Volume 1

Capítulo 6: Despedidas

Marco não soube especificar o momento que adormeceu, mas os músculos protestavam com tamanha veemência que mergulhou num sono profundo assim que se enfiou para dentro do saco de dormir, distribuídos ao longo do assoalho de modo que Marco ficasse o mais afastado possível de Beatriz, entre Ibrahim e Levi.

No sonho que teve, a mãe de Marco mostrava aquele sorriso triste. Marco devia ter uns doze anos à época. Régulo nem tinha nascido. Fora uma vez que Irene ficara o dia todo cozinhando para entregar um pedido grande de bolos de tal forma que, à hora do jantar, o cotovelo da mulher doía a ponto de não conseguir nem mexer a panela do feijão. Pediu desculpas ao filho, pois estavam sem dinheiro para sequer pedirem uma pizza.

Marco não pensou duas vezes: malhou seu cofrinho de moedas no chão e, mesmo sob os protestos indulgentes da mãe, pedira uma no sabor favorito de Irene (calabresa com queijo).

Aos poucos, o sonho se desfez em cores, até se transformar numa sensação muito próxima ao torpor da pré-sonolência, experimentando uma constrição incômoda sobre o rosto, embora não soubesse distinguir o que era real ou imaginário.

Quando a pressão se alastrou contra os dentes, Marco se assustou, escancarando as órbitas ao constatar que se tornara incapaz de gritar. Alguma coisa — uma mão, compreendeu de imediato — fazia força ao redor de seus lábios.

Shhh! — A voz decretou.

Com os olhos se acostumando depressa ao escuro, encarou a silhueta desfocada de Beatriz fazendo sinal para que Marco permanecesse calado.

Ele concordou com a cabeça, ainda zonzo, mas já recuperado do susto. Sem dizer uma palavra, Marco observou Beatriz se levantar e apontar para a porta do búnquer, caminhando pé ante pé até a saída. Era um gesto que levantava suspeitas, mas Marco tinha a impressão de que ignorá-la seria uma ideia ainda pior.

Relanceando do visor do micro-ondas, que piscava quase quatro da madrugada, até o corpanzil de Ibrahim Salvatore enfiado para dentro do saco de dormir, avançou discretamente até a porta. Beatriz a empurrou com toda a discrição do mundo e se precipitou corredor afora, seguida pelos movimentos cautelosos de Marco.

— Que foi? — perguntou ele, assim que atravessou a passagem e deu de cara com ela.

Beatriz analisou os arredores, numa tentativa nada disfarçada de se certificar de que não havia outra viva alma por perto. Ela respirou profundamente.

— Na verdade… queria lhe pedir desculpas — disse em voz baixa. — Pelo meu pai. Estava difícil de pregar os olhos pensando no modo como ele o tratou. Não fosse por você, Levi e eu estaríamos mortos.

A resposta surpreendeu a Marco, que se deixou recostar à parede. Encarou um ralo pequeno e quadrado na extremidade oposta do corredor, como forma de ganhar tempo para formular uma frase que disfarçasse a falta de jeito.

— Caramba, não precisava ter se arriscado só para me dizer isso. Tá tudo bem. Juro. — Marco abriu um sorriso franco. — Inicialmente, pensei que seu pai tivesse alguma coisa pessoal contra mim, mas talvez seja só um cara xucro tentando proteger os filhos de um estranho.

Beatriz se apoiou na parede ao lado dele.

— Não, Marco, não acho que seja o caso — retrucou, demonstrando uma melancolia resignada. — Mamãe me contou sobre como se conheceram; como papai era encantador, sabe? Mas isso foi antes de começar a apostar. Ele fez muitas dívidas na época e, para não sucumbir à pressão, preferiu se entregar à bebida. Com o tempo, meu pai se tornou cada vez mais raivoso e obtuso, até que mamãe não aguentou a barra. Hoje, garante que está sóbrio e longe dos jogos, mas viu os troféus na mesa dele, não viu? Ainda existe algo daquela época no meu pai, e é por isso que mamãe nunca quis reatar com ele.

Marco olhou para ela.

— Você guarda rancor?

— Ah, não. Não guardo — respondeu pressurosa, ainda com tom de pesar. — Num geral, ele cumpre bem o papel de pai, principalmente quando se trata de Levi, mas hoje parece mais um rascunho do homem que me lembro quando criança. Diz ele que se arrepende de tudo; que o maior sonho da vida dele era voltar com a mamãe, mas, para mim, é tudo conversa. Ainda há um quê de arrogância no meu pai, testemunhei isso hoje. Uma necessidade inexplicável de intimidar os outros. É por isso que me vi na obrigação de vir falar com você. Talvez amanhã eu não tenha tempo, não é mesmo?

Marco notou que ela o encarava com uma perspicácia que chegava a lhe queimar a fronte. Beatriz cruzou os braços e perguntou:

— Afinal, para onde está pensando em ir?

— Estão seguros com o pai de vocês agora, então vou tomar meu rumo. — Ele apertou o punho com força. — Vou matar cada uma daquelas criaturas.

Beatriz esbugalhou os olhos com incredulidade.

— Tá falando sério? Você vai é se matar, garoto, isso sim. Acha que sua mãe gostaria de ver o filho dela se arriscar desse jeito?

