Volume 1

Capítulo 7: Aqueles que governam juntos entre sonhos III

 

Coliseu das Feras?! — Minha voz e a de Sashi estão sincronizadas.

O coliseu, em um passe de mágica, muda toda a sua estrutura e se torna mais aberto e largo nas laterais. O corrimão de ferro desaparece do centro, deixando somente os montes de areia.

— Essa não! O que será que vem agora? — pergunto, apreensivo.

— Calebe! Olha lá! — Sashi aponta para um portão que, obviamente, não estava lá à poucos segundos atrás.

O portão de ferro gradeado se abre lentamente com um som pesado de ferro aumentando a tensão na arena. Os pesadelos vestidos de armadura e trajes de tecido que lembravam pano de chão, se apressam para escancarar a passagem e sair de lá o mais rápido possível. Eles estão... com medo?

Nesse meio tempo, começo a ouvir algo que faz meu coração palpitar. São passos pesados e que fazem o solo vibrar... eles estão vindo na nossa direção e indicam que algo enorme se movia pela escuridão do túnel.

— Sashi... acho melhor a gente...

Mas no meio da minha frase, um rugido estridente de uma fera assassina — que poderia ser tão um pitbull como um leão ao mesmo tempo — escapa do covil e se espalha pela arena. E depois... uma risada de bebê? Os passos aceleram, a pressão deles fazendo meu corpo sair alguns centímetros do chão com as batidas.

— ...!

— Rápido, rápido!! Abram isso! Abram... GHUOORRRGH!!

BRUUUM!!

Um ser imenso se ejeta do túnel muito rápido e empurra os portões com violência nos pesadelos que ainda estavam puxando, esmagando-os facilmente. Ele pousa na arena, levantando uma nuvem de areia, que se dispersa rapidamente com mais um rugido.

A visão aterradora do monstro me faz desabar no chão, sem força nas pernas trêmulas. Aquele monstro... É um prédio comparado aos outros! Com quatro patos dianteiras e traseiras, dois rabos uma dorsal que foi roubada de algum dinossauro e um cabeção montado sobre um pescoço longo... aquele monstro era, simplesmente, a pior aberração nascida da mente de algum desenvolvedor de jogos de RPG!!

— Não tá mais tão confiante agora né, ô pastel? — provoca Lindalva, lá de seu trono seguro aos risos esganiçados. — Mas acha que uma fera está à altura da diversão que planejei para esse dia?

— @#$♠☼*!!

— Saía, Matildis!

E para meu terror, me dou conta que aquela aberração, maior que a minha casa, está rosnando para nós e está até de coleira! Outra coisa vem vindo na direção dos portões abertos.

Assim que ela sai, meu rosto enruga com a visão horripilante e escrota; por isso eu ouvi umas risadas de bebê como cover dos latidos naquela hora...

Por que a bebê gigantesca, Maltidis, surge do túnel quase saltitando, rindo e a segurar a coleira do seu “bichinho”.

Aquela coisa parece um bebê de brinquedo, só que com pelo menos uns 5 metros de altura. Ela usa um colarinho com gravata borboleta no pescoço, uma fralda e um coquinho loiro e solitário no topo da cabeça sem cabelos. A pele dela é cinzenta e os lábios daquela coisa são pretos, dando pra ver alguns de seus dentes pontudos.

Já seu cachorrinho é o paredão de carne que descrevi e começa a se agitar no meio da arena, implorando para ser solto da coleira. Engulo em seco até minha garganta doer.

— Mamãe. Posso brincar... com eles? — O bebê pergunta com uma voz grave e tenebrosa.

— Faça o que você quiser com eles.

— EBA! EBA! GYAHGYAHGYAH! VOU ME DIVERTIR MUITÃO! — Ela saltita e nos levanta no chão.

— Essa não! Eu estou sem minha espada! — Sashi vira e revira o rosto pra todos os lugares, procurando sua arma.

Aaah! É mesmo! A katana de Sashi se transformou na lança — ou nas lanças — que explodiram durante a justa, e sem sua espada, ela não tem como se proteger e nem me proteger.

Mas não temos muito tempo de pensar no que fazer, pois tanto a Matildis como o cachorrinho dela vem correndo para nos pegar com a maior cara psicótica. Começa o jogo de pega-pega entre nós, a plateia vibrando e gritando. Lindalva e Beni se divertem de sua cabine segura, no topo da arena.

Merda! O que eu faço? O que eu faço? Pensa Calebe, pensa! Os pulmões já fritam com o esforço que eu não estou acostumado a fazer e eu não consigo respirar ou pensar direito.

Eu tropeço em um passo falso e enfio a cara numa duna de areia, comendo pelo menos meio quilo no processo, ao passo que machuco minha cara com coisas pontudas misturadas.

São as lascas de madeira que sobrou da lança da justa.

Depois de limpar bem rápido a cara e cuspir o torrão de areia que comi, cato um pedaço maior, que se separou da lança, na mão.

— Calebe? O que você tá fazendo?! Vamos! — Sashi se esforça para me levantar, mas estou imerso em um pensamento.

