Volume 1

Capítulo 6: Aqueles que governam juntos entre sonhos II

 

Não sei o que é mais prazeroso: ver a cara de tacho daqueles esnobes de merda ao perceberem que o truquezinho deles não funciona com a gente ou a minha frase de efeito parando o ambiente.

Aaah, sim. Isso. Talvez uma mistura dos dois seja o ideal. Isso mesmo!

Sashi sorri, desconcertada, para mim e balança a katana, as chamas violeta se espalhando como se pudessem derreter toda aquela realidade.

Aquele sorriso... Enquanto ela sorrisse para mim daquele jeito eu me sentiria seguro... com tesão talvez, mas principalmente, seguro.

— Muito bem. Sejam bons meninos e vamos acordar pra vida, né? — Bato os punhos cerrados.

Pff... MWAHAHAHAHAHAHAHAHA!

— O que foi? Comeram carne de palhaço?

— Como esse plebeu é divertido, meu rei! Muito piegas!

— Devo concordar, minha rainha. Hahaha! Deveras piegas!

— DÁ PRA PARAR DE ME IGNORAR, PORRA! E PAREM DE ME CHAMAR DE PIEGAS!! PARECEM A MINHA AVÓ FALANDO! — Bato o pé no chão várias vezes.

Sashi ri, sem saber como deveria reagir e depois se faz de doida. Nisso ela é igual a mim.

— Muito bem, plebeu! Você conseguiu chamar nossa atenção. Mas será capaz de mostrar seu valor para seus deuses?

— Cortem esses papos de “deuses”! Quando acordarem, voltarão a ser os dois zé ruelas esnobes do curso de Letras!!

— Calebe! Cuidado!! — Sashi grita e me empurra para trás dela.

Na fração de segundos entre nossas falas, eu só consigo ver o frango falante, que tinha nos levado até lá, inchar igual a um balão, cada vez mais como... como se fosse explodir!

O frango é uma bomba! Droga! Assim, o barulho ensurdecedor preenche meus ouvidos e o clarão da bola de fogo da explosão pisca. O brilho é tão ou mais claro que o sol falso daquele sonho.

Uma bolha de calor se forma bem perto de onde eu estava e se expande como um ciclone de temperatura altíssima, queimando várias partes do meu corpo, mas apenas superficialmente.

A Sashi... ela absorveu a maior parte da explosão! E eu sei disso porque sinto na própria pele uma quentura infernal, a sensação de minha carne derretendo, mas eu não estou ferido. Que sensação horrível!

— Merda! Sashi! — Porra! Eu não consigo ver nada através daquela fumaça e poeira! — Sashi! Sashi, responde!

— Aqui. — A voz de Sashi surge de algum lugar. — Estou aqui.

Aperto os olhos e consigo enxergar ela lá na frente, com as pernas curvadas em uma postura defensiva, a katana erguida sobre o rosto dela. Tanto a armadura como a espada estão com chamuscados feios.

— Você tá bem, Sashi?

— Tô ótima, Calebe — diz, sorrindo.

Ela tá se fazendo de durona, mas dá pra ver que o bicho tá pegando. Ela certamente está sentindo os efeitos do impacto. Assim como eu...

CLAP, CLAP, CLAP!

— Nossa, nossa, nossa! Isso foi inesperado! Não o que imaginei, mas ainda assim, inesperado! — Lindalva e Beni aplaudem. com desdém, lá de cima.

— Creio que esses dois plebeus serão uma atração e tanto para nós — diz Beni ajeitando seu colarinho frufru.

Para a surpresa deles, Sashi brande a espada vigorosamente contra eles e ainda está inteira, mesmo depois de uma explosão como aquelas. Até eu mesmo estou boquiaberto com a resistência dela, além de sua força.

Mas... a saia dela está perigosamente rasgada e queimada em várias partes e eu não posso me dar ao luxo de me distrair com calcinhas agora. Tem dois irmãos lunáticos e perigosos na nossa frente.

— Certo, podemos ir para a primeira atração? — Lindalva bate duas palminhas e o cenário muda completamente do nada.

Em um piscar de olhos, não estamos mais do lado de fora do castelo em meio a uma planície, mas no centro de um coliseu lotado. A multidão vibra animada, com palmas e gritos e assobios inflamados, mas eles não são lá muito normais não. Nada normais.