— Aqueles demônios a arrancaram de mim, então não dá pra saber. Quero passar na casa daquele tal de Camilus. Se o que o seu pai nos contou for verdade, tenho certeza de que há mais armas escondidas por lá.

— Mas… e a polícia? Por que não conta tudo que aconteceu pra ela?

— Acha mesmo que a polícia vai acreditar em mim, Beatriz? Demônios invisíveis? Fosse assim, já teria ido a uma delegacia em vez de vir pra cá.

— Bia — corrigiu ela de mau humor. — Beatriz faz parecer quando meus pais estão putos da cara.

Erguendo uma sobrancelha, Marco sorriu deprimido.

— Vou partir pela manhã, depois que me despedir do Levi. Quanto a seu pai, realmente não ofereceu o melhor comitê de boas-vindas que já tive, mas me sinto na obrigação de, pelo menos, agradecê-lo pela hospitalidade.

— Então é um adeus?

Marco negou com a cabeça.

— Espero que só um até logo.

À luz do comentário, os lábios de Beatriz se curvaram com ternura.

— Acho que é melhor voltarmos a dormir. Antes que meu pai acorde.

Marco concordou, achando a sugestão maravilhosa.

Sentia-se esgotado. A visão voltara a se turvar conforme a sonolência regressava e lhe nublava os sentidos. Tudo o que Marco mais queria era se enfiar para dentro do saco de dormir e desligar o cérebro de vez, desprendendo-se do que fora, sem sombra de dúvidas, o pior dia da sua vida.

 

*******

 

Marco imaginou que, devido ao cansaço, seguiria dormindo por horas a fio, mas despertou sozinho pouco antes das oito da manhã, sentindo-se melhor do que julgava merecer.

Notando que os outros ainda não tinham se levantado, inclusive Régulo (que se embolara no formato de uma rosquinha de pelos), dirigiu-se até o banheiro, jogando água fria por sobre o rosto e improvisando a falta de uma escova de dentes com um pouco de enxaguante bucal.

Ao retornar para a saleta, todavia, observou que todos já haviam despertado. Levi coçava os olhos, aguardando que Marco desocupasse o sanitário. Beatriz se dirigira até a bancada e Ibrahim se espreguiçava.

— Dormiu bem, rapaz? — perguntou o homem, voltando-se para ele.

Marco assentiu devagar e sorriu sem mostrar os dentes, olhando de soslaio para Beatriz, que não o encarou de volta, intencionalmente entretida aos sanduíches que preparava.

— Sabe, garoto — soou a voz de Ibrahim, gesticulando para ele. — Você é um bom sujeito. Um cidadão de bem não deveria tratar as pessoas do jeito que eu o tratei ontem à noite, então gostaria de me desculpar. Mais uma vez.

Marco fez uma negativa.

— Não há com o que se preocupar, senhor. Agradeço a hospitalidade, mas sei que já é hora de partir.

— Vai pra onde, Marco? — Levi perguntou de chofre, saindo diretamente do banheiro para a bancada; alguns sanduíches já preparados.

— Os caminhos na vida de um homem são mistérios até para ele mesmo, Levi. — Ibrahim soou enigmático.

Apertando o crucifixo contra a mão direita, Marco se curvou para o menino.

— Preciso fazer uma coisa que ninguém mais pode fazer por mim.

— Mas… por que vai embora? E aqueles monstros?

— Acha mesmo que eu vou perder pra eles? — A pergunta veio acompanhada de uma bagunçada nas madeixas de Levi.

O caçula de Ibrahim sacudiu várias vezes em sinal de negativo.

— Ao menos fique pra tomar café conosco. — A voz de Beatriz ressoou do outro lado. — Régulo deve estar faminto.

Marco sorriu agradecido e, entre três sanduíches e algumas fatias de queijo (Régulo novamente comeu atum), finalizou a refeição em questão de minutos. Pouco depois, Beatriz, Levi e Ibrahim o escoltavam para fora do búnquer.

Marco se voltou em direção ao pai dos garotos e lhe apertou a mão.

— Acho que o senhor imagina o que preciso fazer agora.

Ibrahim sorriu com perspicácia.

— Um homem faz o que precisa fazer, rapaz.

— E como chego à casa de Camilus?

— Siga pela estrada do litoral. Assim que avistar a igreja de São Décimo, pegue a rua adjacente e procure por uma casa de muro vermelho.

Marco soltou a mão de Ibrahim, aproximando-se de Levi. O garotinho também ofereceu o cumprimento, imitando o gesto do pai, mas Marco mostrou o dedo mínimo para ele, no que foi retribuído animadamente pelo menino.

— Cuide do seu pai e da sua irmã, tá legal? — pediu em tom descontraído.

— Pode deixar! E você cuide do Régulo. — Levi afagou a cabeça do gato uma última vez, que miou agradecido.

Sentindo um nó desagradável na garganta, Marco, por fim, voltou-se a Beatriz. Ao encará-la, não conseguiu decifrar que mensagem se escondia por detrás daqueles olhos cor de jade, mas não havia mais tempo. Estendeu a mão para ela e foi sucinto.

— Cuide-se, Bia.

Ela prontamente retribuiu, a despeito de haver um entretom hesitante no gesto.

— Toma cuidado, Marco.

— Tomarei.

As mãos se soltaram. Marco se afastou, apanhando o taco de bete-ombro largado próximo.

Com Régulo em seus calcanhares, desapareceu pela porta.



Comentários