Volume 1

Capítulo 58: Tentação e pesadelos

Mal havia se passado o dia e Sophia, debaixo do sol intenso, permanecia em pose de lótus, de olhos fechados, em seu jejum, cujo prazo do término era o  despertar dos selos em seu corpo, que prendiam seus poderes escondidos. Inúmeras gotas de suor se formavam desde o seu rosto a outras partes do corpo, deixando parte de suas vestes como o tecido das axilas e o peitoral encharcados.

Aquele com certeza era um péssimo dia para um jejum, apesar de estar farta, o cansaço gerado pela concentração excessiva naquela postura estava causando um extremo desconforto.

Suas pálpebras começaram a pestanejar, anunciando que a qualquer momento seus olhos se abririam.

—  Mestre, eu não vou conseguir.

Cedeu, abrindo os seus olhos finalmente.

— Isso de aurimagia não é para mim!

— Mas só se passaram algumas horas... 

— Mas mestre, é que dói ficar assim... Não tem como eu mudar de postura?

Seus olhos dirigidos ao mestre eram semelhantes aos de um gato abandonado, implorando para que lhe livrasse daquele sofrimento.

— Tudo bem, pode escolher a posição que quiser ficar. No entanto, você precisa manter o foco e  mentalizar a energia fluindo dentro do seu corpo.

— Certo, mestre!

Sophia levantou e esticou os braços, algo que ansiava bastante fazer desde que começou aquele duro treinamento. Não estava carregando nada ou fazendo algum trabalho bruto, mas o simples fato de se concentrar e não fazer nada já a deixava entediada e cansada.

Sentia naquele momento saudades do seu trono, saudades da sua biblioteca e até mesmo saudades de petiscar um pequeno aperitivo, algo que estava sendo forçada a abdicar.

— Posso pelo menos andar pelo castelo?

— Não, é melhor que você permaneça aqui, longe de toda e qualquer tentação. Você fez um propósito, não fez? Então, cumpra-o até o fim.

— Mas mestre... Eu prometo não cair em nenhuma tentação, eu só quero passear um pouco.

— Ah, você ainda é fraca... Tudo bem — disse o mestre. — Mas tenha em mente que  se comer algo estará voltando ao zero. E voltar a zero é perder tempo. Entende o que eu quero dizer, não é?

— Entendo, mestre. Eu sei muito bem do que está em jogo! Aliás, bem que você poderia vir comigo, não é? Assim, você vê que eu não caio!

— Dispenso — disse o mestre, se colocando em pose de lótus. — Eu também estou treinando para a batalha.

— Tudo bem.

Assim, Sophia saiu a passos lentos daquela sala de treinamento, aproveitando os seus pés andando pela areia, o estufar do peito e o liberar do ar em uma respiração que não se limitava a uma concentração em uma determinada pose. Naquele momento, ela estava se sentindo como um passarinho liberto de uma gaiola.

Aquele era o sabor da liberdade que muitos não tinham.

Seus passos a levaram ao quarto onde sua amiga Hana se encontrava após o choque que havia tomado no campo de treinamento, era algo grande demais para sua pobre cabeça processar. 

Ao abrir aquele quarto azul marinho, cujos perfumes de flores tomavam conta do ar que por ali circulava, vindo da janela aberta e adornada por duas cortinas da mesma cor que as paredes, Sophia encontrou Hana deitada naquela cama branca como a neve.

Metade do seu corpo era coberto pela cor do mesmo tecido que a cama, uma bela combinação.

— Rainha, é você, não é?

Hana virou a cabeça e encontrou Sophia ali toda encharcada de suor e areia.

— Eu acordei, você, não é? Desculpa.

— Não... Não se preocupe com isso, eu já estava acordada. 

— E então, como está se sentindo?

— Ainda estou em choque. — Hana colocou a mão contra a cabeça. — Tentando absorver essa toda informação... É algo inacreditável.

— Eu sei, eu também às vezes me pego pensando se isso tudo não passa de uma mentira. Mas aqui estou eu tentando aprender esse poder.

— Entendi. Então é possível aprender esse poder?

— É sim, mas nem todos estão aptos para aprender. Mesmo eu estou tentando. É algo bastante duro.

Quando Sophia disse isso, a porta se abriu, trazendo uma jovem empregada com uma bandeja de frutas cortadas e um jarro contendo um suco feito de uvas frescas.

— Venho lhe trazer um aperitivo... — Sua voz foi descendo o tom quando se apercebeu de que a rainha estava ali. Quase deixou cair a bandeja, não fosse sua coordenação motora que foi aprimorada graças as dicas da Clementina no que tocava a situações como essa. — Vossa majestade!