Não... está mais para uma possibilidade. Aquela lasca de madeira na minha mão poderia ser a nossa arma. Sim, sonhos e imaginação são parecidos, mas diferentes em seus conceitos, sendo considerados por muitos estudiosos como espelhos um do outro.

A principal diferença entre os sonhos e a imaginação é que, a imaginação é uma construção consciente e voluntária da realidade, enquanto os sonhos são construções inconscientes e involuntárias da realidade. Mas, aparentemente, eu sou um caso à parte, onde tanto o consciente como o inconsciente agem em conjunto, criando esse poder estranho que não consigo explicar.

As palavras da própria Sashi ecoam na minha mente como um ar gelado em um dia quente de verão, após eu formar esse raciocínio de segundos:

 


Porque os sonhos são cheios de simbolismos. Por exemplo, até mesmo esse graveto inofensivo pode se tornar a mais afiada das espadas se assim o sonhador desejar.


 

— Sashi! Pegue! — Entrego a lasca de madeira a ela.

— Calebe, mas... o que é isso? O que você...?

— Aqui é sua katana! Não importa como isso se parece agora, mas essa é sua arma! Pegue e a empunhe contra eles!

— EU VOU PEGAR VOCÊEES! ♪ GYAHGYAHGYAH!

Mesmo sem entender, ela recebe o pedaço de madeira da minha mão. E eu acredito que aquilo é a espada dela. Esse pedacinho de madeira se tornará o que eu quiser que seja, pois está comigo... com a minha persona!

Posso estar no sonho de outras pessoas, mas a Sashi — e tudo que está com ela — faz parte do meu.

E assim acontece algo repentino. Um vórtice de fogo toma o centro da arena e se expande, afastando os dois pesadelos big giga.

— Hãaaaaaaa?!

E como calculei, aquela pequena lasquinha de madeira se torna o que eu quero que seja: uma katana extremamente afiada e poderosa!

Em questão de segundos, Sashi avança como um relâmpago; invisível, letal e imparável contra o cachorrão monstro de oito patas, cortando todas elas tão rápido que mal consigo ver quando foram cortadas.

Maltidis observa seu pet ir ao chão com uma nuvem de poeira, a plateia vibrando. Os olhos de Lindalva e Beni quase voam da cara em uma cena cômica.

— Como... como você fez isso?!

—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Solstício: Pétalas do Deus do Verão! 』

— SUA VACAAAAAAA!! — Maltidis foi pra cima da Sashi, mas ela já está pronta.

Ela empunha sua espada, essa a transbordar com suas chamas violetas, bem colada ao corpo e avança na direção da mão parruda do bebê monstro. Uma série de cortes rápidos são executados tão rápido que, em poucos segundos, transformam não só a mão, mas todo o braço da Matildis em tiras.

— YAAAAAAAAAAAAHHH!! COMOOOOOO!?

— Desapareça.

Mesmo no ar, Sashi se move em uma velocidade assustadora e balança o braço, decepa o pescoço da Matildis com um único corte e aterrissa do outro lado com a ternura de uma atleta olímpica. A cabeça da bebezona rola na areia, seu rosto descrente com o que acaba de acontecer.

Tão descrente quanto os dos próprios irmãos.

 

 

*****   *****

 

 

A plateia rasga a garganta em gritos e assobios. Todos estão alvoroçados com o show de destreza que Sashi acaba de proporcionar. Em questão de segundos, ela liquida dois pesadelos enormes com facilidade.

Lindalva se levanta bruscamente de seu assento, dando mais um soco na madeira da balaustrada, o rosto contorcido de ódio, e ordena em voz alta:

— VOCÊS! TODOS VOCÊS! PEGUEM ESSES DOIS! ESQUARTEJEM-OS! ESCALPELEM-OS! MATEM-OS! NÃO DEIXEM SOBRAR NADA!

Eita... a mulher perde a linha de vez. Até o céu ensolarado se nubla subitamente quando o humor dela muda.

— Droga... isso não é nada bom.

— Rápido! Atrás de mim, Calebe! — Sashi grita.

De um minuto a outro, todos da arena param de vibrar e viram zumbis enlouquecidos, descendo de qualquer jeito, uns por cima dos outros, lembrando uma cena qualquer de Guerra Mundial Z. Todos eles vindo nos pegar! Porra!

—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Solstício: Pétalas do Deus do Verão! 』

De novo ela usa aquele ataque que fez a Matildis virar carne moída e avança através do exército de pesadelos zumbificados, cortando e mutilando e dividindo e queimando. Um após o outro; sem parar, sem recuar, ela corta e corta e corta.

O alvo agora são os dois reizinhos nas arquibancadas acima. Um muro de pesadelos se monta entre nós e eles, se jogando em cima de Sashi como um enxame de abelhas protegendo a rainha de uma colmeia. No entanto, mesmo aquilo não parece dificultar a vida de Sashi.

Enquanto ela esmerilha a horda de pesadelos, consegue me puxar pelo braço como se eu fosse um boneco de pano que uma menininha carrega pra cima e pra baixo, me puxando e me conduzindo mureta acima. Isso força os dois irmãos a moverem suas bundas reais de seus assentos confortáveis.

