Volume 1

Capítulo 27: O rito

O homem, a mulher e o gato percorriam pelas ruas destruídas de Baía das Rocas. O ruído do motor chiava baixo sob o entardecer.

Não havia lágrimas. Só o silêncio duro.

A quietude, no entanto, falava mais alto que as palavras, criando um entendimento melancólico aos olhares que corriam pelas vidraças, como um nervo exposto há tanto tempo que dessensibilizara todos os limites da dor que a mente humana podia processar.

Marco e Beatriz pensavam em tudo, ao mesmo tempo que não pensavam em nada. A viatura singrava em direção ao litoral.

— Se encontrar o seu irmão, você deve buscar abrigo, Bia. — A voz de Marco ressoou.

— Por que diz isso? Não virá conosco?

— Faço dezoito amanhã. Os Ocultos virão atrás de mim. Não há balas nem sal suficiente pra detê-los.

— É o seu aniversário? — espantou-se ela. — Por que não me contou?

— Pra quê? Não tem nada pra comemorar. — Marco apertou o volante com muita força. — Nada.

De modo irrefletido, levou a canhota até o crucifixo de prata — o pingente de Jacira se mexeu embaixo dele.

Lembrou-se de sua família. Lembrou-se de Irene e também do semblante vago de Cláudio Pharas. Não morreria de diabetes como seu pai, mas se recordar do medo que a mãe sentiu de que Marco também desenvolvesse a doença lhe pareceu subitamente tocante, mas também amargo. Queria dizer à mãe que não morreria como o pai, mas que estava tudo bem. Não tinha mais medo. O mundo sempre fora implacável. Pelo menos agora sabia de que forma sua vida terminaria. Deixaria Beatriz e Levi em segurança e faria o que tinha que fazer antes de se juntar aos pais. A ideia se transformou num sorriso sem forças.

Baía das Rocas ardia. Diversos pontos de incêndio queimavam ao longo da cidade, mas Marco tinha as vistas tão anestesiadas que a própria realidade já lhe parecia familiar.

Rodaram por cerca de quinze minutos, serpeando por entre veículos e corpos. Por duas vezes, Marco teve de se desviar de gente que correu para cima do carro com a loucura retorcida no rosto, querendo pará-lo à força. Pouco se intimidaram com o fato de ser uma viatura.

Quando enfim tomou a alça de acesso que desembocava na estrada do litoral, o sol já fulgia em tom de laranja enferrujado, colorindo o mar com as mesmas cores que só se via no final das coisas. Não fosse pela paisagem de desolação ao redor, Marco imaginou que o encontro da vastidão liquefeita com o firmamento daquele dia teria sido digno de estampar um cartão-postal da cidade, mas nenhuma câmera ou celular funcionava mais. Registrou a imagem na cabeça, mas, assim que desviou os olhos, já estava menos nítida que um segundo atrás.

Três minutos de divagação bastaram para avistar a fachada da igreja. Beatriz apontou para um pequeno templo acinzentado, com vitrais coloridos e uma arquitetura que flertava modestamente com o neogótico.

Marco encostou o carro numa esquina próxima e desembarcou. Não levaria mochila, por isso apenas conferiu a munição das pistolas que trazia, enfiando uma para dentro da cintura enquanto segurava a outra com a mão. Beatriz o seguiu na ação, com uma seriedade intensa moldada no semblante. Enfiou o carregador para dentro do cabo da Glock e puxou o ferrolho.

Quando começou a caminhar, Marco olhou com amargura para a esquina, recaindo por sobre uma casa de muro alto e avermelhado que fazia divisa com os limites do templo. Supôs que fosse a residência de Camilus Morante, o sectário da Ordem que avisou Ibrahim Salvatore.

Marco atravessou a rua enquanto escoltado por Beatriz e Régulo, atento ao menor sinal de aproximação humana.

Tomando nota de uma breve sensação que mesclava o medo à expectativa, subiram os degraus do templo, imprimindo um pouco mais de força ao empurrarem as grandes portas de acácia. As entradas rangeram em protesto. O barulho ecoou pela nave da igreja.

