Volume 1

Capítulo 28: Diante do fim

O choro de Levi ecoou.

Cada fio de cabelo de Marco estremecia. Beatriz correu para ajudar o irmão, que havia largado a faca e aberto um berreiro.

Cássio se agarrava ao chão, arrastando-se pelo piso enquanto expelia golfadas violentas de sangue no mesmo ritmo de uma risada gorgolejante.

— O fim do sofrimento… — resfolegou ele. Não fosse a fraqueza na voz, Marco até cogitaria pensar que Cássio estivesse em gozo, tentando balbuciar qualquer coisa por entre os últimos grunhidos de agonia. — Não do jeito que eu sonhava… mas que o mundo se renove sob o juízo dos Ocultos.

Cássio tossiu uma última palavra engrolada, mas Marco não a compreendeu. O homem parou de se mexer.

— Marco, precisamos sair daqui!

A voz de Beatriz funcionou como um chacoalhão, arrancando-o do transe. Sentindo o corpo todo flácido, guardou a pistola para dentro da cintura.

Beatriz tinha razão. As chamas haviam se espalhado a partir das velas, alastrando-se com força pelo piso amadeirado. Não demoraram até cobrirem os corpos de Cássio e dos asseclas encapuzados. Levi soluçava, mas, quando se voltou para Marco, um sorriso ingênuo lhe surgiu à face.

— C-como você tá sujo, Marco. Que houve?

Marco não conseguiu conter o riso comovido, talvez uma tentativa de o próprio corpo lidar com a adrenalina, mas ouvir a voz de Levi novamente foi como um bálsamo.

Régulo também parecia satisfeito, costurando por entre as pernas do menino enquanto miava com energia. Voltaram pelo corredor, passando pela nave até cruzarem pelo portal de saída; o fogo se espalhando pela igreja como uma coisa viva, consumindo-a.

Sem trocarem uma palavra, correram todos na direção da praia, como se fosse o lugar mais óbvio para irem.

O céu já estava escuro. A lua subia cheia pelo firmamento, espalhando uma claridade melancólica que se juntava à fumaça vinda do templo e dos diversos focos de incêndio ao longo da cidade.

De repente uma explosão.

A igreja de São Décimo sumiu pelos ares numa imensa bolha de fogo e fumaça. Marco, Levi, Beatriz e Régulo foram levemente impelidos para frente e rolaram pela areia.

— Régulo! — gritou Marco.

Mas o gato fez um movimento ágil e fugiu assustado, sumindo como sombra da luz.

Marco ainda tentou correr atrás enquanto gritava por Régulo, mas o esgotamento físico e mental somado à velocidade impressionante do gato o fez tropeçar e despencar como se fosse um saco pesado de chumbo.

Do jeito que caiu, ali permaneceu em silêncio, tomando fôlego com a cara na areia. Quando criou coragem para se levantar, sentiu o corpo como um amontoado de peças que estivessem se soltando das juntas, arrastando os pés pela praia até alcançar a orla do mar. A água salgada cobriu-lhe as canelas. Marco se sentou, experimentando a marola se quebrantar contra as pernas.

— Marco?

Ele se voltou para trás, dando de cara com Beatriz e Levi, que o fitavam do alto com um misto de alívio e preocupação. Tinham conseguido afinal, mas o que restou para eles? Estavam sozinhos, e encarar a infinitude do mar só intensificava aquela sensação no espírito de Marco. Ao longe, uma fumaça preta subia das ruínas da igreja.

— Ali — Levi apontou para os postes da avenida. — A luz voltou.

Marco não soube dizer como chegou à conclusão, mas o entendimento se fez claro como dia e escapou pela boca:

— A barreira invisível foi desfeita.

— Barreira? — Beatriz arqueou uma sobrancelha.

Marco explicou o fenômeno bizarro encontrado no caminho até a distribuidora de gasolina.

— Mas isso é algo bom, não é? — disse ela com tom de indisfarçável expectativa. — Quer dizer que acabou? O pesadelo acabou?

Levi, no entanto, apontava tremulamente para o começo da praia.

Marco e Beatriz se viraram na direção do dedo, deparando-se com algumas dezenas de passos invisíveis que surgiam pela areia, rondando o trio, mas mantendo distância segura. Marco sentia o coração tão anestesiado que não pôde se dizer surpreso.

— Cássio conseguiu o que queria. Baía das Rocas não é mais uma jaula para os Ocultos. Esses daí devem estar rondando a praia por causa de mim. Talvez a minha alma já tenha começado a feder.

— Ah, Marco… — murmurou Beatriz, angustiada.

— É a verdade. Só me sobraram os pecados. Acabei de matar uma pessoa e até meu gato me abandonou.

— Você tem a gente — disse Levi, animado.

O sorriso do menino aqueceu levemente o coração de Marco. Ele se levantou do lugar, descalçando os tênis e dobrando a barra das calças. Começou a caminhar pela orla segurando os calçados na mão.

— Vamos dormir? — sugeriu ele. — Você vai precisar juntar comida a partir de amanhã, Bia.

Ela olhou enfezada para ele.

— Para de falar como se já estivesse morto. Venha com a gente, droga!

Marco a encarou com um misto de surpresa e ternura. Queria chorar, mas não conseguia. Só desejava que ambos ficassem bem quando ele partisse daquela vida — tinha de ser realista. Apontou para uma capelinha num rochedo elevado da praia.

— Ali pode ser um bom lugar pra ficarmos.

Caminhando ao longo da orla na tentativa de contornarem as pegadas invisíveis da areia, apanharam a escadinha esculpida na rocha até a capela.

Quando adentraram no cubículo do lugar, pouco espaçoso, mas relativamente grande para comportar os três, deram de cara com as estátuas de roca dos seis frades que salvaram o diabo.

Marco depositou a mochila no chão e, apanhando outro saco de sal, espalhou todo o conteúdo pela entrada da capela. Agora só lhe restava mais um quilo.

Em silêncio, ajeitaram um ninho para que pudessem dormir, mas Levi foi o único que realmente pregou os olhos depois de Beatriz acalmá-lo, explicando a respeito do braço que perdera, embora Levi demonstrasse boa aceitação para com o fato de que conviveria o resto da vida com um membro faltando. Coisas mais importantes pareciam ocupar a cabeça de Levi: estar exausto até os ossos era uma delas, caindo em sono profundo poucos minutos depois que a irmã começou a lhe afagar as madeixas.

Entrementes, quando Beatriz avisou que também se deitaria, Marco comentou que ficaria de guarda à entrada, e assim foi a noite antes do aniversário dele.

Não soube precisar as horas que passou ali sentado, fitando o sal espalhado à beira da capela. Contudo, quando o cansaço começou a lhe pesar nos olhos, Marco escutou uma leve pancada, mas suficientemente alta para seus sentidos tensionados o despertarem na hora.

Apontou a pistola sem pensar.



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