— Droga! Você não para nunca!

Mais alguns lances de arquibancada até eles e pedaços flutuantes de terra começam a surgir — como em um joguinho de plataforma — para servir de escada para os dois. É quando me toco que todo o cenário montado antes agora não existe mais, sobrando apenas um ambiente caótico e sem nexo algum.

A arena e tudo o que existia lá embaixo desaparece. Apenas o vazio do espaço sobra até onde a visão alcança.

— Porra! Sashi, não me deixa cair não, pelo amor de... Aaaaaaah!

— ...?

Mais daqueles frangos-bombas-voadores nos cercam, formando um enxame que voa em círculos ao redor da nossa plataforma. Olhando pra cima, consigo vislumbrar uma parcela do conteúdo de uma mente esquizofrênica; um vórtice de luz aberto no espaço negro estrelado, vomitando objetos aleatórios do nosso mundo como prédios, carros, placas, pedaços de terra, frangos voadores com charutos e gravatas.

Tem até mesmo uma vaca pastando em uma ilha isolada no meio do espaço. Pura lombra!

— Calebe! Está vendo? — Sashi aponta com a lâmina da katana.

Tento esquecer um pouco o fato de que estamos prestes a ser explodidos por uma legião de frangos voadores e aperto os olhos para tentar focar onde ela está mirando.

— Uma... caixa?

— Sim. O Elo Onírico começa e termina naquela caixa — explica a samurai. — Se eu conseguir atingi-la, dissipamos esse Campo Lúdico.

— Tá, mas... COMO A GENTE CHEGA LÁ, CACETE?!

— Ohohohohoho! Até que foi divertido, senhores, mas o show acaba para vocês agora!

— Estão completamente cercados e não tem como chegarem até nós! — Beni completa a fala do projeto de princesinha que é sua irmã. — Querem dizer algo antes de voarem pelos ares?

— Na verdade, eu tenho sim.

— ...?

— Sashi... — Toco no ombro dela. — Faça o que sabe fazer de melhor.

Ela sorri. Os dois irmãos azedam a expressão.

— Com prazer.

— EXPLODAM ESSES DOIS! AGORA, AGORAAAA!!

Sashi monta sua postura com as pernas flexionadas, uma mão na empunhadura e outra segurando a bainha, pulando na direção dos irmãos. Como kamikazes, os frangos mergulham contra ela, tentando explodi-la no ar, mas o que acontece é que a Sashi os usa como trampolins para encurtar a distância entre eles.

De frango em frango, em meio a piruetas e giros, Sashi supera o enxame de carne magra, chegando facilmente até os dois. Com pelo menos 7 metros de distância entre eles e a samurai, Sashi encolhe o corpo, o braço que empunha a espada pronto para sacá-la imediatamente.

— Há! Ainda não é o suficiente! Com essa distância não tem como...

—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Equinócio...

— Eeeh...?! — Agora é a vez dos dois irmãos balbuciarem juntos, com rostos assustados.

—...Divisor Horizonte Primaveril! 』

O tilintar da lâmina é ouvido e, em apenas um movimento, Sashi saca, golpeia e guarda a katana extremamente rápido, só sendo possível ver algumas brasas violetas chamuscarem de leve na altura do guarda-mão.

Uma fração de milissegundos. Nem mesmo vi o borrão prateado da lâmina. Consequentemente, momentos depois, a caixa que eu vejo Lindalva segurando nas mãos com tanto cuidado é fatiada em dois... assim como a realidade atrás deles.

 

 

*****   *****

 

 

No dia seguinte eu chego na sala de aula muito bem. Dormido como um recém-nascido. O corpo está bem leve e Sashi vem logo atrás, como uma escolta sempre alerta. Ao entrar na sala para esperar o professor, vejo que já tem muita gente... inclusive, os irmãos Lindalva e Beni já estão em seus lugares de sempre.

Ao me sentar, ouso um olhar para eles. Ao perceber que meu olhar estava fixo neles, Beni vira o rosto rapidamente para a própria cadeira e Linda — que não está mais tão “linda” agora — simula um papo com a garota da cadeira à frente.

Os olhos dos dois estão marcados com olheiras profundas e tanto os cabelos como as roupas desajeitadas são sinais evidentes de que certas pessoas não dormiram bem.

— Aaah! Hoje não está um dia lindo, Sashi?

— Está mesmo, Calebe. — Sashi concorda com um sorriso brilhante e voz comedida.

Bernardo senta na cadeira ao lado, instantes depois, olhando para os dois irmãos com uma careta azeda no rosto.

— Eu hein? Esses dois aí foram atropelados?

Me esforço para segurar um riso.

— Quem sabe, quem sabe...

Sem mais incidentes, o dia segue normal e os dois irmãos, cientes do que tinha acontecido no sonho deles, param de encher o meu saco. O melhor cenário possível.

Mas como eu não tenho um dia sequer de sossego desde que ingressei na Universidade Morro Branco, o dia termina com mais uma surpresa me aguardando na entrada do campus.

Uma visita familiar. Ou melhor... de um familiar.



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