Tal como fora no hospital, o primeiro detalhe que arrancou Marco da sensação de normalidade foi o odor de maresia que lhe empurrou para trás. Um cheiro bizarramente salgado que não tinha muito a ver com a proximidade com o mar. O cheiro ali dentro era mais intenso que a brisa morna trazida pelo lado de fora.

O interior da construção estava imerso ao mais profundo silêncio, lançado a uma claridade bruxuleante e sufocada. Ao longo das paredes da catedral, ardiam velas brancas dispostas em vários níveis e, na plataforma que servia como altar, queimava um incensário aos pés daquela grande cruz em “Z” moldada em prata, mesclando a pungência dos arredores a uma leve fragrância adocicada.

A nave da igreja, porém, encontrava-se vazia, limitada à decoração das imagens e das fileiras de bancos repartidos por um tapete cor de vinho que se estendia de uma extremidade a outra.

Curioso, Régulo cheirava e explorava tudo o que encontrava, pulando e correndo pelos assentos de madeira, até que Marco reparou quando o gato sumiu através de uma depressão além da tribuna. Ergueu uma sobrancelha.

Seguiu até lá, ascendendo até a extremidade do patamar. Com uma exclamação, deparou-se com uma fileira de degraus ocultos que desciam até um postigo de madeira escurecida pelo tempo. O gato lambia a pata direita ao pé da porta.

— Bia, acho que Régulo encontrou uma coisa.

A esperança brilhou aflitiva no olhar de Beatriz que, sem demora, pareou-se com Marco.

Com cautela, Marco empurrou a porta, penetrando para dentro do recinto com a pistola segura na mão. Beatriz e Régulo vieram logo atrás dele.

De imediato, observaram que, à medida que se embrenhavam pelo local, o cheiro salino dava lugar a uma adstringência insuportável pela passagem estreita. Ali, o ar era rançoso.

O brilho anêmico dos archotes fixados nas paredes de pedra rústica lançava feixes que dançavam pelas cercanias conforme sentiram descer um conjunto de degraus. Com o estômago insurgindo em náusea, Marco os avistou, detendo-se exatamente ao meio das escadas.

As vistas se abriram para um espaço plano e circular, preenchido por um fedor de éter misturado a ferro que subia a partir do chão de madeira lisa. Exatamente ao centro da sala, Marco vislumbrou as chamas das velas que ocupavam as paredes recortadas contra a silhueta de um homem, lançando um brilho úmido por sobre o corpo lavado de sangue. O choque inicial, no entanto, não atrapalhou a compreensão súbita de Marco: era Cássio Pereda.

De costas para eles, o médico se encontrava completamente nu não fosse a tanga de cerimônia que lhe cobria da cintura até os joelhos. Aparentemente não os ouviu entrar, empenhado demais em acariciar a própria pele, numa lentidão inebriante de quem se deleitava com o fluido derramado sobre si.

Marco engoliu em seco. Aos pés de Cássio contou seis figuras misteriosas. Estavam todas de capuzes, caídas ao redor dos símbolos que preenchiam o círculo de São Décimo, todas com as barrigas apunhaladas. Mortas. Alheio à morbidez do recorte, no entanto, Cássio continuava a se mover como se a mente divagasse a quilômetros daquele local.

As velas também atiravam uma pálida claridade contra a forma diminuta e ainda sonhadora de Levi. O menino havia se sentado na extremidade da sala, empertigado sobre um trono de espaldar alto em formato da cruz em “Z”. Apesar do olhar aéreo, Levi permanecia virado na exata direção de Cássio, pendendo um punhal com fraqueza entre os dedos pequenos. O homem se mexia como uma serpente tentando hipnotizar o menino. A cena era onírica, como se saída diretamente de um pesadelo febril.

Beatriz estava lívida; a boca seca. Marco ergueu a pistola com estremecimento, sentindo-a mais pesada que o normal.

— Solte-o! — ordenou ele.

Agora que estava ali. Agora que o tinha sobre a mira, Marco sentiu o dedo retesar sobre o gatilho, incapaz de dobrá-lo. Falar era realmente mais fácil que fazer. Não conseguia atirar.