Sophia era temida e respeitada, a maioria dos empregados ficavam desconfortados por estar ao lado dela devido a sua personalidade fria para com eles, o oposto de Helena, que ria com todos os servos.

— Você só pode estar me provocando, não é?

Sophia lançou um olhar frio e penetrante, fazendo a empregada sentir um nó se formar em sua garganta de tanto pavor que estava sentindo. Não podia contar nos dedos quantos empregados já foram despedidos ou mesmo punidos severamente.

Sophia era má, não porque queria, mas porque ela precisava ser temida e respeitada. Para ela dar confiança reduzia a produtividade e eficiência no trabalho — uma opinião que ela estava tentando mudar gradualmente graças ao conselho de Clementina. 

— Não me despeça, por favor!

— Deixe isso aí e se retire daqui.

A empregada deixou aquilo rapidamente na pequena mesinha ao lado da cama e saiu dali, encurvando a cabeça freneticamente antes de fechar a porta.

— Rainha Sophia, o que foi isso?

— Ah, é que eu não posso comer. Estou de jejum. Faz parte do treinamento.

— E precisava falar assim com a moça?

— Ah, eu ainda estou tentando me acostumar a tratá-los bem, mas está no sangue. 

— Te entendo. Não é fácil equilibrar o ser uma rainha imponente e ser amigável. Mas tenho fé que irá conseguir.

— Pois é.

Quando Sophia deu por si já estava com um pedaço de maçã na mão.

— Ai que droga!

— Rainha?

Sophia queria deixar no prato, mas lembrou que era falta de respeito e etiqueta pegar algo e voltar a deixar no prato. Realmente, ela precisava comer aquele pedaço.

— Acho que um pedacinho não vai mudar nada…

— É, acho que não.

Com esse incentivo, ela acabou comendo, cedendo a tentação. Uma tristeza e frustração acabou tomando conta do seu peito por nem mesmo estar conseguindo resistir a uma simples tentação como aquela, mas o que ela poderia fazer? Quando estava encurralada pela tentação. Sophia lembrou das palavras do seu mestre.

Ela certamente não deveria ter deixado o campo de treinamento.


                            (...)


                      Vila de Mioria

Enquanto isso, na vila de Mioria, propriamente na humilde casa de Mirio, o estado de Rymura continuava piorando gradualmente. Seu corpo ardia de febre e o calor que estava se fazendo  naquele quarto abafado só piorava as coisas, quando o mesmo dispunha de apenas uma janelinha que tentava ventilar o ar.

Marina, esposa de Mirio, limpava o suor do corpo daquele homem que não parava de gemer e tremer, delirando palavras vindas das entranhas do seu coração sofrido.

— Meus filhos, cadê vocês?! Não vão para longe! Não,  vocês não podem se afastar de mim!

Agora virava a cabeça para ali e para cá com uma expressão digna de alguém que estava tendo um pesadelo, colocando Marina angustiada e desesperada mais do que os dias em que ela tratava de outros escravos, por se tratar de uma pessoa muito próxima.

— Ahhh, o estado dele só piora, a febre não passa. Jeziel! — chamou sua filha que se encontrava na cozinha, preparando uma sopa.

— Sim, mãe?!

Lá estava Jeziel na porta, trajada de um avental castanho e esfarrapado que cobria sua roupa da mesma cor.

— Vá imediatamente buscar mais água na fonte — disse, exprimindo o pano encharcado de água em outro balde próximo ao que continha pouca água e agora suja.

— Sim, mãe!

Ao sair do quarto,  Jeziel pegou um balde de água e saiu correndo em direção ao poço de água que ficava no centro do vilarejo.

— Ahh Rymura, por favor resista. Você ainda tem filhos para cuidar! — disse Marina, continuando a passar o pano na sua testa.  — Seja forte!


                    (...)

A luz do sol escaldante que reflita seus raios solares naquele vilarejo, formando sombras em determinadas árvores, Jeziel corria como um cavalo a galope, com a cabeça encurvada e a mão na alça do balde. Sua correria foi tão desesperada que não viu o que estava no seu caminho. Acabou colidindo contra a cabeça de um jovem, este que também se encontrava preso em seus profundos pensamentos.

Ambos caíram no chão de traseiro.

— Mais cuidado... — Quando seus olhos se encontraram, se reconheceram enquanto passavam a mão na testa dolorida.  — Gabriel? 

— Jeziel, você sabe que não pode sair correndo por aí. 

— Olá, Jeziel…

Os olhos de Jeziel agora encontravam Maria, que por ter parado para ajudar um velho que havia deixado cair frutas, havia atrasado seus passos em comparação ao seu irmão, mas agora estava ali.

— Eu tenho pressa, o pai do Miomura está passando muito mal, eu preciso urgentemente de água!

