Volume 1

Capítulo 7: Fim do mundo

Num dia nublado de outono, sete frades caminhavam ao longo de uma praia deserta, deixando pegadas pela orla enquanto se admiravam com o divino na beleza que preenchia o encontro entre mar e terra.

— Olheis, irmãos! — exclamou um deles, apontando para além da costa.

Algo se debatia contra as águas, distante da margem, e, ao reconhecerem o contorno cor de fogo, o coração por pouco não lhes saltou pela boca.

— É um diabo! — esbravejou um dos frades, benzendo-se com o sinal da cruz.

— Mas está se afogando — constatou outro.

— Deveríamos ajudá-lo — sugeriu um terceiro.

— Estás louco, irmão? — vociferou frei Pietro. — Ajudar um diabo?

— E a Caridade, meu irmão? Não devemos fazer acepção de pessoas.

— E afirmeis que o diabo é uma pessoa?

Mas nenhum frade escutou a frei Pietro, que se decidiu por não arredar os pés da orla, ao passo que os outros seis já se atiravam ao mar.

— Estão cometendo um sacrilégio terrível!

Quando retornaram à praia arrastando o diabo pelos braços, largaram-no sobre a areia e ficaram a observar. A criatura tossiu um pouco, levantou-se sobre os pés de casco fendido e encarou os sete homens.

— Sois benevolentes entre os homens, frades — disse com hálito de enxofre. — O sal queimava em minha carne, mas agora estou tão aliviado que realizarei dois desejos. Pedirdes e darei.

Os frades se entreolharam em silêncio.

— Não vos deixeis cair em tentação, irmãos — implorou frei Pietro.

Mais uma vez, porém, nenhum deles deu ouvidos ao frade e, após minutos de discussão, um dos religiosos tomou a frente:

— Porventura chegamos a um consenso. Queremos ver a Deus.

O demônio sorriu astutamente e, com um estalar de dedos, a cabeça dos seis frades rolou de cima dos ombros, tingindo a areia de escarlate.

— Eu sabia! Sabia! — Frei Pietro gritava em desespero. — Vade retro Satana! Abominação! Suma das minhas vistas!

— Que assim seja, frei — sorriu o diabo uma segunda vez.

Frei Pietro arregalou as órbitas, observando enquanto o diabo sumia diante dele. Emocionado, caiu de joelhos para dar graças, mas sentiu uma mão invisível lhe arrancar os olhos.

A história dos frades começou a se espalhar através do relato de um velho pescador que jurava ter presenciado a tudo de longe. Verdadeira ou não, o fascínio pelo conto começou a reunir, gradualmente, um número cada vez maior de curiosos que desejavam ouvi-la da boca do próprio velho, causando um interesse crescente pela praia e pela região.

Vieram os séculos, mas a lenda persistiu, ainda que vaga, e a memória dos frades ganhou tributo com a canonização dos sete.

Por fim, erigiram uma capelinha num rochedo elevado da praia, abrigando seis estátuas de roca que nunca saíam de lá. A sétima estátua — a do frei que se negara a ajudar o diabo — ficava na Ilha de São Pietro, uma ínsula a alguns quilômetros da costa.

Era o motivo pelo qual a cidade, incrustada no litoral de São Paulo, chamava-se Baía das Rocas, tornando-se destino turístico, ainda que pouco conhecido, para quem procurava sossego e belas paisagens naturais, com aquele típico charme pacato de cidade pequena.

No entanto, Marco enxergava outro cenário diante de si.

Lembrou-se de quando a mãe lhe contara sobre a lenda dos sete frades e, apenas alguns passos para fora do edifício, foram suficientes para constatar que deveria estar nos domínios daquele diabo da história.

Marco se sentou no meio-fio, ao lado do carro estacionado, e puxou a fotografia em que estava com a mãe, recordando-se com o coração apertado que, àquela hora, o mais provável era que estivesse a caminho da praia com ela.

Entrementes, o veículo no qual viera com os irmãos se transformara numa maçaroca de metal retorcido, como se algo bastante pesado o tivesse feito de trampolim. Marco apertou a chave até a mão doer, soltando-a quando os dedos adormeceram.

— O que eu faço, mãe? — cochichou para foto.

Régulo miou alto, esfregando a cabeça contra o braço de Marco. Era seu pedido para que o dono o afagasse. Coçou a queixada do gato, mas sua atenção se fixava no horror adiante.