Cássio parou de se mexer, olhando de soslaio. Encarou Marco e Beatriz por cima dos ombros.

— Estou impressionado com vocês dois — disse num sorriso luxurioso. — Não sei como encontraram este lugar, mas assumo que ambos têm uma força de vontade admirável.

Devolva o meu irmão! — gritou Beatriz.

— Ora, e quem disse que Levi está aqui contra a sua vontade? — respondeu Cássio. — Aproxime-se, Beatriz. Ainda há tempo de se juntar à Ordem. Instrua que Levi me obedeça. — O homem caiu de joelhos perante o trono e abriu os braços para o alto. — Mande-o cravar a faca no meu coração. Mande-o me matar. Um Vaso de Prata ferido na carne e na alma me fará ascender como um deus. Todo o sofrimento cessará.

Irrefletidamente, Levi se levantou do trono; a expressão ainda distraída.

— Levi, não! — rugiu Beatriz.

Embora os olhos ainda estivessem catatônicos, como se não enxergasse um palmo à sua frente, o menino parou. A faca ainda pendia na destra.

De repente, Cássio arrancou um objeto de dentro da tanga e se levantou, apontando a pistola de Odair para a cabeça de Levi. Marco e Beatriz se assustaram, depositando imediatamente as próprias armas na mira de Cássio.

— Ordene que ele faça, Beatriz. Senão vou atirar.

— Teria coragem de matar uma criança? — Marco perguntou com um arrepio.

— Embora sejam puras, todas as crianças são filhas da iniquidade. As que ainda estão para nascer, serão como frutos da justiça, uma vez que nascerão após a transformação do mundo. Farei o que for necessário, Marco, nem que tenha de encontrar outro Vaso de Prata. Não suporto mais testemunhar o sofrimento que as pessoas causam umas às outras. Eu só quero a paz.

Sofrimento… Aquela palavra invadiu os pensamentos de Marco no formato de lembranças da mãe, refletindo sobre o quanto ela sofrera para criá-lo sozinho.

Ao longo do tempo, Irene adquiriu queimaduras nas mãos, dores na coluna e epicondilite, trabalhando em pé, dia após dia, sempre fazendo os mesmos movimentos.

Marco cresceu observando a mãe mascarar as dores no corpo com remédios e sorrisos e, por mais vezes que tivesse ajudado como seu auxiliar na cozinha, sabia que ela estava sempre disfarçando o que sentia de verdade.

Não havia sido fácil. A mãe jamais reclamou, o que não era necessariamente louvável. Fora a médicos, mas sofreu calada para não preocupar Marco e parecer fraca, criando o garoto da maneira mais dedicada que as circunstâncias permitiram.

Mas agora ela estava morta, e o culpado pela sua morte bem à frente de Marco, apontando uma arma para a cabeça de uma criança. Sua mãe tinha sofrido, mas duvidava que as dores ao longo da vida tivessem sido piores do que ela sentiu na noite que um Oculto lhe rasgou ainda viva. Nenhuma retórica mudaria aquele fato — tivesse os motivos mais nobres do mundo. No fim, era provável que a hipocrisia não passasse de outra irmã do sofrimento.

O sorriso da mãe. O conselho de Jacira. O dedo trêmulo sobre o gatilho. Uma dor insuportável no peito. A lembrança da mãe preparando seus quitutes.

O primeiro tiro fez surgir uma expressão confusa no olhar de Cássio enquanto girava nos calcanhares. O homem largou a pistola, aparentando surpresa quando o buraco no lado do ombro começou a escorrer o próprio sangue.

Um instante depois, Marco apertou o gatilho pela segunda vez, acertando-lhe no meio da barriga. Beatriz congelou sem ação ao passo que o susto fez a sanidade retornar ao semblante de Levi.

Com uma expressão de desespero, Marco atirou mais duas vezes, empurrando o corpo de Cássio contra as paredes. O homem chocou-se de costas, espalhando um amontoado de velas acesas pelo piso de madeira.



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