Seus corpos são tanto de pessoas misturados com animais, como objetos, formas... enfim, fileiras e mais fileiras de esquisitices. Só marmotas.

O chão passa de uma vastidão de capins floridos a um chão arenoso com alguns ossos espalhados aqui e acolá em questão de segundos. O sol ali parece ainda mais quente e insuportável que antes.

— Caralho! Que foi isso agora?

— Eles... mudaram o espaço? Mas como? — Sashi está tão embasbacada quanto eu. — Um agente não deveria ter controle sobre um Campo Lúdico assim. A não ser que...

— Que...?!

— Agora... — a voz de Beni estrondou de uma cabine separada entre as arquibancadas do coliseu, acima de todos. — Queridos súditos, eis que apresentamos o primeiro desafio: um duelo de justa!

— Quê?! — Eu e Sashi dizemos em uníssono.

 

 

*****   *****

 

 

O local já está montado. Uma barra de ferro separa as duas pistas e uma fileira de coisas que lembram pessoas, mas na verdade são monstros deformados com olhos e bocas e asas e saliências em lugares errados, espera do outro lado em uma fileira organizada.

Do outro lado, nós. Eu mantive minha roupa normal, mas a armadura samurai de Sashi é substituída por uma armadura de placas medieval. Sua katana se transforma em uma lança e escudo. Um cavalo brota ao nosso lado com um PUFF!

— Certo... isso tá ficando biza...

Outro “PUFF!” acontece, dessa vez no meu corpo. Minha roupa vira um traje medieval capenga de camponês depois que o pozinho mágico sai.

— Por que eu tenho que ser o escudeiro, ô porcaria?!

— Calebe — Sashi se aproxima para cochichar no meu ouvido. — Aqueles cavaleiros do outro lado são pesadelos.

— Tá, agora conta uma nova vai... — respondo enquanto quase arranco a pele de tanto coçar.

— Eles são pesadelos, mas não parecem estar atuando de forma direta nesse Campo Lúdico. Tem alguma coisa muito errada aqui.

— Tem sim! Tipo essa roupinha aqui! Essa coisa tá pinicando pra caralho! Ô vocês aí! Devolvam as minhas roupas, porra!

Mesmo indignado com aquele lance proposital para me irritar, eu entendo perfeitamente o que Sashi quer me alertar; dessa vez, diferente dos outros incidentes, aquele espaço não foi criado por um pesadelo querendo fazer graça no mundo real e tudo indica isso.

É um espaço conveniente criado por aqueles dois! Eles estão no controle da budega toda.

— Muito bem. Cavaleiros ao centro da arena para o primeiro duelo! — ordena Lindalva com gestos de comando.

O primeiro cavaleiro a enfrentar Sashi tem uma armadura preta com detalhes de cobre aqui e ali. Sua cabeça tem o formato de uma estrela e, em cada ponta dela, um olho. Algo que deveria ser uma boca se abre e fecha no centro da estrela, soltando ganidos arrepiantes.

O cavalo é tão bizarro quanto o cavaleiro, parecendo ser feito de gelatina. Faz sentido; os irmãos querem dar uma vantagem para os seus cavaleiros. Já vi em alguns filmes medievais que alguns cavaleiros, em vez de mirar nos montadores, buscavam a montaria.

Não só a montaria poderia tomar a forma que quisesse como também se moveria mais rápido com aquelas patas grossas de... espera, aquilo são patas de guepardo?!

— Cuidado, Sashi.

Ela manda um “joinha” para mim, trotando em seu cavalo rumo à pista. O outro já aguarda com a lança pronta. Algo na minha língua e estômago ficam amargos.

— Pode deixar! ♥

— Preparados?! — Lindalva se ergue de braços abertos. A multidão de pesadelos vai ao delírio. — Se matem. ♥

Como uma resposta automática, os dois cavalos disparam e se aproximam velozmente, o do cavaleiro pesadelo mais rapidamente que o de Sashi. A lança dos dois estão em riste, prontas para se afundarem no peito um do outro.

No encontro brutal entre os dois, as duas armas se entravam e quebram violentamente, enquanto os dois cavalos passam reto um do outro. A lança de Sashi explode em várias lascas de madeira assim como a de seu adversário.

O pior de tudo é que eu sinto o sopapo da batida tanto quanto ela.

