico olhando para o teto, matutando sobre o que aconteceu antes da minha saída mais cedo. Após os últimos informes do menino três olhos — esse foi o nome que dei para ele —, um dos Executivos veio até mim com umas perguntas estranhas.

Perguntas sobre o colar da mamãe...

 

[...]

— Calebe? — Uma voz tão bela quanto contida me chamou de trás.

Me virei e encontrei um mordomo usando um finíssimo terno preto com detalhes azuis, pele branca e impecável cabelo arrumado e penteado. Seus olhos estreitos me analisavam através das lentes quadradas daqueles óculos. Sashi levantou uma sobrancelha, desconfiada.

— Pois não?

— Prazer. Sou o Executivo do Núcleo Centro-Oeste da Mandala, Valkenstein Verona.

Que nome maneiro! Ele deve ser um daqueles mordomos pikas e insanos que vejo nos animes!

— Ah, prazer. Sou...

— Sei quem você é — interrompeu com a mão erguida. — Também sei muito bem do seu persona único.

Nossa, já ganhei fama pelo Brasil afora e nem sabia?, imaginei um tanto surpreso e preocupado.

— E o que você quer?

— Vi que você carrega um acessório um tanto... incomum. Posso dar uma olhada nele? — perguntou o mordomo, estendendo a mão.

— Acessório?

— Acho que ele está falando do colar da sua mãe — Sashi sussurrou para mim.

— Ah, sim. Tudo bem. — Tirei o colar arrebentado do bolso e entreguei a ele.

Por alguma razão, a qual na hora não pensei sobre, Valkenstein conseguiu segurar o colar da mamãe nas mãos, mesmo ele sendo um item do mundo real nas mãos de um persona. Estranhei na hora, mas então dei de ombros, focando nas reações dele.

Ele segurou o colar suspenso em suas mãos, os olhos grudados na pedrinha do pingente que agora estava completamente preta; sem brilho rosa ou auroras passando por ele, nada. Era uma lasca de turmalina comum.

Suas sobrancelhas parecem ondas salgadas do mar oscilando ao analisar a pedrinha inerte.

— Ganhou esse colar de quem, garoto? — perguntou enfim.

— Da minha mãe. Herança de família — respondi, dando de ombros.

— Da sua mãe?

— Sim.

— E alguma vez já viu algo de estranho nesse pingente? Brilho, mudar de forma ou algo assim?

— Meu senhor, isso é apenas um colar normal que eu uso direto. Se tivesse algo nele como essas coisas, eu já teria reparado — menti. Na verdade, não menti totalmente.

Até minha luta contra o Rei de Latão, eu nunca havia reparado que ele poderia brilhar, mas omiti essa pequena informação por precaução.

Mais uma ou duas olhadas e ele me devolveu o colar, ainda visivelmente intrigado. Pelo visto, somente eu havia notado aquilo e meu mole colou.

— Se perceber qualquer coisa de anormal na pedra, nos avise de imediato — ordenou ele.

E então ele se foi.

[...]

 

Cara... parece que quanto mais eu penso que sei, mais eu me dou conta de que menos sei. As coisas simples parecem se complicar de uma hora para outra. Uma simples prova de interpretação de texto se torna um complexo teste de raciocínio matemático que nem os esquemas mais loucos do Bernardo conseguiriam lidar.

Bernado... Bernardo...

Paro para pensar... como será que estão os outros? Estão bem? Será que o Bernardo e a mamãe estão pensando em mim? Será que estão com raiva por eu simplesmente ter ido embora?

Bem... não é hora para pensar nisso. Vim para São Paulo com uma missão e, após muito tempo com o pensamento de que não estava progredindo em nada nessa missão e só perdendo meu tempo, finalmente sinto que dei um largo passo em direção a ele. Sashi sorri sozinha do meu lado, talvez sentindo essa mesma sensação.

 Claro, nós compartilhamos isso.

Enrico... não sei como ainda, nem quando, mas eu vou trazer seu juízo de volta! 

 



Comentários