Jeziel levantou-se e pegou novamente em seu balde. 

Gabriel também levantou-se, arregalando seus olhos na companhia da irmã ao receber aquela informação desastrosa.

— Como assim? O pai do Miomura está doente? 

— Sim, o meu pai trouxe ele hoje. Ele está inconsciente e ainda não acordou. — Uma expressão triste estava impressa no seu rosto enquanto falava isso. — E agora está delirando falando o nome de seus filhos.

—Não pode ser... — Maria ficou chocada, seus traços foram formando um semblante melancólico. — Eu realmente não sei o que fazer para ajudar.

“Miomura e Yara, vejam o que fizeram com o vosso pai!” Gabriel pensava indignado, enquanto erguia sua cabeça a aquele céu sem nuvens à vista. “Porque foram tão irresponsáveis... porque...?”

Cerrou um de seus punhos.

— Eu preciso ir, amigos. Até depois! 

Jeziel acabou deixando aqueles dois irmãos para trás, continuando sua caminhada, ou melhor, correria.

— Maninho, por que... por que tudo tem que ser assim...? — Maria cobriu o rosto, lágrimas começando a se formar ao redor dos seus olhos enquanto uma dor asfixiante queimava seu peito.

Tudo que ela queria naquele momento era seus amigos de volta, nada mais, nada menos que isso.

— É porque nascemos escravos, privados da liberdade e subjugados pela nação de Aclasia. — Gabriel segurou sua irmã pelo ombro, encostando-a sobre seu peito, a fim de pelo menos fazê-la se sentir um pouco confortada.

— Esse mundo é muito injusto com o nosso povo...

Ambos continuaram sua caminhada com passos pesados, repleto de tristezas, passos que ansiavam pisar em terras livres.

                         (...)

Os irmãos da Jeziel que haviam saído para brincar  finalmente voltaram para sua casa, encontrando sua mãe cuidando daquele homem.

— Mãe, chegamos! O pai do Miomura já melhorou? 

— Filho, vocês já voltaram? Não, o pai do Miomura ainda não melhorou, mas ele vai melhorar! —  Marina soltou um leve sorriso, enquanto olhava para seus filhos, mas seus traços ainda continuavam  tristes.

— Para onde será que o Miomura e a Yara foram? Talvez o pai deles tenha adoecido de saudades — disse uma das crianças em sua inocência, com uma expressão triste.

— Eu não sei... mas com certeza eles voltarão, eles têm de voltar pelo bem de seu pai! — Marina juntou as suas duas mãos em oração. — Por favor, se as minhas palavras puderem chegar a vocês, Miomura e Yara, peço que voltem logo. 

— Miomura... Yara...! 

Rymura continuava a delirar enquanto revirava a cabeça, seu corpo produzindo ainda mais suor.


                        (...)

 

                     Última cela 

Enquanto isso, na última cela, era difícil saber quando era noite ou dia, por isso que, quando sentissem sono, eles dormiam. Neste momento, Yara e Helena estavam dormindo uma colada na outra e assim seus corpos se aqueciam  naquela cela fria e escura.

Contudo, nem mesmo no sono em que muitas das vezes se buscava encontrar paz, estavam encontrando.

— Papai...! 

Yara acabou despertando aos gritos, por sorte, não acordando Helena, que estava fazendo uma cara calma.

— O que foi, Yara? — perguntou Miomura, este que velava o sono das duas.

— Eu tive um pesadelo.

Yara estava com o rosto atônito e um dos braços tremendo.

— Que pesadelo foi esse, Yara? 

— Eu não lembro, mas o papai parecia estar chamando a gente!

— Isso não deveria ser um sonho?

— Ele estava com um rosto triste e desaparecia lentamente. 

-— O pai é forte! — Sorriu, cerrando um dos punhos em confiança, mas logo traços de tristeza começaram a se formar. —  Se bem que ele deve estar decepcionado e preocupado com a gente. 

— É mesmo, caso a gente volte, não sei com que rosto eu irei encará-lo. Espero que ele não esteja se sentindo sozinho.

— É... — disse, direcionando os seus olhos a Helena que acabou se remexendo um pouco. — A princesa Helena está dormindo tão calmamente. O que será que ela está sonhando? 

Em resposta inconsciente, um sorriso se formou em seus lábios.

— O sonho deve estar sendo bom... — disse Yara. — Eu queria ser assim também.

Mas o que poderia ser um sonho calmo, talvez com o tempo se transformasse em pesadelo.

— Léo... Léo, não vai... Eu ainda preciso te mostrar este novo livro que minha irmã me ofereceu... 

Sussurros miúdos saíram dos seus lábios enquanto a expressão de calmaria era substituída por uma de tristeza agonizante.

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