Sashi vem na minha direção de uma hora para outra, como se... droga! Eu fui mudado de posição?! Em um instante estou assistindo de longe a justa e em outro, sou eu quem vai dar a nova arma a ela para que o duelo continue.

Meu estômago se revira em 180° e começo a arrotar.

— Sashi! Mira... Burgh! Mira mais em cima!

— Certo!

Ela pega a outra lança e o cavalo dá meia volta, correndo o mesmo circuito, dessa vez do outro lado do corrimão. O cavaleiro negro pega sua lança negra e retorna. Os dois se preparam para a segunda colisão quando, um pouco antes de se encontrarem, a montaria do cavaleiro negro dá uma acelerada monstra e inesperada.

— Quê?!

A batida é ainda mais brutal que a primeira e Sashi quase sai voando de seu cavalo. O escudo, a única coisa entre a lança mortal e o peitoral de ferro dela, se esbagaça com um estralo. Sinto a pressão da pancada quase estourar meus pulmões e caio no chão, tossindo sem ar.

O que salva a Sashi é que ela segue minha orientação e levanta mais a lança, criando atrito entre as duas armas. Mais um pouco para baixo e... nem quero imaginar o que poderia ter acontecido.

Cof! Cof! Porra! Usar turbo vale?!

Reclamo, mas minha voz é simplesmente insignificante contra as milhares de vozes e assobios do coliseu. Em um piscar de olhos, estou do outro lado com a próxima arma para entregar a ela.

— Eles... Cof, cof! Eles estão jogando sujo, Sashi. Toma cuidado! Cof!

— Certo! Dessa vez, eu tenho um plano — diz ela, sorrindo.

Na próxima e última volta, Sashi repete a estratégia da volta anterior e ergue mais sua lança. De novo, nos últimos momentos, a montaria gelatinosa com patas de guepardo do cavaleiro negro dá uma turbinada.

— Merda! — Eu já tô procurando unha pra roer porque roí todas as minhas.

No último instante, Sashi usa seu fogo violeta para circular sua lança e criar uma parede de fogo para distrair seu adversário. E cara... não podia ter dado mais certo, tanto que ele não vê a lança chegando com tudo.

A pancada solta um som abafado e quebradiço quando a arma de Sashi acerta o flanco esquerdo do cavaleiro negro, brasas violetas e lascas de madeira voando pra todo lado em uma explosão. A pressão do golpe faz o pesadelo de armadura negra rodopiar no ar como um frisbee antes de beijar a areia do chão.

— ISSO, CARALHO! GANHAMO!! — Soco o ar enquanto grito.

A plateia vai à loucura, com aplausos e assobios. Lindalva rilha os dentes e Beni parece atônito com o que acontece.

Sashi desce do cavalo, tirando seu elmo e vem até mim.

— E aí? Mandei bem?

— Mandou muito! — Não consigo deixar de abraçar ela.

Sashi cora com o abraço e eu me afasto percebendo isso.

— Hehe... Ainda demorei mais porque não sei muito bem usar essas armas.

— Deixa disso. Você foi ótima! — Só tirando o fato de quase morro com o segundo impacto, tudo correu bem.

— Vocês... — A voz de Lindalva silencia a multidão eufórica, uma veia saltando de sua testa. — Calebe... até quando... vai ficar me humilhando desse jeito, seu merdinha?!

— Vem com essa... Você não precisa da minha ajuda pra isso, ô cosplay de rainha Iracebeth! — Mando o dedo do meio para acompanhar!

Ouço o PLANC do punho dela descendo sobre a madeira fina da balaustrada. É agora que nós começamos a construir nosso resort de verão na mente daqueles reizinhos. Pelo jeito, os outros que vieram antes — se é que vieram — foram facilmente subjugados, diferente de nós.

A raiva dela é essa: Ela está diante de alguém que não pode pisar como um capacho. Pretendo continuar com essa linha de raciocínio, a menos que ela seja esperta o suficiente para não cair no meu jogo, o que não é o caso. Dá pra ver isso naquela cara torta e raivosa.

— Certo... Está na hora da próxima atração, meus queridos súditos! — A voz dela treme, mas mantém o controle o máximo possível.

— O que será que esses doidos vão fazer agora? — cochicho para Sashi.

— Seja o que for, eu dou conta.

Depois de sua pausa dramática, Linda anuncia com os braços abertos:

O Coliseu das Feras!



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