Passado a chuva, a paisagem persistia em algo desolador e cinzento. O sol já se erguia àquela hora do dia, mas brilhava numa claridade enregelante, como se o céu estivesse com anemia.

Correu a vista para a direita, notando que, à distância de uns duzentos metros, subia um supermercado de uma rede conhecida da região. Naquele momento, porém, tomado por um frenesi de pessoas que saíam e entravam com caixas e sacolas nas mãos.

O mais perturbador, pensou Marco, era observar que a maior parte dos saqueadores se consistiam de crianças e jovens da mesma idade que ele, ainda que, vez ou outra, avistasse algum adulto. Os grupos levavam de tudo: alimentos, roupas e calçados, televisores ainda encaixotados, batedeiras, chuveiros, bicicletas e, dividindo o trabalho a oito mãos, até mesmo uma geladeira.

Marco guardou a fotografia, esquadrinhando o que sobrara do cenário com um arrepio na espinha. Constatara que as casas ao redor haviam sido depredadas; os portões amassados e cobertos de marcas que revelavam as tentativas de invasão, além dos estilhaços de vidro fazendo volume à sujeira.

O caos era terrível, mas um detalhe ainda mais horrendo se destacava em meio a ele. Com a repugnância lhe embrulhando o estômago, Marco contou cinco corpos desmembrados (ou ao menos supunha que fossem cinco); rasgados com selvageria animalesca, colorindo a rua com a morbidez de um açougue a céu aberto.

Para Marco, aquele odor nauseante de sangue e morte exalava a convicção da realidade.

Não era um pesadelo. A cidade em que nascera havia se transformado em um.

De repente, entreouviu um fragor de solas que o trouxe de volta à superfície, compreendendo depressa que alguém se aproximava pelo seu flanco esquerdo.

— Vai ficar parado aí, cara? — gritou um rapaz, cortando por ele no exato momento em que se levantou de sobressalto.

— O que tá acontecendo? — berrou Marco, rebatendo antes que pudesse pensar melhor.

À distância de alguns metros, o jovem brecou desajeitado e se virou, apontando com o polegar em direção ao supermercado, a fisionomia travada num esgar de loucura.

— É o fim do mundo, porra! Que mais seria?

Sentindo as pernas adquirirem solidez de geleia, Marco cambaleou até o capô amassado e se deixou tombar sobre o carro, recostando-se com desânimo enquanto assistia ao estranho se afastar.

A perplexidade lhe açoitava o espírito. Marco tentava reorganizar as ideias da melhor maneira que podia, ainda que o cérebro parecesse à beira de um curto na tentativa cruel de assimilar o que acontecera com Baía das Rocas nas poucas horas que se escondera no búnquer.

Apertou firmemente o taco. Uma ideia lhe assaltou a mente.

— A barra tá limpa? — sussurrou para o gato.

Régulo girou com a cabeça e mirou o dono, começando a ziguezaguear. Marco tomou a atitude como um tipo de resposta afirmativa.

Em tempo, tinha grande familiaridade com as ruas e estradas que se abriam para si. Também tinha consciência da necessidade imediata de ser mais cauteloso com a cidade descambada àquela condição, mas não julgava que seria tão difícil de se chegar até lá.

Com o bastão sempre na mão e o gato a seus pés, acompanhando o dono a seu próprio ritmo, Marco avançou por um cenário de anarquia e desamparo.

Marco vislumbrava pessoas berrando, correndo e gemendo, notando através de um amargo na garganta que a maioria delas não era nem maior de idade. Uma matilha de cães latia a esmo, sendo assaltado várias e várias vezes pelo pensamento de estar sob ataque das coisas invisíveis. Não tardou a compreender, contudo, que a histeria sistemática era a resposta do pavor mesclado à falta de explicações para o caos instalado em Baía das Rocas.

Engolindo a própria insegurança a seco, Marco distinguiu um ponto de referência que lhe indicou estar pelas imediações da construção para a qual se dirigia.

Dez minutos mais tarde, enxergou-se diante do edifício acinzentado do Primeiro Distrito Policial da cidade.

Marco respirou fundo. A entrada com sinais claros de arrombamento não era bom presságio, mas não podia desistir àquela altura. Sabia que a vingança era suja como um lamaçal. Não sairia imaculado daquela…



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